Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico três – Questões transversais e contemporâneas sobre a responsabilidade da polícia

 

As secções anteriores referiam-se à responsabilidade da polícia e aos papéis interno e externo de controlo e supervisão das instituições. Há questões relevantes relativamente à responsabilidade policial que merecem ser debatidas mais aprofundadamente. Esta secção oferece uma visão geral de quatro questões transversais e contemporâneas, selecionadas relativamente à responsabilidade da polícia, nomeadamente sobre o género, as detenções policiais, denúncias e diversidade no policiamento

 

Género e responsabilidade policial

O género na aplicação da lei apresenta vários aspetos transversais, os quais são abordados em diferentes módulos nesta Série do E4J de Módulos Universitários, em matéria de Prevenção de Crimes e Justiça Criminal. O Módulo 9, sobre “Género no Sistema de Justiça Criminal”, que abrange a representação de mulheres e lésbicas, homossexuais, bissexuais, transexuais e intersexuais (LGBTI) na polícia e noutras instituições de justiça criminal, ou o Módulo 10, sobre “Violência contra Mulheres”, o qual oferece uma visão genérica de violência contra mulheres e de géneros. Esta secção foca-se no género, no contexto da responsabilidade policial, particularmente na capacidade de resposta da polícia nos casos de violência sexual e de género (VSDG) e a responsabilidade dos agentes da polícia que sejam agressores de VSDG. A sigla VSDG refere-se a “qualquer ato que seja reprovável contra a vontade de outra pessoa e que se baseia em normas de género e relações desiguais de poder” (UNHCR, n.d.).

Responsabilidade da polícia em resposta a casos de VSDG

Responder à VSDG é uma das várias tarefas da polícia que devem ser supervisionadas interna e externamente pelas instituições de supervisão. No entanto, a resposta a casos de VSDG por parte da polícia merece a devida atenção por parte dos supervisores. As vítimas de VSDG podem hesitar em denunciar os crimes à polícia devido a um conjunto vasto de fatores incluindo, entre outros, receio de retaliação por parte do agressor ou medo de estigmatização social, como também receio de vitimização secundária ao denunciar à polícia. É certo que um estudo deu a conhecer que existe um constante atrito em casos de violência sexual no sistema de justiça criminal. Isto significa que apenas uma pequena percentagem de casos de violência sexual são denunciados à polícia, e aqueles que entram no sistema de justiça criminal enfrentam uma variedade de desafios adicionais, barreiras e mecanismos de filtragem, resultando em menos acusações e sentenças (Gregory e Lees, 1996; Lonsway e Archambault, 2012). Exemplos de desafios adicionais verificados durante a denúncia do crime e as fases de investigação, incluem:

  • Agentes da polícia que desconsideram os fatos relatados e tratam os casos, especialmente os incidentes de violência doméstica, como um assunto interno da família;
  • Entrevistas e investigações realizadas de maneira a causar vitimização secundária pelos agentes da polícia;
  • Polícias que não tomam as medidas necessárias para proteger a segurança das vítimas (UNODC, 2010).
  • Falta de polícias femininas ou dificuldades de acesso às esquadras da polícia por parte das vítimas.
  • Categorias particulares de vítimas que podem ser particularmente apreensivas em denunciar, devido ao receio da resposta policial (por exemplo, prostitutas; LGBTI; pessoas de grupos minoritários ou crianças). 

A decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) sobre o caso de Kontrova v. Slovakia, no. 7510/04 e a decisão do Comité CEDAW sobre o caso X. e Y. v. Georgia (CEDAW/C/61/D/24/2009), são casos históricos onde os Tribunais e o Comité CEDAW declararam uma atuação negligente e inadequada da resposta policial, bem como ineficaz em relação a casos de violência doméstica, que conduziram à violência física e sexual prolongada ou até mesmo à morte de crianças no contexto de violência doméstica. O caso de Kontrova v. Slovakia refere-se à violência física e psíquica prolongada pelo marido da Sra. Kontrova face à própria e aos filhos. A Sra. Kontrova denunciou repetidamente a violência à polícia, inclusive fornecendo relatórios médicos que indicavam, claramente, a ocorrência da violência física que a impedia de trabalhar. Numa ocasião, os polícias convenceram-na a modificar a declaração, para que pudesse ser tratada como um crime menor. A polícia não tomou quaisquer outras medidas, apesar das repetidas tentativas da requerente de acompanhar o caso e as chamadas de emergência, informando que o marido da Sra. Kontrova detinha uma arma de fogo e ameaçava matar as crianças e suicidar-se. A polícia não atuou e, quatro dias depois, o marido acabou por se suicidar, após matar as crianças. O Tribunal considerou que “a polícia tinha uma série de obrigações específicas. Estas incluíam, entre outros, a aceitação e o registo adequado da queixa-crime da requerente, iniciar uma investigação criminal contra o marido da requerente, manter um registo adequado das chamadas de emergência e aconselhar o que deveria fazer, bem como tomar medidas em relação à alegação de que o marido da requerente tinha uma caçadeira e fizera ameaças violentas. No entanto, a polícia não conseguiu garantir o cumprimento dessas obrigações…. a consequência direta dessas omissões resultou na morte dos filhos da requerente ” (parágrafos 53-54). O significado do acórdão Kontrova v Slovakia foconsistiu reside no facto de o Tribunal ter estabelecido um vínculo direto entre a negligência e a não atuação da polícia e a morte das pessoas, tendo assim criado um precedente importante para a responsabilização da polícia em relação a casos de VSDG e violência contra crianças.

É possível que se verifiquem incidentes isolados de resposta inadequada da polícia à VSDG devido a uma falha de pessoal ou negligência do(s) polícia(s) envolvido(s). Embora esses incidentes devam ser efetivamente investigados e os polícias envolvidos devam ser responsabilizados, no âmbito de uma abordagem mais abrangente de responsabilidade, os mecanismos de controlo interno e de supervisão externa devem avaliar se há mais deficiências sistemáticas e institucionais subjacentes à resposta da polícia à VSDG. Ao fazer isso, é importante considerar os seguintes aspetos:

  • Quadro jurídico nacional: A primeira e principal legislação nacional deve estar alinhada com os padrões internacionais descritos na CEDAW, Declaration on the Elimination of Violence against Women, Beijing Declaration and Platform for Action. Responsabilizar um agente da polícia por não encaminhar a vítima para serviços de apoio, não abordaria adequadamente a questão subjacente, se a lei não previsse mecanismos adequados de cooperação entre agências para responder à VSDG.
  • Estratégia abrangente: Deve haver uma estratégia abrangente para prevenir, responder e investigar a VSDG, desenvolvida pelo órgão executivo em cooperação com os serviços de polícia e outras instituições de justiça criminal. Os Modelos de Estratégia Atualizadas e as Medidas Práticas para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres no campo da Prevenção do Crime e da Justiça Criminal, adotadas pela Assembleia Geral a 31 de março de 2011, servem de exemplo de estratégia útil a este respeito (Resolução da AG 65/228).
  • Políticas institucionais e operacionais: Os serviços de polícia devem adotar medidas institucionais e operacionais necessárias para fazer face, eficazmente, à VSDG. Estas poderão incluir, entre outras: o destacamento de equipas de género misto de polícias para a cena do incidente, a criação de um departamento especializado ou de uma unidade dedicada à investigação VSDG, o desenvolvimento de procedimentos sensíveis às questões de género para entrevistar vítimas, SOP’s detalhados sobre a investigação e a descoberta de provas em casos particulares de VSDG, como de violência sexual e violação ou prostituição forçada, a criação de mecanismos práticos de cooperação com os serviços de suporte a vítima, estudos para obter dados sensíveis ao género e a realização de uma avaliação interna regular para avaliar a resposta da polícia à VSDG (UNODC, 2010).
  • Treino em questões de género e VSDG: as políticas e procedimentos mencionados acima não funcionarão efetivamente se os agentes da polícia não forem sensibilizados para causas, manifestações e diferentes formas de VSDG, e equipados com o conhecimento e as habilidades para lidar com a VSDG de acordo com os padrões internacionais, leis e políticas nacionais. Além da VSDG, o treino também deve visar abordar o potencial preconceito dos polícias em relação a mulheres e outros grupos, especialmente em relação a subgrupos potencialmente vulneráveis, como LGBTI, profissionais de sexo, mulheres com VIH e mulheres vítimas de tráfico. 

Somente uma avaliação holística dos fatores acima mencionados ajudaria a identificar problemas sistémicos com a resposta da polícia ao VSDG e permitiria a prevenção efetiva de má conduta policial, em vez de tão-somente investigar casos individuais e processar agentes da polícia.

