Este módulo é um recurso para professores 

 

O impacto da corrupção em direitos humanos específicos

 

Como indica o website do SDG 16, o custo dos crimes relacionados com a corrupção para os países em desenvolvimento é de certa de 1,26 triliões de dólares por ano. Este desperdício e desvio de fundos públicos deixa os governos com menos recursos para concretizarem as suas obrigações em matéria de direitos humanos, para prestarem serviços e para incrementarem o nível de vida dos seus cidadãos. Esta secção discutirá algumas das formas através das quais a corrupção favorece a violação de direitos humanos específicos. Apesar de a discussão ser levada a cabo em torno da violação de direitos individuais (de primeira e segunda geração) consagrados no Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos (ICCPR) e no Pacto sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais (ICESCR), em alguns casos, tais violações também impedem a prossecução dos direitos coletivos (de terceira geração). Por exemplo, quando a corrupção viola os direitos económicos e sociais, como o direito a um nível de vida suficiente (art. 11.º do ICESCR), tal também poderá afetar a prossecução do direito coletivo ao desenvolvimento. Outro exemplo é quando a corrupção conduz à poluição (vide a discussão neste Módulo relativa ao direito à saúde) e, nessa medida, viola o direito coletivo a um ambiente limpo e sadio. A discussão abaixo fornece vários exemplos das formas através das quais a corrupção se relaciona com violações de direitos humanos específicos. Os primeiros exemplos são relativos a direitos civis e políticos, enquanto que os segundos se relacionam com os direitos económicos, sociais e culturais. 

O impacto da corrupção é, muitas vezes, mencionado relativamente aos direitos económicos, sociais e culturais, ainda que nem sempre seja assim. Os direitos económicos, sociais e culturais são tipicamente reputados como aqueles que exigem um maior investimento de recursos públicos, mormente quando comparados com os direitos civis e políticos, os quais costumam ser associados a obrigações estaduais de abstenção relativamente a intromissões nas liberdades individuais. No entanto, a realização de todas as categorias de direitos humanos pode, de facto, requerer a alocação de recursos públicos substanciais. Reconhecendo o facto de que os Estados com recursos limitados podem necessitar de mais tempo para concretizar os direitos económicos, sociais e culturais, o ICESCR consagra um princípio da “realização progressiva” dos mesmos. Tal significa que, apesar de os Estados terem a obrigação de tomar medidas imediatas para a sua realização, podem fazê-lo apenas na medida do possível e considerando os recursos disponíveis. Como explicado por esta relevante síntese do OHCHR:

A falta de recursos não pode justificar a inação ou o adiamento indefinido da implementação de medidas para a concretização destes direitos. Os Estados devem demonstrar que estão a levar a cabo todos os esforços para promover o gozo dos direitos económicos, sociais e culturais, mesmo quando os recursos são escassos. Por exemplo, independentemente dos recursos disponíveis, o Estado deve, de forma prioritária, procurar garantir que todas as pessoas têm acesso a, pelo menos, níveis mínimos de direitos, a programas direcionados à proteção dos mais pobres, dos marginalizados e dos desfavorecidos.

Da mesma forma, a realização dos direitos civis e políticos pode exigir a disponibilização de consideráveis recursos. Por exemplo, é necessária uma vasta quantidade de fundos para manter o sistema judicial e prisional ou para garantir a realização de eleições livres e justas. A realização dos direitos civis e políticos pode, portanto, sofrer da má gestão ou desvio de fundos públicos. Além disso, como se demonstrará adiante, existem outras formas através das quais os direitos civis e políticos podem ser negativamente afetados pela corrupção.

 

Direitos à igualdade e à não-discriminação (direitos civis e políticos)

O direito à igualdade encontra-se referido em todos os principais tratados de direitos humanos (vide, por exemplo, o art. 2.º/1 do ICCPR). Todo o indivíduo tem o direito a ser tratado de forma igual e não discriminatória pelo Estado. O Comité para os Direitos Humanos, que monitoriza a implementação do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, define a discriminação como:

Qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em qualquer fundamento, como a raça, a cor, o sexo, a língua, a religião, a orientação política ou qualquer outra opinião, a nacionalidade ou origem social, a propriedade, o nascimento ou qualquer outro estatuto, e que tenha por propósito ou efeito anular ou impedir o reconhecimento, o gozo e o exercício, por todas as pessoas e em pé de igualdade, de todos os direitos e liberdades (Comentário Geral n.º 18 do Comité para os Direitos Humanos, parágrafo 7). 

