Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico Sete: Uma breve perspetiva sobre os desenvolvimentos atuais relativos às vítimas

 

Nas décadas que se seguiram à adoção da Declaração de 1985 pelas Nações Unidas, o Mundo mudou de modo significativo. A globalização avançou e um número crescente de pessoas deixaram os seus países para trabalharem ou estudarem no estrangeiro, ou para escaparem aos conflitos ou à pobreza. Os voos de baixo custo tornaram possíveis as frenquentes viagens para o estrangeiro, incluindo para lazer e turismo. Simultaneamente, a internet e os novos meios de comunicação, incluindo os emails e as redes sociais, tornaram-se numa parte importante do quotidiano das pessoas. As novas tecnologias e aparelhos, tais como os smartphones e tablets portáteis, estão omnipresentes em muitas partes do Mundo.

Esta nova realidade tem um impacto em todos os aspetos das nossas vidas. Não surpreende, pois, que o crime tenha igualmente mudado. Os ofensores adaptaram eficazmente as suas estratégias à área expandida potenciada pelos desenvolvimentos tecnológicos e a um Mundo cada vez mais globalizado. A “globalização” do crime viu o surgimento de novas formas de crime transnacional e internacional, incluindo várias formas de cibercrime (para mais informações sobre o cibercrime, atente-se à Série de Módulos Universitários E4J sobre Cibercrime). Ademais, os criminosos têm efetivamente procurado, e encontrado, lacunas entre os vários esforços nacionais de aplicação da lei e enquadramentos jurídicos, os quais exploram de modo a escapar à aplicação da lei e à acusação. Em resposta, os governos nacionais e a comunidade internacional adaptaram os seus enquadramentos jurídicos e políticos de modo a contarem com novas ameaças criminais e com criminosos que transcendem as fronteiras nacionais. Uma resposta particularmente importante consistiu na adoção, no ano de 2000, da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e respetivos Protocolos (2004), os últimos dando uma resposta jurídica ao tráfico de pessoas, ao tráfico ilícito de migrantes e ao tráfico de armas de fogo. Para mais informações, atente-se à Série de Módulos Universitários E4J sobre Criminalidade Organizada, Tráfico de Pessoas e Tráfico ilícito de Migrantes e sobre Armas de Fogo.

Estes desenvolvimentos tiveram igualmente um impacto nas vítimas de crime e afetaram a sua capacidade para aceder à justiça, tanto de uma forma positiva como negativa. Embora um desenvolvimento integral deste tópico se situe fora do escopo do presente Módulo, a secção seguinte toca nalguns aspetos relativos ao modo como os desenvolvimentos atuais afetam a justiça para as vítimas.

 

Desafios e respostas para a vitimização transfronteiriça

 

Desafios

Como decorrência da globalização, um número crescente de pessoas é afetado por algo frequentemente apelidado de “vitimização transfronteiriça”, ou seja, trata-se de casos nos quais o crime é cometido numa jurisdição externa à do país de origem da vítima. De facto, as vítimas “estrangeiras”, como por exemplo os turistas, estudantes internacionais ou trabalhadores estrangeiros, que se encontram fora do seu país de origem quando vivenciam um crime, poderão estar especialmente vulneráveis. Poderão enfrentar problemas linguísticos, bem como em termos de compreensão do sistema jurídico estrangeiro, fatores que frequentemente afetam diretamente a sua capacidade de denunciar o crime às autoridades relevantes. As diferenças culturais podem acrescer a estas dificuldades e exacerbar o risco de a vítima se sentir isolada e ficar traumatizada. Além disso, ao se encontrarem afastadas dos seus familiares e amigos, as vítimas poderão ver-se sem redes de apoio social nas quais necessitariam  confiar após terem sido vítimas de um crime. Qualquer um destes fatores, ou a sua combinação, piorará possivelmente a experiência criminal e o seu impacto na vítima.

As vítimas de crimes transfronteiriços poderão ver-se impedidas de aceder aos serviços que necessitem: poderão ver-se em situações que as impedem de aceder aos sistemas de assistência à vítima estabelecidos no país onde o crime se verificou, ou àqueles que existem no seu país de origem. Para além disso, quando a vitimização ocorre no estrangeiro, a estadia temporária no país onde o crime ocorreu pode estar a terminar. Este facto poderá fazer com que seja impossível para a vítima participar de modo significativo no processo penal.