Exemplos de supervisão policial em resposta à VSDG a nível nacional

A Diretoria Independente de Reclamações da África do Sul (ICD) monitorizou a resposta do Serviço de Polícia da África do Sul face à violência doméstica, avaliando a conformidade da polícia com a Lei de Violência Doméstica e realizou inspeções e entrevistas periódicas, para supervisionar a resposta da polícia. Durante as inspeções, o ICD verificou os procedimentos de manutenção de registos para casos de violência doméstica, as instalações onde as vítimas de violência doméstica são recebidas e entrevistadas e as políticas de incidentes de violência doméstica (Bastick, 2014a, p. 34).

Responsabilizar os agentes da polícia que infrinjam a VSDG

Foi feito um estudo considerável que visa procurar agentes da polícia que infrinjam a VSDG. Alguns estudos examinam a relação entre o stress ocupacional vivenciado pelos polícias e a taxa de incidência de violência doméstica (Gibson et al., 2001; Gershon, 2008); outros, analisam os fatores de risco de violência entre parceiros íntimos (Neidig et al., 1992; Erwin et al., 2005) ou métodos de avaliação e de gestão de riscos de violência entre parceiros íntimos por polícias (Storey et al., 2013). Outra linha de estudo concentra-se na má conduta sexual e comissão de crimes por polícias em relação aos seus colegas e membros do público em geral (Kraska e Kappeler, 1995; Stinson et al., 2015). Embora as causas exatas, os fatores facilitadores e as taxas de incidência possam diferir de país para país, a questão dos polícias, como agentes de VSDG, não pode ser posta de parte e os respetivos autores ​​devem ser responsabilizados. Esta subseção concentrar-se-á nos mecanismos internos e salvaguardas policiais para prevenir, detetar, identificar e lidar com esses casos. A “Política-Modelo para casos de Violência Doméstica por Agentes da Polícia” da Associação Internacional de Chefes de Polícia (IAPC, 2013), bem como a Nota de Orientação sobre a Integração de Género na Supervisão Policial Interna (Bastick, 2014b), fornecem padrões e medidas práticas para que os serviços de polícia detenham e responsabilizem agentes da polícia. De acordo com esses padrões, os serviços de polícia devem:

  • Incluir a proibição de qualquer forma de VSDG de forma evidente, nos códigos de ética e nos planos de integridade;
  • Desenvolver uma política de combate ao assédio sexual que inclua uma definição clara de comportamento definidos como assédio, juntamente com exemplos, processos de denúncia, tratamento e investigação de reclamações, explicação de medidas disciplinares para cada tipo de comportamento e possíveis processos criminais (Denham, 2008, p. 14);
  • Entrar em contato com amigos e familiares de agentes da polícia, dando-lhes a conhecer a política de violência doméstica e quais os pontos de contacto dentro do departamento;
  • Nos casos de denúncias de violência doméstica realizadas por um parceiro íntimo de um agente da polícia, ponderar a apreensão de armas de fogo e pôr em prática ordens administrativas de proteção. Após a má conduta ou crime (em relação à VSDG) ser comprovada através de processos administrativos / criminais, o contrato de trabalho deverá ser rescindido;
  • Introduzir procedimentos robustos com vista à verificação e rastreamento de qualquer histórico de violência sexual, assédio ou outros comportamentos violentos ou discriminatórios, tanto quanto a mulheres como a LGBTI (IACP, 2003);
  • Monitorização contínua, sujeitando os polícias a verificações periódicas e aleatórias do uso do computador, atividades de redes sociais, registos de operações STOP e verificação, com o intuito de identificar sinais de má conduta sexual ou de alguma tendência, no sentido de mandar parar mulheres, desproporcionalmente, bem como profissionais de sexo e outros grupos vulneráveis;
  • Garantir que os mecanismos de reclamação quer para agentes da polícia quer para membros do público sejam sensíveis às questões de género. Para esse fim, as agentes da polícia femininas devem poder receber queixas. Deve haver um sistema que vise analisar e verificar se o denunciante está de alguma forma relacionado a um polícia para que se possa identificar uma situação de abuso de parceiro íntimo (Bastick, 2014b, p. 37).
 

