Este módulo é um recurso para professores 

 

Corrupção: uma definição de base

 

Apesar das múltiplas definições e usos contextuais da corrupção, a maioria dos dicionários e dos sistemas jurídicos estão de acordo quanto ao seu significado basilar. Os  dicionários Oxford e Merriam-Webster começam, respetivamente, por referir-se a uma “conduta desonesta ou fraudulenta por parte daqueles que se encontram no poder” e a um “comportamento desonesto ou ilegal, especialmente por pessoas com poder”. Prosseguindo em uníssono, ambos avançam para a apresentação de noções mais complexas e detalhadas. Em primeiro lugar, referem-se à degradação da pureza – por exemplo, “um afastamento do original ou do que é puro ou correto” (ver Merriam-Webster). Em segundo lugar, e relacionado com este, referem-se ao significado arcaico de “decadência”, “putrefação” e “decomposição”.     

Os termos latinos “corruptiō” e “corrumpere” são ainda mais claros no que respeita a este processo transformacional de sinais de decadência, já que são, muitas vezes, associados às palavras inglesas “destruir” («destroy») ou “destruição” («destruction»). Assim, no fundo, a corrupção refere-se ao tipo de decadência que conduz à destruição. Este significado revelou-se absolutamente evidente em vários episódios históricos relevantes relacionados com este fenómeno, como foi o caso das acusações e reivindicações aquando da Reforma Protestante face à Igreja Católica, especialmente no que respeita à venda de indulgências (para reduzir a punição pelo pecado), bem como das explicações dos historiadores para justificar o declínio do Império Romano. Considere-se, a este propósito, este excerto do trabalho de Ramsay MacMullen, relativo à queda de Roma:   

O suborno e os abusos sempre ocorreram, como é evidente. Mas nos séculos quarto e quinto eles acabaram por se tornar a norma: não mais surgiam como abusos do sistema, mas antes como uma alternativa ao próprio sistema. A ligação ao dinheiro superou todos os outros laços. Tudo era comprado e vendido: os cargos públicos... o acesso à autoridade em qualquer nível e, particularmente, o imperador. A tradicional rede de obrigações tornou-se num mercado de poder, governado apenas pelo puro interesse-próprio. As operações do Governo passaram a ser distorcidas de forma permanente e massiva (MacMullen, 1990).

A corrupção, portanto, manifesta-se de formas variadas, desde o suborno e a fraude às transformações sociopolíticas de maior magnitude. A corrupção, no entanto, nem sempre conduz ao colapso. Em alguns casos, a corrupção pode muito bem ser concebida como uma forma subaproveitada de “se conseguir que as coisas sejam feitas” quando os meios mais eticamente desejáveis estão indisponíveis, são ineficientes ou demasiado onerosos. Mesmo não conduzindo ao colapso, a corrupção pode levar ao desenvolvimento de um padrão tenaz de comportamentos antiéticos, sustentado e replicado ao longo dos anos. Esta multiplicidade de entendimentos sugere que a corrupção é um conceito polivalente. Naturalmente, este cobre uma multiplicidade de ações, levadas a cabo por uma multiplicidade de sujeitos, numa multiplicidade de contextos. Mais importante ainda, no que respeita à sua definição, diferentes observadores irão caraterizar um mesmo caso de corrupção de forma distinta, de acordo com uma variedade de fatores, incluindo os seus valores, pressuposições, objetivos, culturas e competências. Aceitar que existem diferentes compreensões em torno do conceito de corrupção e enfrentar este desafio pode ajudar-nos a cultivar um entendimento integrado e multidisciplinar do fenómeno. Ao mesmo tempo, é importante perguntar: que tipo de conduta poderia estar causalmente associada a tudo isto, desde a desonestidade à queda de um império ou de um sistema político? 