Respostas

Contra este panorama, as décadas recentes têm assistido ao desenvolvimento de iniciativas encorajadoras com vista a mitigar as consequências negativas da globalização nas vítimas de crimes, incluindo o número crescente de vítimas sujeitas a crimes no contexto transfronteiriço.

Enquadramentos jurídicos recentes e mais sólidos

As vítimas podem contar cada vez mais com enquadramentos jurídicos que levam as suas necessidades e direitos em linha de conta, bem como nas instituições que lhes prestam apoio. Os estudos demonstram que, na última década, a Declaração das Nações Unidas de 1985 tem sido um catalisador para a mudança e uma importante fonte de inspiração para os legisladores por todo o Mundo (Letschert Groenhuijsen 2011). Por conseguinte, a justiça para as vítimas tem-se tornado mais evidente tanto em termos de mudança legislativa, que reafirma os direitos das vítimas, como através do surgimento de instituições governamentais e não-governamentais dedicadas, que servem as vítimas e atendem às suas necessidades.

De facto, novas leis aos níveis global, regional e nacional, têm vindo a fortalecer os direitos das vítimas, incluindo nos casos em que haja um elemento transnacional e/ou transfronteiriço.

A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (2004), no seu Artigo 25.º, contém uma previsão específica sobre as vítimas, visando que os Estados Partes, tomem, de acordo com as suas possibilidades, as medidas apropriadas para concederem assistência e proteção às vítimas de crimes organizados transnacionais, em particular nos casos de ameaça de retaliação ou de intimidação. Os Estados Partes estão igualmente obrigados a prever os procedimentos apropriados para fornecer o acesso à compensação e à restituição, bem como a permitir às vítimas que apresentem os seus pontos de vista e preocupações nas fases apropriadas do processo penal, bem como que os mesmos sejam levados em consideração.

As cláusulas respeitantes às vítimas são ainda mais extensas no Protocolo sobre Tráfico de Pessoas (2000) o qual estabelece, por exemplo, que os Estados Partes devem considerar implementar medidas com vista a providenciar a recuperação das vítimas de tráfico de pessoas em termos físicos, psicológicos e sociais, incluindo, nos casos apropriados, a cooperação com organizações não-governamentais e levando em consideração as necessidades específicas das vítimas. O Protocolo requer igualmente que os Estados Partes considerem a adoção de medidas legislativas ou outras medidas apropriadas que permitam às vítimas de tráfico de pessoas manter-se nos seus territórios, temporária ou permanentemente. O seu Artigo 8.º versa sobre o direito à repatriação, com devida atenção à segurança da pessoa vítima de tráfico de pessoas. Estas duas últimas previsões são particularmente importantes no que diz respeito aos direitos das vítimas comuns, visto que respondem à necessidade de muitas vítimas de tráfico sobre onde poderão ficar depois do crime que as terá levado a um país estrangeiro. Estão disponíveis materiais complementares sobre o tráfico de pessoas na Série de Módulos Universitários E4J sobre Tráfico de Pessoas e Tráfico Ilícito de Migrantes.

Ao nível regional, e particularmente na Europa, foi alcançada uma melhoria significativa no que se prende com a justiça para as vítimas, nomeadamente nos casos transfronteiriços. Em 2015, a União Europeia publicou uma diretiva extensa e vinculativa sobre os direitos das vítimas, prevendo padrões mínimos sobre os direitos, apoio e proteção às vítimas de crimes. A diretiva assegura que as pessoas que se tenham tornado vítimas de crime sejam reconhecidas e tratadas com respeito, bem como que recebam a proteção adequada, apoio e acesso à justiça em todos os Estados membros da União Europeia. A diretiva também atende especificamente aos assuntos relativos à vitimização transfronteiriça.

No passado, a União Europeia já tinha criado um sistema que visa permitir o reconhecimento mútuo de medidas de proteção em matérias cíveis, com vista a proteger efetivamente as vítimas de violência e de assédio. Em termos práticos, esta legislação mais recente significa que se uma vítima de violência obtiver uma ordem judicial de proteção ou de restrição num determinado ordenamento jurídico, a qual por exemplo insta a que o alegado abusador se mantenha a uma certa distância da vítima, uma tal ordem será igualmente válida noutras jurisdições dentro da União Europeia.