Detenção policial e responsabilização

A detenção é um poder concedido aos polícias, no exercício das suas funções. Existe um conjunto abrangente de normas internacionais sobre o modo de proceder a esses atos. Os artigos 7.º, 9.º, 10.º e 14.º do PIDCP (Resolução GA 2200A (XXI)) estabelecem os direitos humanos fundamentais e as obrigações do Estado a esse respeito incluindo, entre outros, o direito à liberdade e à segurança da pessoa, proibição de detenções arbitrárias, direito de ser informado sobre o motivo das detenções, presunção de inocência até que se prove o contrário, direito à assistência jurídica, habeas corpus, direito à defesa, proibição de autoincriminação, direito a tratamento com respeito e dignidade, proibição da tortura, tratamentos ou penas cruéis, desumanos e degradantes e o direito de recorrer. Além disso, outras convenções internacionais juridicamente vinculativas, como a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes e a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra Desaparecimentos Forçados, reiteram os direitos e obrigações referentes à prisão e detenções. O Módulo 10, sobre Prisão e detenção, da série de módulos da Universidade E4J sobre antiterrorismo, oferece uma visão geral mais detalhada dos direitos e instrumentos legais acima mencionados.

Para além das convenções juridicamente vinculativas, a comunidade internacional desenvolveu uma variedade de instrumentos legais que fornecem orientação normativa aos estados para procedimentos de prisão e detenção baseados nos direitos humanos. Eles incluem as Regras Mínimas Padrão das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos (Regras de Nelson Mandela), o Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas sob Qualquer Forma de Detenção ou Prisão e as Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas não privativas de liberdade para Mulheres Infratoras (Regras de Banguecoque), Regras das Nações Unidas para a Proteção de Menores Privados de Liberdade (Regras de Havana). Entre eles, um instrumento notável são as Regras de Nelson Mandela, cuja versão atualizada é adotada por uma votação unânime e marcante na Assembleia Geral das Nações Unidas (UN-Doc A/Res/70/175).

As Regras de Nelson Mandela aplicam-se a todas as categorias de reclusos, incluindo aqueles sob custódia policial e abrangem todos os aspetos da detenção, desde a admissão de detidos até à sua libertação. O Módulo 6, sobre Reforma Prisional, fornece uma visão geral mais detalhada das Regras de Nelson Mandela. A Secção C das Regras de Nelson Mandela contém disposições específicas (2015, Regras 111-120) para pessoas sob custódia policial (conhecidas como “reclusos não julgados”). Para mais materiais, poderá consultar o Módulo 6, sobre Reforma Prisional. Será sempre oferecida a um prisioneiro não julgado a oportunidade de trabalhar, mas não deverá ser obrigado a trabalhar. Se ele ou ela optar por trabalhar, ele ou ela será de ser pago por isso.

Apesar do mencionado conjunto de normas de direito internacional e dos padrões normativos abrangentes, a prisão e as primeiras horas de detenção policial continuam a ser os períodos de maior risco, no mundo, de abuso policial (APT, 2013). Encontra-se para além dos objetivos deste módulo a apresentação de uma visão geral mas detalhada das leis e dos padrões que regem a detenção policial e uma análise dos motivos que conduzem a esses riscos aumentados de abuso. O remanescente desta secção descreverá padrões e mecanismos básicos de responsabilização por abusos policiais no decurso da detenção.

Como é o caso de qualquer poder policial, a responsabilização efetiva pelos abusos sobre os detidos só poderá ser alcançada com o envolvimento de várias figuras de supervisão, antes, durante e depois do ato.

Supervisão ex-ante no contexto de custódia policial

Medidas para evitar abusos durante as detenções policiais:

Os parlamentos aprovam leis relacionadas com os poderes policiais, no que concerne à detenção, as quais estão de acordo com as leis e normas internacionais. Os parlamentos que ratificaram o CAT e o OPCAT são também responsáveis pela promulgação de leis que estabeleçam um Mecanismo Nacional de Prevenção (MNP), a qual se apresenta como sendo uma instituição-chave em sede de prevenção da tortura e outros tratamentos ou punições cruéis, desumanos e degradantes (ver a subseção seguinte).

O executivo, em consonância com a polícia, desenvolve políticas e diretrizes abrangentes e, ainda, códigos de conduta quanto à prisão e detenção, incluindo princípios básicos de tratamento de detidos, salvaguardas processuais, condições materiais mínimas, medidas para garantir a segurança, ordem e disciplina nas instalações de detenção. É particularmente importante que a polícia estabeleça um sistema robusto e abrangente de registo de custódia (Regras de Nelson Mandela, 2015, Regra 6-10).

