Este módulo é um recurso para professores 

 

Uma abordagem baseada nos direitos humanos

 

Os diferentes vínculos estabelecidos entre corrupção e direitos humanos – e, especialmente, a conclusão de que a corrupção impede o pleno gozo de direitos humanos – conduziram a que a doutrina e profissionais defendessem uma abordagem da corrupção à luz dos direitos humanos. Esta abordagem procura enfatizar a centralidade dos indivíduos como “titulares de direitos” e o papel dos Estados como “titulares de deveres” (Peters, 2018; UNHRC, 2019). A abordagem da corrupção à luz dos direitos humanos complementa a abordagem criminológica da corrupção. As normas anticorrupção são, normalmente, aplicadas no domínio jurídico-penal, i.e. por via da criminalização de certas condutas pela legislação interna e pela investigação e punição dos agentes do crime. A abordagem criminológica da corrupção encontra-se refletida na UNCAC e em outras convenções internacionais, bem como em leis nacionais um pouco por todo o mundo (vide discussões relevantes no Módulo 4, Módulo 5, Módulo 6, Módulo 12 e Módulo 13 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção). A abordagem da corrupção à luz dos direitos humanos e a abordagem criminológica complementam-se reciprocamente porque enfatizam diferentes danos e responsabilidades. A abordagem criminológica assume que o Estado (e aqueles que este representa) sofreu danos com os atos de corrupção levados a cabo por certos sujeitos, como autoridades, agentes ou funcionários públicos que aceitaram um suborno ou que se apropriaram indevidamente de fundos públicos. A abordagem da corrupção à luz dos direitos humanos concentra a sua atenção em como o Estado violou as suas obrigações ao falhar na proteção das suas populações contra a corrupção ou na disponibilização de mecanismos de reparação. Nos seguintes parágrafos, são discutidas as vantagens e críticas a esta abordagem da corrupção à luz dos direitos humanos.

 

Vantagens da abordagem da corrupção à luz dos direitos humanos

A doutrina e outros profissionais elaboraram um conjunto de argumentos a favor da adoção de uma abordagem da corrupção à luz dos direitos humanos. Alguns desses argumentos encontram-se resumidos abaixo (para uma discussão mais aprofundada, vide Hemsley, 2015; Merkle, 2018; Peters, 2018): 

Centrada na vítima

A abordagem da corrupção à luz dos direitos humanos pode colocar em destaque perspetivas que colocam a vítima no centro do combate contra a corrupção. Tal é levado a cabo enfatizando os efeitos negativos da corrupção para um indivíduo ou grupo de indivíduos normalmente afetados pela corrupção (que são, na maioria dos casos, grupos vulneráveis e marginalizados) e para a sociedade como um todo (UNHRC, 2015). De acordo com Rothstein e Varraich (2017, p. 60), abordar a corrupção a partir do discurso de direitos humanos permite-nos colocar o foco na vítima e nos custos humanos que estão em causa. Uma tal abordagem holística não se concentra apenas nas consequências económicas e criminais da corrupção, mas também nas vítimas, especialmente naquelas que pertencem a grupos vulneráveis e marginalizados, e pode ajudar a capacitar os indivíduos afetados pela corrupção e transformá-los em atores no combate a este problema. Uma abordagem da corrupção à luz dos direitos humanos pode, além disso, alertar para os danos cumulativos da corrupção, da opressão e da desigualdade (Peters, 2018).

Aumento da transparência e participação

A transparência e a participação permitem o escrutínio e monitorização do processo de tomada de decisão governamental, assim aumentando a probabilidade de que a corrupção seja detetada e de que os direitos humanos sejam considerados, promovidos e protegidos. A transparência refere-se à disponibilização pública da informação sobre os processos de tomada de decisão, tornando-a facilmente verificável. A transparência é associada ao direito do público de conhecer os processos e ações governamentais. Esta desempenha um papel fundamental na facilitação da participação de partes interessadas, como a sociedade civil, nos processos governamentais de tomada de decisão. A transparência e a participação são princípios anticorrupção consagrados na UNCAC (arts. 5.º e 13.º UNCAC).