A União Europeia adotou igualmente duas diretivas vinculativas em matéria de compensação, reafirmando e implementando o direito das vítimas à compensação. Contudo, ainda perduram desafios significativos. Em concreto, é muito reduzido o número de vítimas que fazem uso da possibilidade de apresentarem requerimentos aos fundos de compensação estrangeiros através de organizações homólogas nos seus países de origem. Ademais, os critérios de elegibilidade para esses fundos variam consideravelmente de entre os vários ordenamentos jurídicos, limitando amiúde a possibilidade de as vítimas poderem requerer uma compensação (Letscherte Groenhuijsen, 2011).

Cooperação Reforçada

Paralelamente a estes desenvolvimentos legislativos, a cooperação regional e internacional em matérias relativas às vítimas também aumentou ao nível institucional. Os desenvolvimentos jurídicos acima mencionados significam que os países receberam as ferramentas para cooperarem mais estreitamente além-fronteiras, tanto no que se prende a levar os ofensores à justiça como tendo em vista melhorar a proteção das vítimas e dos seus direitos.

Novas organizações da sociedade civil que protegem as vítimas começaram a desempenhar um papel importante ao contribuir e promover essa cooperação. Em 1990, foi criada uma organização europeia de caráter genérico de prestadores de apoio às vítimas, a Victim Support Europe. Esta organização representa atualmente 50 organizações nacionais, providenciando apoio e serviços informativos a mais de dois milhões de pessoas em 27 países afetadas anualmente pelo crime. Em 2018, foram intensificados esforços no sentido de construir uma rede capaz, na região Asiática: a Victim Support Asia. Estas redes têm funções importantes, na medida em que advogam pela melhoria da legislação respeitante aos assuntos das vítimas, tanto ao nível regional como nacional, através da investigação e do desenvolvimento do conhecimento e ainda da capacitação ao nível nacional e local.

Ao nível global, a World Society of Victimology (WSV), uma organização não-governamental internacional com uma ampla adesão de prestadores de serviços às vítimas, académicos, representantes dos governos, médicos, juristas, profissionais encarregues da aplicação da lei e dos serviços de emergência, estudantes e membros do público interessado, continua a defender as vítimas. A WSV tem, por exemplo, defendido que as vítimas devem ter mais direitos no contexto dos pedidos de assistência jurídica mútua, ou seja, que a sua perspetiva seja considerada ao nível do intercâmbio formal de informações entre autoridades nacionais de justiça criminal nos casos que digam respeito a várias jurisdições.

 

As vítimas na era da internet: redes sociais, novas formas de comunicação e o seu impacto na justiça para as vítimas

A importância da Internet e das novas formas de comunicação fazem parte integrante das nossas vidas. A discussão que se segue irá abordar brevemente o modo como tal poderá afetar a justiça para as vítimas. Existem vários Módulos do E4J mais específicos e detalhados que desenvolvem tópicos relacionados, incluindo os Módulos 12, sobre Cibercrime Interpessoal, e o Módulo 13, sobre Cibercriminalidade Organizada da Série de Módulos Universitários E4J sobre Cibercrime.

Consequências Negativas

A internet e as redes sociais permitiram o surgimento de novas formas de crime. (O tópico respeitante ao uso ético das redes sociais será posteriormente explorado no Módulo 10. O cibercrime, nas suas várias dimensões, apresenta características específicas que o fazem especialmente desafiante na ótica da vítima. O cibercrime cria enormes danos e afeta muitas vítimas. Contudo, é frequentemente difícil levar os criminosos à justiça, em especial porque estão bem escondidos por detrás do manto do anonimato. O facto de os agentes poderem estar situados numa jurisdição diferente da das suas vítimas significa que eventualmente a justiça não será realizada da mesma forma para elas do que para as vítimas de crimes “convencionais”. Outro fator que diferencia o cibercrime de outras formas de crime é o facto de os cibercriminosos poderem interagir e ameaçar as suas vítimas virtualmente, e podem fazê-lo a qualquer momento, durante o dia ou noite, o que potencialmente reduz as oportunidades para que a vítima possa encontrar refúgio num local seguro. É igualmente muito difícil “limpar” a internet e apagar completamente a informação e as imagens que foram publicadas, ou mal utilizadas, com intenção criminosa. Em resposta a estas novas ameaças, uma ampla gama de iniciativas preventivas tem sido posta em prática em várias partes do Mundo, incluindo programas que visam educar o público, e os jovens em particular, sobre a utilização segura da internet, redes sociais e outros meios modernos de comunicação.