No âmbito das leis e políticas supramencionadas, os serviços policiais garantem que os funcionários sejam treinados regularmente sobre os padrões de direitos humanos e salvaguardas processuais relativos à detenção, com especial atenção às necessidades e direitos dos grupos com maior risco de vulnerabilidade na detenção. O treino também deve incluir as circunstâncias para o uso da força legal e outras técnicas de controlo (Regras de Nelson Mandela, 2015, Regra 76). Os serviços policiais também são responsáveis por garantir que os polícias encarregados da detenção estejam equipados com uma variedade de ferramentas, permitindo aplicar a mínima força possível. Mais informações sobre os padrões sobre o uso da força em detenção podem ser encontradas no Módulo 4, sobre Uso da Força e Armas de Fogo.

Os serviços policiais estabelecem mecanismos internos para os detidos apresentarem queixas de maneira segura e, se necessário, confidencial (Regras de Nelson Mandela, 2015, regra 57). Ao fazer isso, qualquer pessoa que seja presa e detida deve ser informada, de forma proactiva, sobre os procedimentos de reclamação.

A informação supramencionada não é uma lista de medidas preventivas, mas sim de requisitos básicos para o estabelecimento de uma estrutura para detenção, na qual os polícias agem de acordo com os padrões internacionais de direitos humanos e podem ser responsabilizados caso não o façam.

Supervisão contínua: supervisão e monitorização interna/ externa de detenções

Com o objetivo de garantir a “responsabilização durante o ato” de detenção:

  • Os serviços policiais estabelecem uma cadeia de comando, na qual os chefes de linha estabelecem, claramente, tarefas de supervisão sobre os polícias encarregados da prisão e detenção. Neste sentido, os registos de custódia detalhados e abrangentes servem de ferramenta útil para que os supervisores possam monitorizar a conformidade dos seus subordinados com os procedimentos de detenção.
  • Além do escrutínio dos chefes de linha, os serviços policiais instalam tecnologia de vigilância, para monitorizar os locais de detenção. Esta vigilância eletrónica (geralmente por equipamento de CCTV) permite a monitorização dos detidos (para fins de prevenção e proteção) e a conduta dos polícias. Seria também uma medida para proteger os polícias de acusações falsas ou inconsequentes (APT, 2015; PRI, 2015). No entanto, os serviços policiais devem garantir que estes mecanismos de vigilância não violem o direito à privacidade dos detidos.
  • Os serviços policiais implementam procedimentos internos de auditoria e inspeção (Regras de Nelson Mandela, 2015, Regra 83) para: (i) rever regularmente as diretrizes operacionais e códigos de conduta, para avaliar a sua conformidade com os padrões internacionais de direitos humanos; (ii) verificar se as práticas quotidianas dos polícias estão alinhadas com as leis, políticas e diretrizes sobre detenção; (iii) detetar e identificar as práticas que violam as leis ou os padrões de integridade e relatam às autoridades investigadoras competentes; e (iv) formular recomendações ao órgão de gestão policial, para melhorar o regime de detenção. A Lista de Verificação do UNODC para Mecanismos de Inspeção Interna (2017) oferece uma ferramenta prática útil para avaliar o cumprimento das Regras de Nelson Mandela de uma forma sistemática e mensurável.
  • Diversos países estabelecem uma inspeção externa (Regras de Nelson Mandela, 2015, regra 83) e mecanismos de monitorização, que são realizados por uma ampla gama de entidades independentes de supervisão. Os mecanismos preventivos nacionais (MPN) são os principais protagonistas de monitorização, ao nível nacional. Os Estados que ratificam o OPCAT são obrigados a designar um MPN, designando instituições existentes com mandato do MPN ou estabelecendo um novo mecanismo (artigo 3). A função do MPN poderia ser atribuída a instituições de provedoria, outras instituições nacionais de direitos humanos ou, alternativamente, os Estados poderiam estabelecer uma nova instituição. Nalguns países, o mandato e as funções do MPN são compartilhados por várias instituições. São obrigados a monitorizar as detenções policiais, além do MPN, os mecanismos internacionais e regionais de tratados, como o Subcomité das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura (SPT) e o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura (CPT), as ONG’s, internacionais e locais, bem como membros do público, através de esquemas de “apreciação leiga”.