De acordo com esta definição, os atos de corrupção são discriminatórios em certas situações porque 1) intrinsecamente, distinguem, excluem, restringem ou preferem; e ii) têm como propósito ou efeito anular ou impedir o igual reconhecimento, gozo e exercício dos direitos e liberdades (ICHRP, 2009, p. 32).

O direito a ser tratado de forma igual é violado, por exemplo, quando se exige a alguém o pagamento de um suborno para a prestação de um dado serviço público. Nesse caso, aqueles que tiveram acesso ao mesmo sem ter de pagar qualquer quantia obtêm um tratamento mais favorável e o direito à igualdade das pessoas que tiveram de o pagar é claramente violado. Os danos de uma tal violação são particularmente graves quando afetam pessoas pertencentes a grupos vulneráveis ou marginalizados, como as minorias sociais, os grupos indígenas, os migrantes em situação irregular, as minorias sexuais, etc. Tais indivíduos sofrem desproporcionadamente deste tipo de violações de direitos humanos porque a sua posição na sociedade os torna alvos fáceis para a corrupção, e porque os mesmos tendem a não conseguir suportar o custo de tais subornos (Boersma, 2012; Figueiredo, 2017; ICHRP, 2009).

Os resultados discriminatórios da prática da corrupção também tendem a violar outros direitos humanos, como o direito à educação, à saúde e à habitação. Os direitos à igualdade e à não discriminação são, igualmente, violados por atos não monetários de abuso de poder, como quando o sexo ou o corpo humano são utilizados como contrapartida para o ato corrupto. Tais casos de corrupção por via de assédio sexual (comummente designada de sextorsion) são discutidos com maior detalhe no Módulo 8 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção. Outro tópico de relevo abordado neste Módulo 8 é o nexo entre a corrupção e a discriminação baseada no género, i.e. a forma como o género pode influenciar a ocorrência de corrupção e como a corrupção pode ter impactos que afetam diferentemente homens e mulheres. O Módulo 8 também aborda o papel que a inclusão e a diversidade podem desempenhar, de forma geral, na mitigação da corrupção.

 

Os direitos a um julgamento justo e equitativo e a uma reparação eficaz (direitos civis e políticos)

O direito a um julgamento justo e equitativo é um direito humano essencial para a salvaguarda do Estado de Direito (arts. 14.º e 15.º do ICCPR). O mesmo incorpora o princípio da igualdade, o qual está na base da administração da justiça. O direito a um julgamento justo e equitativo abrange uma série de direitos processuais, como o direito a um juiz independente e imparcial, o direito à igualdade de armas, o direito de acesso aos tribunais e o direito à presunção da inocência. O direito a um julgamento justo e equitativo está intimamente relacionado com o direito a uma reparação eficaz, porque nenhum meio de reparação pode ser eficaz sem que se reconheça a igualdade perante a lei e a existência de procedimentos judicial justos (art. 3.º do ICCPR). 

A corrupção no setor judicial prejudica o direito a um julgamento justo e equitativo, minando a independência, a imparcialidade e a integridade do poder judicial. A falta de independência dos juízes, dos magistrados do ministério público e dos advogados afeta diretamente o direito a um julgamento justo e equitativo. Deste modo, se limita a administração eficaz e eficiente da justiça, bem como a credibilidade do sistema judicial no seu todo (vide uma discussão relacionada no Módulo 14 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Prevenção do Crime e Justiça Criminal). Quando a corrupção tem lugar no processo de seleção do juiz ou no processo judicial em si mesmo, são imediatamente violados o direito à imparcialidade e o direito da(s) parte(s) a um julgamento justo e equitativo (ICHRP, 2009, pp. 37–38). Os indivíduos são, igualmente, privados do igual acesso à justiça quando os funcionários públicos exigem o pagamento de subornos para se recorrer ao sistema judicial ou para se acelerar o andamento de um dado processo (Boersma, 2012, p. 208).