Aspetos positivos

Numa vertente positiva, a internet e as redes sociais oferecem um novo fórum que as vítimas podem usar para se informarem sobre os seus direitos e a disponibilidade de assistência e serviços. As autoridades competentes para a execução da lei, os prestadores de serviços de assistência às vítimas, os advogados das vítimas, legisladores e outras entidades interessadas oferecem um amplo leque de informação relevante e imediatamente acessível que pode ajudar as vítimas a orientarem-se na decorrência do crime e encontrar as primeiras respostas às perguntas urgentes que possam ter. A título exemplificativo, a cidade de Barcelona, em Espanha, criou um website dedicado a esta questão, em inglês, com vista a informar os turistas sobre como evitar ser alvo de criminosos, e o que podem fazer quando ocorre um crime.

Para além disso, a internet e as redes sociais oferecem novas plataformas nas quais as vítimas podem exprimir-se. Por exemplo, há vítimas que mantêm sites para grupos de autoajuda, onde trocam experiências e abordagens que as ajudam a superar os efeitos negativos dos crimes que tenham experienciado, auxiliando assim quem tenha passado recentemente pela experiência do crime e que possa não saber onde encontrar uma rede de apoio.

Uma voz mais forte das vítimas; o movimento #MeToo e as reações contra o mesmo

Um exemplo das oportunidades, mas também dos desafios, que as novas formas de se expressar a uma audiência mais ampla, dita “global”, oferecem às vítimas é o movimento #MeToo, inicialmente lançado por Tarana Burk, uma ativista afro-americana que desencadeou um movimento social mais amplo contra a ampla prevalência da agressão sexual e do assédio.

O hashtag #MeToo difundiu-se rapidamente em Outubro de 2017, logo após as alegações de má conduta social contra um famoso produtor de filmes dos EUA. De acordo com a estação noticiosa CNN, durante as primeiras 24 horas em que foi inicialmente usado na plataforma da rede social Facebook, 4,7 milhões de pessoas usaram o hashtag #MeToo, em doze milhões de publicações.

O movimento #MeToo tornou-se rapidamente num fenómeno global, inspirando vítimas de agressão sexual e de assédio, principalmente, mas não apenas, mulheres e meninas, em todas as partes do Mundo, a falar publicamente sobre as suas experiências. Ao fazê-lo, estas vítimas demonstraram a sua determinação em quebrar o silêncio dos agressores. O movimento criou um clima de empatia e de solidariedade entre as vítimas. Tornou visível a magnitude do problema de modo significativo e, consequentemente, provocou um debate público sobre a existência de assédio e de agressão sexual em áreas que, até então, tinham calmamente negado ou ignorado estes problemas. O movimento #MeToo concedeu uma voz às vítimas, ao exigir o reconhecimento de que se trata de uma cultura inaceitável, deixando ainda claro que não são as vítimas que se devem envergonhar da violência e da agressão sexual; ao invés, a culpa e a responsabilidade são, e devem ser, dos agressores.

Depois de milhões de pessoas terem começado a usar a frase, a qual acabou por se difundir por dezenas de línguas para além do inglês, o objetivo do movimento #MeToo passou a ter significados distintos para pessoas diferentes. Emergiram movimentos masculinos, com vista a alterar a cultura de violência sexual por meio da reflexão pessoal e ação futura, incluindo #IDidThat, #IHave e #IWill. Outros hashtags focaram-se na experiência de mulheres em situações ou profissões particulares.

Em suma, e apesar destes retrocessos, o movimento #MeToo contribuiu de modo positivo para o avanço da justiça para as vítimas. Em particular, demonstrou-nos como as novas formas de comunicação através das redes sociais podem oferecer às vítimas uma plataforma onde estas se podem fazer ouvir. O movimento ofereceu às vítimas de violência sexual e de assédio, crimes frequentemente associados à vergonha e ao tabu, uma demonstração de solidariedade, tanto por parte de companheiros/as sobreviventes, como do público em geral. De modo ainda mais relevante, o caso do movimento #MeToo ilustra que, se um movimento liderado por vítimas se tornar num fenómeno generalizado ou mesmo global, como foi o caso deste movimento, poderá tornar-se num motor de mudança social, forçando-nos a desafiar e repensar no modo como tratamos, e até que ponto mostramos o necessário respeito, reconhecimento e apoio às vítimas de crime.

 
Seguinte: Tópico Oito: Vítimas de crime e o direito internacional
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