Para que os inspetores externos possam monitorizar efetivamente as instalações de detenção policial, devem ter os seguintes poderes (OPCAT, Resolução GA 39/46, artigo 20.º e Regras de Nelson Mandela, 2015, regra 84):

“(A) Ter acesso a todas as informações sobre o número de reclusos, locais de detenção, bem como a todas as informações relevantes para o tratamento de reclusos, incluindo os seus registos e condições de detenção;

(b) Escolher livremente quais as prisões a visitar, inclusive fazer visitas sem aviso prévio por iniciativa própria e quais os reclusos a entrevistar;

(c) Realizar entrevistas privadas e totalmente confidenciais, com reclusos e funcionários prisionais durante as visitas;

(d) Fazer recomendações à administração prisional e a outras autoridades competentes.”

Um centro de detenção policial que é supervisionado de perto por chefes de linha e outros mecanismos de vigilância, regularmente inspecionados por mecanismos de auditoria interna e por atores externos de supervisão, contribui para a “prestação de contas durante o ato”.

Questões-chave: Áreas com maior risco de abuso em detenção policial

Situa-se para além do escopo desta subseção a apresentação de uma visão completa de como os agentes externos de supervisão conduzem a monitorização e as inspeções. Em seguida é apresentada uma lista de áreas e procedimentos de detenção, em que o risco de abuso policial e a necessidade de monitorização externa eficaz são consideravelmente altos. As respetivas Regras de Nelson Mandela que estabelecem os padrões são identificadas entre parênteses.

Procedimentos para o transporte de detidos (Regra 73): O transporte de detidos, do local de detenção para a prisão ou centros de detenção, ocorre quando os detidos são significativamente vulneráveis a abusos, pois geralmente ficam completamente sozinhos com os polícias, sem qualquer supervisão significativa. O risco de violência, maus-tratos (particularmente uso excessivo e punitivo de instrumentos de restrição durante toda a transferência) e detenção incomunicável são altos quando não existam procedimentos e supervisão abrangentes e claros, em conformidade com os direitos humanos.

Pesquisas em detidos e celas, incluindo buscas íntimas do corpo (Regras 50-53): Embora as buscas aquando da detenção policial sejam uma prática padrão em muitos países, a forma como as buscas são conduzidas corre o risco de violar a dignidade humana, o direito à privacidade e pode significar tortura e outras formas de maus-tratos. As crianças, mulheres e pessoas LGBTI podem ser particularmente vulneráveis à violência sexual e de género durante as buscas.

Uso de instrumentos de contenção (Regras 47-49) e Uso da força (Regra 82): O uso excessivo, ilegal e desproporcional de instrumentos de retenção e o uso da força em centros de detenção, constituem uma ameaça direta ao direito à vida e à proibição de tortura e de outras formas de maus-tratos e punições. Os órgãos externos de supervisão devem concentrar-se particularmente em procedimentos, práticas e instrumentos de contenção e uso da força nas detenções policiais.

Condições de detenção: de acordo com os padrões internacionais, a detenção policial deve verificar-se durante um período muito curto. Portanto, nem todos os padrões estipulados nas Regras Nelson Mandela (2015, Regras 12-23) podem ser totalmente aplicáveis ​​aos centros de detenção policial. No entanto, de acordo com os padrões da CPT (2002), as celas de detenção policial devem atender aos seguintes requisitos mínimos: “Todas as celas policiais devem estar limpas e ter um tamanho razoável para o número de pessoas que acomodam, bem como ter iluminação adequada (ou seja, suficiente para ler, períodos de sono excluídos); de preferência, as celas devem desfrutar de luz natural. Além disso, as celas devem estar equipadas com um meio de descanso (por exemplo, uma cadeira ou banco fixo), e as pessoas obrigadas a passar a noite em privação de liberdade devem receber um colchão e cobertores limpos. As pessoas sob custódia policial devem ter acesso a instalações sanitárias adequadas, em condições decentes, e devem ser-lhes oferecidos meios adequados para se lavarem. Devem ter acesso imediato à água potável e receber alimentos em horários apropriados, incluindo, pelo menos, uma refeição completa (ou seja, algo mais substancial que uma sandes) todos os dias. As pessoas mantidas sob custódia policial por 24 horas ou mais devem, na medida do possível, poder praticar exercício ao ar livre todos os dias.”

