Este módulo é um recurso para professores 

 

Análise do nexo entre corrupção e direitos humanos

 

O campo dos direitos humanos começou a emergir após a Segunda Guerra Mundial, enquanto que o campo do combate à corrupção se desenvolveu após o final da Guerra Fria. Na década de 90, a comunidade internacional reconheceu a necessidade de dar resposta e limitar a corrupção, a qual era encarada como um impedimento global para o desenvolvimento económico. Além disso, tornou-se claro que a corrupção mina a plena realização e gozo de todas as gerações de direitos humanos (vide, v.g., Barkhouse, Hoyland e Limon, 2018; Hemsley, 2015; Wolf, 2018). Por exemplo, como discutido abaixo com maior detalhe, os crimes de corrupção, como o suborno ou o peculato, podem limitar o acesso a cuidados de saúde, educação, água limpa ou os direitos de participação política (Boersma, 2012; Figueiredo, 2017; Rothstein e Varraich, 2017).

Hoje, raramente existe desacordo face ao facto de que a corrupção apresenta efeitos prejudiciais à proteção e gozo dos direitos humanos e no acesso equitativo de todos os cidadãos a bens e serviços relacionados com os direitos humanos (para mais informações, vide o website da OHCHR). A corrupção não apenas conduz a violações de direitos humanos específicos, mas também representa um obstáculo estrutural à implementação e gozo de todos os direitos humanos (UNHRC, 2015; Wouters, Ryngaert e Cloots, 2013, p. 35). Em alguns casos, a corrupção conduz à falência das instituições governamentais, tornando mais difícil aos países desenvolverem e implementarem os direitos humanos de forma apropriada. Além disso, a corrupção torna mais difícil aos Estados protegerem importantes direitos que ainda não encontram proteção à luz do direito internacional, mas que surgem consagrados e protegidos por muitas das constituições e leis nacionais, como o direito a um ambiente limpo e sadio. Assim, se uma fábrica polui, de forma regular, o ar de uma certa região, mas as autoridades não tomam medidas para reprimir tal comportamento porque foram subornadas nesse sentido, então os direitos ambientais (e, possivelmente, o direito à proteção da saúde) são violados em resultado da corrupção. A corrupção pode apresentar efeitos nefastos face à paz e à segurança (vide o Módulo 11 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção), criando condições favoráveis para o incremento do risco de violação dos direitos humanos.

A corrupção prejudica os direitos humanos de todos os indivíduos que compõem uma sociedade, mas os membros de grupos vulneráveis e grupos expostos à marginalização e discriminação poderão sofrer primeiro e poderão sofrer desproporcionadamente em razão da mesma. Os grupos de indivíduos que tendem a sofrer, coletivamente, os impactos negativos da corrupção são, nomeadamente, as mulheres, crianças, idosos, povos indígenas, migrantes em situação irregular e outros estrangeiros, pessoas com deficiência, reclusos, minorias sexuais e pessoas que vivem em situação de pobreza. Esses grupos, geralmente, dependem mais de bens e serviços públicos, mormente no campo da educação e da saúde, e têm meios limitados para procurar serviços alternativos prestados por privados (UNHRC, 2015). Normalmente, tais pessoas têm menos oportunidades para participar na formulação e implementação de políticas e programas públicos e não têm os recursos necessários para se defenderem contra eventuais violações de direitos, exigindo respeito pelos mesmos e procurando a sua tutela e reparação. A corrupção pode ter o efeito de agravar as atuais dificuldades sentidas por membros desses grupos no acesso a bens e serviços públicos, bem como no acesso à justiça. A corrupção, por outras palavras, pode agravar as violações dos direitos humanos já sentidas pelos membros de tais grupos. Para uma discussão relacionada com esta, vide aqui este estudo do Banco Mundial sobre como a corrupção afeta as comunidades mais vulneráveis e os mais pobres.

Outro grupo especialmente vulnerável a violações de direitos humanos relacionadas com a corrupção é o das pessoas envolvidas na investigação, denúncia e julgamento de crimes de corrupção (UNHRC, 2019). Todos os Estados têm a obrigação de proteger os direitos humanos das pessoas que pertençam a esses grupos, quando se encontrem dentro do seu território e sujeitos à sua jurisdição, e salvaguardá-los contra todo o tipo de violações de direitos humanos associadas com a corrupção (UNHRC, 2015, p. 8).

 

Declarações das Nações Unidas quanto ao nexo entre corrupção e direitos humanos

Considerando os seus efeitos nefastos para a sociedade e os direitos humanos, está claro que a corrupção não pode ser analisada como um crime económico “inofensivo” ou uma transação que apenas afeta os indivíduos diretamente envolvidos (Barkhouse, Hoyland e Limon, 2018). Esta ideia encontra-se plasmada em diferentes documentos e instrumentos das Nações Unidas, mormente a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção (UNCAC), o único instrumento anticorrupção juridicamente vinculativo e de índole universal. No preâmbulo desta Convenção, o antigo Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, destacou o impacto adverso da corrupção na sociedade e nos direitos humanos:

A corrupção é uma praga insidiosa que apresenta um conjunto vasto de efeitos corrosivos nas sociedades. Ela mina a democracia e o Estado de Direito, conduz a violações de direitos humanos, distorce os mercados, erode a qualidade de vida e facilita o crime organizado, o terrorismo e outras ameaças ao florescimento da segurança humana.