Reforço da prestação de contas

Níveis elevados de participação e transparência contribuem para a capacitação dos cidadãos para uma melhor monitorização dos titulares do poder e das políticas públicas e para exigir a prestação de contas, reduzindo a corrupção. A UNCAC incumbe os Estados de criar vários mecanismos que reforçam a prestação de contas, como (i) políticas participativas na formulação e análise do orçamento; (ii) mecanismos de monitorização da despesa pública que permitam aos cidadãos saber como o governo emprega os fundos e recursos; e (iii) meios participativos de monitorização e avaliação (UNCAC, arts. 9.º, 10.º). A disponibilização de tal informação sobre o orçamento ou a despesa pública pode estabelecer as bases para um conjunto de mecanismos de prestação de contas existentes no domínio dos direitos humanos. Os procedimentos de queixa individual associados aos órgãos dos tratados de direitos humanos, por exemplo, constituem um promissor mecanismo ao abrigo do qual as vítimas individuais de corrupção podem procurar a reparação dos danos que lhe foram causados. Para uma discussão sobre prestação de contas em contexto de anticorrupção, vide o Módulo 3 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção.

Mecanismos de reparação dos danos causados às vítimas

Se realizadas com cautela, a denúncia de casos de corrupção e apresentação de queixas junto dos decisores dos sistemas internacional e regionais de direitos humanos e a utilização de mecanismos de monitorização podem ajudar a combater a corrupção, mormente ao disponibilizarem meios de reparação dos danos causados à vítima. Para uma discussão relacionada, concentrada na justiça restaurativa e em abordagens de reparação dos danos causados às vítimas no quadro dos esforços anticorrupção no setor privado, vide esta publicação num blog, por Andrew Spalding. Deve notar-se que a UNODC não julga, nem providencia qualquer reparação às vítimas. Antes, ela trabalha com os Estados no reforço da sua capacidade e dos seus quadros jurídicos e institucionais anticorrupção e auxilia-os a implementar a UNCAC.

Mais atores no combate à corrupção

Reconhecer a corrupção como uma violação de direitos humanos pode ajudar a complementar os atuais esforços anticorrupção, ao permitir que os tribunais e comissões de direitos humanos, bem como os tribunais constitucionais, conheçam casos relacionados com os direitos individuais violados por atos de corrupção (embora tal também acarrete riscos, como se verá mais adiante). Para lá das comissões e tribunais internacionais e regionais de direitos humanos, existe um conjunto de relevantes atores no campo dos direitos humanos, como relatores especiais, agências nacionais e organizações não-governamentais. Como explicado por Davis (2019), estes diferentes atores têm relevantes poderes e capacidades para investigar e recolher informações sobre a corrupção. No entanto, Davis (2019, pp. 1294–1295) também alerta para o facto de que tais poderes, para serem úteis, deverem assumir uma natureza complementar e ser coordenados com os esforços de investigação dos atores anticorrupção:

O regime dos direitos humanos tem uma capacidade considerável para a investigação em matéria de corrupção, mormente ao abranger comissões e tribunais internacionais, mas também relatores especiais, agências nacionais e organizações não-governamentais. Alguns destes órgãos monitorizam, com regularidade, determinadas entidades e tópicos, enquanto outros operam ad hoc. Estes atores apresentam capacidades, conhecimentos e reivindicações de legitimidade variáveis, mas, em conjunto, podem reunir recursos impressionantes. Uma advertência é, porém, necessária: mais investigação não é necessariamente positiva. Se os investigadores em matéria de direitos humanos recolhem a mesma informação que as organizações anticorrupção, disseminando-a pelos mesmos canais, então a análise em matéria de direitos humanos pode não adicionar muito ao processo. Mesmo neste cenário, porém, os atores de direitos humanos podem desempenhar um papel útil na confirmação da informação recolhida por outras fontes.