A lei é provavelmente o melhor lugar para se procurar por definições concretas de atos corruptos. No entanto, as normas jurídicas são heterogéneas no que respeita à sua formulação e formas de implementação. O quadro normativo é conhecido pela utilização de formulações técnicas e complexas, suscetíveis de serem interpretadas diferentemente por parte de advogados e juízes. As normas jurídico-penais articulam um entendimento concreto da conduta corrupta, obrigam todos os indivíduos de um determinado território nacional ao seu cumprimento e podem impor sanções a quem as viole (para uma discussão sobre legislação nacional anticorrupção, vide o Módulo 13 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção). As convenções internacionais foram ainda mais longe, refletindo uma visão consensual sobre o que constitui um comportamento corrupto (estas convenções são discutidas com maior detalhe no Módulo 12 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção). Pode pensar-se que um tal consenso é ilusório, tendo em conta a diversidade histórica, cultural e de sistemas jurídicos existentes no mundo. Mas existe, de facto, uma visão consensual, expressa pela aceitação quase global da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (UNCAC) – em junho de 2019, já eram 186 os Estados que tinham aderido à Convenção. Os relatórios que analisam os progressos dos mesmos na implementação da Convenção apontam para a criminalização quase universal de certos atos de corrupção que se encontram definidos na mesma.

Curiosamente, a UNCAC não define a corrupção enquanto tal. Em vez disso, define atos específicos de corrupção, encarregando os Estados-parte de os criminalizar nos seus ordenamentos jurídicos. Esta decisão deve-se, em parte, à comprovada dificuldade em definir a corrupção. Deve-se, também, ao facto de o conceito de corrupção poder abranger tanto um simples caso de suborno de um funcionário público de baixo escalão, como a transformação de uma democracia numa cleptocracia (i.e. num governo constituído por líderes corruptos que exploram as populações e os recursos naturais com vista a aumentar a sua riqueza pessoal e o seu poder político). Esta opção é igualmente adotada noutros instrumentos jurídicos internacionais relativos a crimes globais, como a criminalidade organizada e o terrorismo, casos em que a comunidade internacional não logrou alcançar consenso em torno de uma definição abrangente, mas antes optou por abordar a matéria através da definição de atos específicos (para uma discussão sobre os instrumentos internacionais relativos à criminalidade organizada e ao terrorismo, vide a Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Criminalidade Organizada e a Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Contra-terrorismo).  

Os atos ilegais definidos pela UNCAC como crimes de corrupção incluem:

  • Suborno nos sectores público e privado (artigos 15.º, 16.º e 21.º)
  • Peculato, apropriação ilegítima ou outro desvio de bens por um agente público ou privado (artigos 17.º e 22º)
  • Tráfico de influência (artigo 18.º)
  • Abuso de funções (artigo 19.º)
  • Enriquecimento ilícito (artigo 20.º)
  • Branqueamento de capitais (artigo 23.º)
  • Ocultação (artigo 24.º) e obstrução à justiça (artigo 25.º) relativamente aos crimes supramencionados.

A articulação entre as normas jurídicas que consagram estes vários crimes é complexa. Por exemplo, o artigo 15.º da UNCAC define suborno de agentes públicos nacionais como “a promessa, a oferta ou a entrega, direta ou indireta, de vantagens indevidas feita a um agente público, para ele ou para outra pessoa ou entidade, a fim de que tal agente pratique ou se abstenha de praticar um ato no exercício das suas funções”. O artigo 21.º da UNCAC utiliza a mesma linguagem operativa para os atores do setor privado. Apesar do facto de esta definição poder ser difícil de apreender, a essência do crime – oferta ou entrega de dinheiro ou de outro valor em troca de benefícios concedidos por atores políticos e económicos – não é difícil de compreender. Tampouco é difícil de compreender o efeito do crime – o contorno de procedimentos legais por via da entrega de poder económico e político ao melhor licitante. O mesmo acontece com o peculato e a apropriação ilegítima de bens. Por detrás da complexa definição jurídica, encontra-se a conduta daquele a quem foi entregue algo de valor (como bens, fundos ou valores públicos ou privados), tomando-o para si ou encaminhando-o para uma terceira parte à custa dos demais. É, pois, essencialmente uma combinação entre a traição e o furto. O artigo 19.º da UNCAC define o crime de abuso de funções. Este pode aplicar-se em casos de clientelismo (utilização dos recursos públicos para recompensar indivíduos pelo apoio fornecido em contexto eleitoral), de nepotismo (tratamento preferenciado de familiares), de compadrio (oferecer emprego e outras vantagens a amigos ou colegas da sua confiança) e de chantagem ou extorsão sexual (chantagem sexual para obtenção de favores) – todos eles minando os processos de tomada de decisão independente e democraticamente legitimada, bem como os procedimentos justos e competitivos na formação dos governos. Tal como os crimes de suborno e peculato, estas formas de corrupção colocam largamente em causa a transparência, a responsabilidade e a prestação de contas, bem como o Estado de Direito. Estes não se tratam apenas de efeitos da corrupção; eles são, igualmente, o seu objeto e propósito. Para uma discussão mais aprofundada sobre os crimes definidos na UNCAC e respetivas obrigações dos Estados-parte da Convenção, vide o Módulo 12 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção.