Os órgãos das Nações Unidas também enfatizaram os efeitos adversos da corrupção nos direitos humanos. Por exemplo, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (2015, 2016, 2019) elaborou um conjunto de relatórios quanto aos efeitos negativos da corrupção no gozo dos direitos humanos”, os quais alertam os Estados para a necessidade de se reconhecer e tratar este problema. A Assembleia-Geral das Nações Unidas (2015, preâmbulo) já afirmou que os efeitos da corrupção para os direitos humanos são “graves e devastadores”. O Relator Especial para a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos e degradantes fez afirmações semelhantes (A/HRC/40/59, para. 7). Para uma análise de algumas dessas afirmações, vide Peters, 2018, pp. 1252–1253.

Um documento das Nações Unidas que apresenta exemplos interessantes do nexo corrupção-direitos humanos é o Comentário Geral n.º 24, emanado em 2017 pelo Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (CESCR), o órgão que monitoriza a implementação do ICESCR. Apesar deste Comentário Geral se concentrar, essencialmente, nas obrigações dos Estados em matéria de direitos humanos no âmbito da atividade empresarial, também inclui afirmações mais genéricas sobre o impacto da corrupção nos direitos humanos. Por exemplo, no parágrafo 20, o Comentário Geral n.º 24 do CESCR dispõe que:

A corrupção constitui um dos maiores obstáculos à promoção e proteção eficaz dos direitos humanos, particularmente no que diz respeito à atividade empresarial. Ela mina a capacidade do Estado para mobilizar recursos destinados à prestação de serviços essenciais à realização dos direitos económicos, sociais e culturais. Ela conduz à discriminação no acesso a serviços públicos em prol daqueles que são capazes de influenciar as autoridades públicas, mormente por via do pagamento de subornos ou com recurso à pressão política. Assim, os denunciantes devem ser protegidos e vários mecanismos de combate à corrupção devem ser criados, garantindo-se a sua independência e o seu financiamento adequado.

 

O papel do setor privado no nexo corrupção-direitos humanos

Como referido no supramencionado Comentário Geral n.º 24 ao CESCR (2017), o setor privado, em particular as empresas, são atores fundamentais em crimes de corrupção que produzem efeitos negativos nos direitos humanos. Tal como definidos na UNCAC (arts. 15.º a 22.º), os atos de corrupção envolvem necessariamente o setor privado, desde logo por incluírem acordos entre os setores público e privado (sendo que, em alguns casos, as transações ocorrem apenas no seio do setor privado). O Comentário Geral, no seu parágrafo 18, nota que a obrigação dos Estados de proteger os cidadãos da atividade empresarial pode ter impactos negativos nos direitos humanos: 

Os Estados violam o seu dever de proteger os direitos do Pacto, por exemplo, quando falham em prevenir e contrariar condutas empresariais que constituem abusos desses mesmos direitos, ou que têm como efeito previsível conduzir a esses abusos, por exemplo, através da manipulação dos critérios para a aprovação de novos medicamentos, por não se atender aos requisitos associados às designadas “adaptações necessárias” para as pessoas com deficiência no quadro da contratação pública, pela concessão de licenças de exploração de recursos naturais sem que tenham sido tomados devidamente em conta os potenciais impactos adversos de tais atividades no gozo destes direitos por parte dos indivíduos e das comunidades, por se excluírem certos projetos ou áreas geográficas do âmbito de aplicação de leis que protegem os direitos consagrados no Pacto, ou através de falhas na regulação do mercado imobiliário e da atividade dos atores financeiros que nele operam de modo a garantir a todas as pessoas o acesso a uma habitação adequada e acessível. Tais violações são facilitadas quando não existem mecanismos de salvaguarda suficientes para dar resposta à corrupção de funcionários públicos ou entre privados, ou quando os abusos de direitos humanos são deixados impunes, em resultado de corrupção judicial.