 

O direito a viver livre de corrupção

O principal argumento associado à abordagem da corrupção à luz dos direitos humanos é o de que o reconhecimento da corrupção como uma violação de direitos humanos permite uma melhor efetivação e reparação dos mesmos (Peters, 2018). As vítimas individuais de corrupção podem, por exemplo, fazer uso de queixas individuais associadas aos órgãos dos tratados de direitos humanos para alcançar um certo nível de prestação de contas. Alguns doutrinadores, como Spalding e Murray (2015) levaram esta ideia ao extremo, defendendo que o direito a viver livre de corrupção devia ser reconhecido como um “direito humano fundamental e inalienável”. Por outras palavras, alguma doutrina defendeu que o direito a viver livre de corrupção é, ou devia ser, um direito humano autónomo. Spalding (2019, p. 3) defende que a modelação deste direito como um direito humano implica que (i) a corrupção não é um fenómeno cultural, nem depende da natureza humana; (ii) o Estado pode violar o direito, mas não o poderá afastar; e que (iii) a efetivação vigorosa das medidas anticorrupção não é apenas possível, ela é essencial. Uma posição similar é defendida por Gebeye (2012, p. 18), que defende que “os seres humanos têm o direito humano básico de viver numa sociedade livre de corrupção”. Por agora, o conceito de direito a viver livre de corrupção é apenas uma mera aspiração.

 

Críticas à abordagem da corrupção à luz dos direitos humanos

A abordagem da corrupção à luz dos direitos humanos tem sido, por diversas razões, sujeita a críticas. Uma das maiores críticas é a de que os órgãos de direitos humanos não têm experiência para auxiliar os Estados a lidar com o complexo fenómeno da corrupção e podem, por isso, emanar recomendações que não são apropriadas aos vários aspetos e causas deste fenómeno. O risco, como sublinha Rose (2016, p. 419), é o de que a existência de “diferentes órgãos dos tratados, agências das Nações Unidas e organizações internacionais, todas prescrevendo medidas anticorrupção de natureza variada, [possa conduzir a que] mensagens repetidas e sobrepostas comecem a revelar-se vazias ou a perder o seu sentido”. Rose (2016, p. 417) também criticou os órgãos de direitos humanos, particularmente o Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais, por falta de clareza conceitual sobre a forma como as condutas corruptas efetivamente violam direitos humanos, arriscando assim um aumento do ceticismo face ao papel dos direitos humanos no combate à corrupção (vide também Peters, 2018, p. 1251). De forma simples, a descrição de muitas questões relacionadas como a corrupção como questões de direitos humanos pode conduzir a que as normas de direitos humanos e as normas anticorrupção não sejam levadas a sério. No mesmo sentido, Rose-Sender e Goodwin (2010, pp. 1–3) defendem que as tentativas de associar o discurso dos direitos humanos e da corrupção são “ou tão diretas a ponto de se tornar prosaicas, ou então incoerentes quando consideradas no sentido de se sugerir um vínculo verdadeiramente profundo entre ambos os vetores”. Afirmam, além disso, que tais tentativas fazem parte, embora de forma discutível, de uma tendência mais ampla ao nível do desenvolvimento do direito internacional de integrar questões autónomas que despoletam preocupação internacional com os direitos humanos.

Esta tendência de associar os direitos humanos com outras questões de direito internacional é, por vezes, designada de “human rightism”, a qual pode favorecer os direitos humanos ao integrá-los em outras áreas do direito internacional, mas também pode resultar no aumento do ceticismo face aos mesmos e a um défice no tratamento especializado das questões de direitos humanos (para uma interessante crítica, vide Pronto, 2007). É importante notar que, como clarificado por este módulo, nem todos os atos de corrupção violam direitos humanos e a relação causal entre corrupção e violações de direitos humanos nem sempre é fácil de estabelecer. O exemplo clássico, como discutido acima, é o de que os fundos públicos indevidamente apropriados por corruptos não seriam necessariamente alocados para concretizar direitos humanos (Davis, 2019, pp. 1290–1291; Rose, 2016, pp. 415–416). Assim sendo, nem todos os atos de corrupção violam direitos humanos. No entanto, quando um indivíduo demonstre a existência de um nexo entre a sua privação de um direito protegido e um específico ato de corrupção, pode considerar-se que a corrupção violou o seu direito. Neste caso, a abordagem da corrupção à luz dos direitos humanos surge como um mecanismo complementar para se dar resposta a este fenómeno, o qual surge ao lado da abordagem anticorrupção convencional de tipo criminológico.

 
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