Embora seja útil dispor de um elenco claramente definido de crimes de corrupção, o estudo do fenómeno também poderá beneficiar da existência de uma definição mais geral. Por exemplo, o Banco Mundial (1997) define a corrupção como “o uso de poderes públicos para a obtenção de benefícios privados”. Esta definição de corrupção tem o seu enfoque na corrupção no setor público ou na corrupção que envolve titulares de cargos públicos, funcionários públicos e políticos. Apesar disso, o setor privado não está necessariamente excluído, porque não são raras as vezes em que este interage com o setor público, principalmente através dos mecanismos de contratação pública. De facto, os particulares subornam, com frequência, atores do setor público e a corrupção tende a ocorrer naqueles casos em que os recursos económicos ou os poderes públicos e privados se sobrepõem (Rose-Ackerman e Palifka, 2016). Em simultâneo, a definição de corrupção supramencionada pode excluir casos em que a pessoa que aceita o suborno labora no setor privado (tal tende a ser apelidado de “corrupção no setor privado” ou “corrupção privada”).

Se nos afastarmos de uma definição centrada no exercício de funções públicas, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) considera que a corrupção consiste no “abuso do poder público ou privado para a obtenção de benefícios pessoais” e a organização não-governamental (ONG) Transparência Internacional (TI) define-a como “o abuso de um poder confiado para um benefício pessoal”. A referência a “poder privado” e “poder confiado”, por oposição a uma menção exclusiva ao “poder público”, representa um verdadeiro avanço já que passam a cobrir-se certos tipos de atos de corrupção que não envolvem exclusivamente políticos, burocratas ou funcionários públicos. Por exemplo, os investidores e os membros de conselhos de administração podem confiar poderes ao seu Presidente ou a diretores financeiros, e quando estes aceitam subornos, desviam fundos, exigem favores sexuais, ou tomam decisões prejudiciais com base em conflitos de interesse, a corrupção concretizou-se. Nesses casos, não deve relevar se o poder de que os mesmos abusaram era tecnicamente público ou não. 

Além disso, a fronteira entre o público e o privado veio progressivamente a esbater-se nos últimos quarenta anos. Por um lado, as empresas públicas desempenham um papel significativo na economia, envolvendo o Estado na prossecução de atividades empresariais, e, por outro lado, a tendência para a privatização, a desregulação e para a austeridade governamental espalhou-se por todo o globo. Estarão as prisões, forças de segurança, universidades, instalações médicas, novas sociedades, lares de idosos ou companhias de controlo coercivo do cumprimento das normas de estacionamento, cuja propriedade e gestão se encontrem atribuídas a particulares, a exercer apenas poderes privados? E as empresas públicas, estarão a exercer poderes públicos ou privados? O abuso de “poder confiado” cobre todos os casos de corrupção, independentemente do facto de a pessoa que aceita o suborno ou que pratica o peculato desempenhar funções no setor público ou privado. Este cobre, inclusivamente, a corrupção na esfera religiosa privada – por exemplo, o desvio de fundos de um local de culto, por alguém a quem foram confiados poderes de autoridade. Regressando aos crimes de corrupção definidos pela UNCAC, enquanto o suborno e o peculato são definidos no sentido de se aplicarem tanto ao setor público como privado, os crimes de tráfico de influência ou abuso de funções apenas poderão ser cometidos quando estejam em causa funcionários públicos. No entanto, a UNCAC define, apenas de forma ampla, o que entende por “funcionário público”, como envolvendo quaisquer pessoas que exerçam funções públicas. Assim sendo, o tráfico de influência ou o abuso de funções são crimes que também podem ser cometidos por pessoas que desempenhem funções em empresas públicas ou entidades privadas que prestem serviços de natureza pública.