Quando a corrupção emergiu como um problema no contexto das Nações Unidas na segunda metade da década de 70, os países em desenvolvimento defenderam a adoção de um conceito especialmente amplo de corrupção, que incluísse a influência imprópria das empresas nas instituições públicas (Ngugi 2010, pp. 246-247; Gathii 2009). Muitos países em desenvolvimento apoiaram, em particular, ideia de se adotar um Código de Conduta para as Empresas Transnacionais, o qual foi objeto de negociações nas Nações Unidas na década de 70. O Código foi proposto no contexto de discussões em torno de uma Nova Ordem Económica Internacional e foi impulsionado pelo forte interesse dos países em desenvolvimento em mitigar os efeitos deletérios das atividades empresariais internacionais (Gathii, 2009). No entanto, devido ao desenvolvimento político e económico, as negociações em torno do Código de Conduta fracassaram e as Nações Unidas substituíram a ideia de adoção de um código para as empresas internacionais (a partir de uma lógica top-down) por uma abordagem mais colaborativa, convidando as empresas a colaborar com as Nações Unidas e entre si, promovendo o bem comum. Estes esforços conduziram à celebração do Pacto Global das Nações Unidas, uma iniciativa voluntária e de colaboração entre as empresas e as Nações Unidas, destinada a promover práticas empresariais responsáveis e consagrando uma série de princípios relativos a direitos humanos e anticorrupção (Princípios 1, 2 e 10). As empresas que participam no Pacto Global comprometem-se a “apoiar e respeitar a proteção dos direitos humanos internacionalmente proclamados” e a assegurar que “não serão cúmplices de abusos de direitos humanos” (Princípios 1 e 2). Além disso, as empresas comprometem-se a trabalhar em conjunto “contra a corrupção em todas as suas formas, mormente o suborno e a extorsão” (Princípio 10). Adicionalmente, o UNGC também estabeleceu a Plataforma de Ação para a Paz, Justiça e Instituições Sólidas, destinada a desenvolver e promover os standards empresariais globais relativos à compreensão e análise do envolvimento das empresas na implementação do ODS 16.

Outro esforço internacional para sujeitar as empresas aos preceitos de direitos humanos são os Princípios-Guia das Nações Unidas sobre Negócios e Direitos Humanos de 2011, os quais estabelecem uma série de responsabilidades das empresas transnacionais em matéria de direitos humanos. Embora se trate de um instrumento de soft-law que, por essa razão, não cria obrigações juridicamente vinculativas para os Estados ou para as empresas, o mesmo revela uma inversão da tendência internacional no sentido de se desenvolverem normas capazes de alinhar as atividades empresariais aos standards internacionais de direitos humanos. Apesar destes princípios se concentrarem no papel do setor privado na defesa dos direitos humanos, os mesmos também estabelecem uma obrigação dos Estados de proteger os indivíduos de atividades empresariais prejudiciais e de fornecer soluções eficazes para os abusos dos direitos humanos derivados das mesmas. Cada princípio inclui um breve comentário. Alguns dos comentários fazem uma clara referência à corrupção e ao seu nexo com os direitos humanos (especialmente com o direito a um julgamento justo e equitativo). Por exemplo, o comentário ao Princípio 25, o qual respeita à questão do “acesso à justiça”, dispõe que “os procedimentos para o acesso à justiça devem ser imparciais, protegidos da corrupção e livres de influências políticas ou outros meios que possam influenciar o resultado”. O comentário ao Princípio 26, o qual respeita aos “mecanismos judiciais estaduais”, dispõe que “os Estados devem assegurar que... a realização da justiça não seja cerceada pela corrupção do processo judicial, que os tribunais sejam independentes de pressões económicas e políticas por parte de outros agentes estaduais ou atores empresariais”. Portanto, os Princípios 25 e 26 reconhecem que a corrupção e o direito a um processo justo e equitativo estão intimamente relacionados. O respeito por este direito pressupõe a prevenção da corrupção.

 

A Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável

Outro elemento relevante para se analisar o nexo entre corrupção e direitos humanos é a Agenda 2030 das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável e os seus 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (SDG). Apesar da Agenda não se basear explicitamente nos direitos humanos, os seus objetivos encontram-se alinhados com os mesmos. Os SDG concentram-se no desenvolvimento social, económico, político, cultural e ambiental por intermédio da boa governança, do Estado de Direito, do acesso à justiça, da segurança pessoal e do combate contra a desigualdade. A realização dos direitos humanos, incluindo o direito à saúde, a um nível de vida suficiente, à educação, à não-discriminação, à igualdade de género, ao desenvolvimento, é um dos objetivos dos SDG, resultando da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos e dos tratados internacionais de direitos humanos. Os órgãos dos tratados de direitos humanos, na sua contribuição oficial para a Agenda 2030, “identificaram a má gestão de recursos e a corrupção como obstáculos à alocação dos recursos para a promoção de direitos iguais”. De facto, a ideia de que a corrupção impede o desenvolvimento sustentável está expressamente consagrada no SDG 16, o qual dispõe que todos os Estados devem “reduzir substancialmente a corrupção e o suborno em todas as suas formas” e “estimular a recuperação” de bens públicos que tenham sido capturados pela corrupção até 2030. O website do SDG 16 realça o impacto desastroso da corrupção no desenvolvimento e para a condição humana:

A corrupção, o suborno, o furto e a evasão fiscal custam, por ano, cerca de 1,26 triliões de dólares aos países em desenvolvimento; este montante de dinheiro podia ser utilizado para auxiliar aqueles que sobrevivem com menos de 1,25 dólares por dia por, pelo menos, seis anos.

 
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