O impacto da corrupção no setor judicial pode ir além de casos individualizados, minando outros direitos, espalhando a parcialidade face aos agentes corruptos e diminuindo a confiança no sistema de justiça (o que, por sua vez, pode conduzir a mais corrupção – vide Figueiredo, 2017). Uma das principais funções do sistema de justiça é a de promover e proteger os direitos humanos de todos os indivíduos na sociedade. Se direitos humanos forem violados, o sistema judicial pode desempenhar um papel essencial na identificação dessas violações e na proteção dos direitos humanos dos indivíduos. No entanto, tal só poderá ser alcançado quando o sistema de justiça funciona bem e de forma transparente, responsável e livre da corrupção. Nas sociedades com elevados níveis de corrupção, um sistema de justiça que proteja o direito a um julgamento justo e equitativo pode revelar-se fundamental para a salvaguarda de uma série de direitos humanos afetados pela corrupção. Para mais recursos em matéria de corrupção e integridade judicial, vide o website da Rede Global de Integridade Judicial da UNODC.

 

Direitos de participação política (direitos civis e políticos)

A participação política tem sido descrita como a “marca registada da democracia” (UNHRC, 2015, para. 4). Os direitos à participação política incluem o direito a participar nos assuntos públicos e a exercer o poder político; o direito a formular políticas em todos os níveis estaduais; o direito a votar e a ser eleito; e o direito de igual acesso a cargos públicos (vide, por exemplo, o art. 25.º do ICCPR). Os Estados têm a obrigação de adotar medidas para assegurar o gozo total, efetivo e igual de todos estes direitos. Os Estados devem, igualmente, proteger as liberdades de expressão, informação, reunião e de associação que lhe vêm associadas. As práticas corruptas podem ter efeitos nefastos em todos os aspetos e dimensões da participação política. Por exemplo, a compra de votos é uma violação do direito ao voto, porque restringe a liberdade de voto dos cidadãos e afeta o processo eleitoral ao minar a sua legitimidade (Pearson, 2013, p. 55). Outro exemplo, associado ao direito a ser eleito, é quando os membros de uma comissão eleitoral impedem alguém de se registar como candidato, em razão de terem recebido um suborno ou devido a tráfico de influências, i.e. da utilização abusiva dos seus poderes para assegurarem que outra pessoa é eleita, na expectativa de virem a receber vantagens indevidas por parte dessa mesma pessoa. Um terceiro exemplo está relacionado com o direito de igual acesso a cargos públicos. Este direito pode ser violado quando os cargos públicos são obtidos por via de meios corruptos, como o suborno da pessoa encarregada da contratação ou de práticas de nepotismo (Bacio-Terracino, 2008, p. 18). O direito de igual acesso a cargos públicos implica a admissão em tais cargos seja realizada com pleno respeito pelo princípio da igualdade e outros princípios gerais de mérito.

 

Os direitos a um nível de vida suficiente, à alimentação, à habitação e à saúde (direitos económicos, culturais e sociais)

O artigo 11.º do ICESCR consagra o direito a um nível de vida suficiente, o qual inclui os direitos a “alimentação, vestuário e alojamento suficientes, bem como à melhoria constante das condições de existência”. O artigo 12.º consagra o direito “ao mais elevado nível de saúde física e mental”. Além disso, o artigo 27.º da CRC consagra os direitos à alimentação, habitação e saúde.

Existem vastas evidências relativamente ao impacto da corrupção no direito á alimentação. O relatório de 2001 do Relator Especial para o Direito à Alimentação identifica sete principais obstáculos que limitam e previnem a realização do direito à alimentação, entre os quais é mencionado o problema da corrupção. A Declaração de Roma sobre Segurança Alimentar à Escala Mundial também reconheceu que a corrupção contribui significativamente para a falta de segurança alimentar. A corrupção pode violar o direito à alimentação ao desviar fundos destinados à assistência e apoio social (ICHRP, 2009). O peculato de fundos que estão destinados à assistência alimentar, por exemplo, constitui uma violação da obrigação do Estado de providenciar alimentos a aqueles que não conseguem ter acesso aos mesmos por via dos seus próprios meios. O direito à segurança alimentar é, igualmente, ameaçado pela colocação de produtos alimentares de duvidosa qualidade no mercado em razão de práticas corrupção, como acontece quando um funcionário público ignora os critérios estabelecidos para a emissão de licenças de produção alimentar ou não exerce as suas funções diligentemente no quadro dos procedimentos de inspeção, naturalmente em troca de um suborno (ICHRP, 2009, p. 44).