A literatura sobre corrupção refere-se, por vezes, aos conceitos de “pequena corrupção”, “grande corrupção” e “captura estatal” («state capture»), apesar de a UNCAC não estabelecer qualquer diferenciação entre tais categorias. A “pequena corrupção” respeita a casos isolados que não envolvem os escalões superiores do governo ou as estruturas do poder económico. Esta é, muitas vezes, definida em contraposição com a corrupção em larga escala ou “grande corrupção”. Uma vez que a corrupção comece a permear as estruturas de governação, poderá conduzir a formas mais institucionalizadas, como a “captura estatal”, na qual as elites sociais (nos dias que correm, as elites económico-financeiras) elegem os governantes de forma a favorecer a prossecução dos seus interesses particulares em detrimento do interesse público. Em geral, a situação de captura estatal surge “quando a legislação, formalmente desenvolvida e corretamente aprovada pelo órgão legiferante, garante benefícios de uma forma corrupta” (Graycar, 2015, p. 88). O termo foi inicialmente associado a aqueles casos em que as elites económico-financeiras se aproveitavam dos recursos estatais para a obtenção de benefícios privados. Hellman e Kaufmann (2001) definem a “captura estatal” como “os esforços levados a cabo pelas empresas para moldarem as leis, as políticas e as normas estatais em seu favor através da oferta de benefícios privados ilícitos a funcionários públicos”. Quem detém poder no setor privado pode influenciar (ou subornar) parlamentares e funcionários públicos, de forma a que estes criem e apliquem legislação, por exemplo, dando a determinadas empresas autorização legal para procederem à exploração de recursos naturais. A captura estatal poderá ocorrer independentemente do regime político de cada país, existindo maior suscetibilidade de se vir a verificar em economias de transição, em que os Estados se encontram em processos de (re)construção das suas instituições. Não obstante, a captura estatal pode igualmente ocorrer em democracias desenvolvidas e estabilizadas, especialmente naqueles casos que envolvem lobistas que trabalhem em defesa dos interesses de empresas ou associações industriais. Quando tais lobistas, como explica Graycar, “procuram a criação de legislação a favor das suas atividades ou com vista a prejudicar os concorrentes, coloca-se a questão de saber se ainda nos situamos no domínio do processo democrático de representação de interesses, ou se tais decisões e leis são, antes, compradas” (Graycar, 2015, p. 89).

A doutrina que tem estudado o fenómeno da corrupção nos países da Europa central e de leste chama a atenção para o facto de um Estado poder ser capturado pelas próprias elites políticas para o seu benefício pessoal (Mungiu-Pippidi, 2006; Innes, 2013). Também nesse sentido, Fazekas e Toth (2016, p. 320) consideram que se deve entender a captura estatal como “uma específica estrutura em rede na qual os sujeitos corruptos se agrupam em torno de partes do Estado, agindo coletivamente com vista a alcançar os seus objetivos particulares, em detrimento do interesse público”. Levitsky e Ziblatt (2018, p. 78) utilizam a analogia dos árbitros de futebol para explicar como é que as elites políticas capturam as instituições estatais. Os árbitros – tal como as instituições do Estado – devem laborar de forma independente e neutra para garantir que todos os futebolistas participem no jogo de forma justa e respeitem regras. No entanto, se alguns jogadores (neste caso, as elites políticas) estiverem em conluio com os árbitros, então será fácil para eles desrespeitar as regras do jogo. Se um tal conluio se mantiver por um largo período de tempo, os jogadores poderão mesmo reescrever as regras, para assegurar a sua vantagem e continuar a vencer futuros jogos. A mesma exata lógica se poderá aplicar às instituições estatais, as quais, como os árbitros, poderão vir a ser controladas pelas elites políticas e deixar de servir o interesse público. Apesar de, em teoria, o Estado poder ser capturado pelas empresas ou pelos partidos políticos, não se estabeleceu ainda, na prática, uma fronteira clara entre estas duas formas de captura estatal. Note-se que, neste contexto, Wallis (2006, p. 25) distingue entre corrupção sistémica, quando a política corrompe a economia, e corrupção venal, quando a economia captura a política.

 
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