A corrupção também viola diversas dimensões do direito à saúde (vide o Relatório de 2012 da Assembleia Geral), mormente ao nível da “gestão de recursos financeiros”, da “distribuição de produtos médicos” e do “relacionamento entre os profissionais de saúde e os pacientes” (ICHRP, 2009, p. 53). Tal como ocorre com os outros direitos económicos, sociais e culturais, o peculato de fundos destinados ao setor da saúde viola o direito à saúde de todos os membros de uma sociedade (Boersma, 2012, p. 264). A corrupção associada a contratos públicos também pode violar o direito à saúde ao ameaçar a qualidade das instalações de saúde ou o fornecimento de bens de saúde (ICHRP, 2009, p. 53). O direito à saúde, na sua dimensão de acessibilidade, é violado quando alguém paga subornos para ter acesso a serviços de saúde, mormente a medicamentos, tratamentos médicos ou a anestesia. As práticas corruptas podem conduzir a violações generalizadas do direito à saúde, como acontece quando a indústria farmacêutica coloca à venda medicamentos que não são seguros. A corrupção pode também impactar o direito à saúde quando os funcionários públicos permitem às empresas poluir o ambiente (Boersma, 2012, pp. 261–262). A violação do direito à saúde está profundamente relacionada com a violação de direitos ambientais, porque esta – ao dar origem a ambientes pouco saudáveis e sadios – pode colocar diretamente em causa o direito à saúde.

O direito à habitação pode ser afetado pela corrupção quando, por exemplo, as autoridades, agentes ou funcionários públicos exigem subornos como condição para apoiarem programas de habitação social. De forma mais genérica, o direito à habitação e outros direitos relacionados com o nível de vida podem não ser realizados em locais fustigados pela pobreza em razão da corrupção. Assim, a pobreza causada pela corrupção é especialmente nefasta para o gozo de direitos humanos. Para uma discussão sobre corrupção e pobreza vide este vídeo, com a duração de 3 minutos.

 

Direito à educação (direitos económicos, sociais e culturais)

O direito à educação é um “direito humano em si mesmo e um meio indispensável para a realização de outros direitos humanos”. A educação é crucial para a autorrealização da pessoa e para o desenvolvimento da sociedade como um todo (Coomans, 2010, p. 281), considerando que é um veículo para a capacitação dos mais desfavorecidos e para a melhoria dos standards económicos e sociais. O direito à educação encontra-se consagrado em vários tratados de direitos humanos e inclui o direito a receber educação (dimensão social) e o direito a escolher as instituições educativas que refletem os valores pessoais de cada indivíduo (dimensão de liberdade) (ICESCR art. 13.º). Os indivíduos devem ter acesso a educação que seja não-discriminatória, livre e obrigatória, no caso da educação primária (Coomans, 2010, pp. 284–288). Além disso, a educação deve ser dada a partir de uma abordagem holística, a qual promova os valores associados aos direitos humanos e preserve a diversidade multicultural (vide, por exemplo, o Relatório de 2014 do Relator Especial do direito à educação). De acordo com o Comentário Geral n.º 13 ao CESCR, os Estados têm a obrigação de garantir as seguintes dimensões do direito à educação: i) disponibilidade, mormente assegurando a existência de um número suficiente de instituições de ensino em funcionamento; ii) acessibilidade física e económica para todos; iii) educação de elevada qualidade e culturalmente aceitável; iv) educação adaptável aos diversos contextos culturais e sociais.

As práticas corruptas podem, em particular, minar o acesso à educação e à qualidade dos serviços de educação, limitar o desenvolvimento social e económico da sociedade como um todo e, especialmente, dos grupos mais vulneráveis e marginalizados (ICHRP, 2009, p. 57). As práticas corruptas podem, por exemplo, colocar em perigo o direito ao acesso livre e equitativo à educação primária e secundária, quando o pagamento de um suborno seja condição necessária para a admissão do estudante ou para a receção de materiais, como livros, que deviam ser distribuídos gratuitamente (Boersma, 2012). Além disso, a corrupção sexual tem-se generalizado no setor da educação de alguns países – por exemplo, com os professores a pedirem favores sexuais em troca de melhores classificações (vide uma discussão relacionada no Módulo 8 e no Módulo 9 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção). Devido às suas consequências a longo prazo em todos os níveis societais, a corrupção no setor educacional é particularmente grave (Figueiredo, 2017). Para uma discussão mais detalhada em torno da corrupção no setor da educação, vide o Módulo 9 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção.

 
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