 

Supervisão ex-post

Apesar das leis, normas e políticas internacionais e nacionais, bem como os mecanismos de supervisão e monitorização interna e externa, os abusos policiais aquando das detenções continuam a ocorrer por todo o mundo. Alguns mecanismos eficazes para responsabilizar os polícias incluem instrumentos internos de tratamento de reclamações e processos de investigação independentes.

Embora as queixas relativas a transgressões disciplinares menores possam ser tratadas pelos mecanismos internos da polícia, as Regras de Nelson Mandela estabelecem que “as alegações de tortura ou outro tratamento ou punição cruel, desumana ou degradante dos presos devem ser tratadas imediatamente e resultarão numa ação imediata e investigação imparcial, conduzida por uma autoridade nacional independente. Não obstante o início de uma investigação interna, o diretor da prisão relatará, sem demora, qualquer morte sob custódia, desaparecimento ou ferimento grave a uma autoridade judicial ou a outra autoridade competente que seja independente da administração da prisão e mandatada para conduzir investigações imediatas, imparciais e eficazes, sobre as circunstâncias e causas de tais casos. A administração prisional deve cooperar plenamente com essa autoridade e garantir que todas as provas sejam preservadas” (2015, regra 57).

Esta é uma área em que os Órgãos Independentes de Queixa da Polícia, particularmente aqueles com mandatos e poderes de investigação, desempenham um papel crucial na responsabilização dos policiais (ver INDECOM, 2017).

 

O papel dos denunciantes na responsabilização policial

A denúncia é definida como “a divulgação, por membros de uma organização (antiga ou atual), de práticas ilegais, imorais ou ilegítimas sob o controlo dos seus empregadores, as pessoas ou organizações que podem ser capazes de efetuar uma ação” (Near e Miceli, 1995).

Os investigadores costumam afirmar que os denunciantes são um dos principais fatores para investigações de corrupção bem-sucedidas. Devido ao seu papel de "insider" e ao conhecimento e experiência específicos, estas são as primeiras e, por vezes, as únicas pessoas a perceber se algo está errado. De acordo com os relatórios anuais da Association of Certified Fraud Examiners, as dicas consistem no método de deteção mais comum, incluindo principalmente relatórios internos de funcionários que denunciam, mas também relatórios de fornecedores ou clientes e relatórios anónimos (Association of Certified Fraud Examiners, 2018, p. 17). Não há dúvida que os denunciantes também podem desempenhar um papel importante na deteção de má conduta ou corrupção na polícia. Um dos muitos casos que chamou a atenção do público é, nomeadamente, o de Maurice McCabe, um polícia irlandês, que relatou que oficiais superiores tinham continuamente, e em larga escala, arquivado coimas e multas aplicadas a motoristas por excesso de velocidade e outros ilícitos - em especial envolvendo juízes ou celebridades (Transparency Ireland - Speak Up Report 2015, p. 17).

Os polícias enfrentam desafios particulares. Por um lado, tendem a aderir aos mais altos padrões éticos, conforme discutido nos capítulos anteriores. Por outro, os polícias lidam com informações confidenciais e, como parte do seu trabalho, são contratualmente obrigados a cumprir os requisitos de confidencialidade. Além disso, a polícia e forças similares têm uma forte cultura de “irmandade” e hierarquia que pode contribuir para o chamado “código de silêncio” azul. No contexto da pesquisa sobre policiamento, são várias as pesquisas no sentido de saber se as estruturas policiais organizacionais e o “código do silêncio” dificultam a denúncia (ver, por exemplo, Gottschalk e Holgersson 2011; Maheran Zakharia, et al., 2016; Rothwell e Baldwin, 2007; e Latimer e Brown, 2008).

Os padrões que incentivam ou obrigam os polícias a denunciar suspeitas de crimes ou má conduta já existem há muito a nível nacional e internacional. Por exemplo, a prática de denúncias no policiamento foi mencionada no Artigo 8.º do Código de Conduta das Nações Unidas para os responsáveis pela aplicação da lei (Resolução 34/169 da GA de 1979):

Os funcionários responsáveis pela aplicação da lei que tiverem motivos para acreditar que uma violação do presente Código ocorreu, ou está prestes a ocorrer, devem reportar o assunto às autoridades superiores e, quando necessário, a outras autoridades ou órgãos apropriados, investidos de poder de revisão ou reparação.

Nas últimas décadas, os princípios que incentivam a denúncia de má conduta foram incluídos em vários instrumentos jurídicos internacionais e regionais, como sejam a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (2005), a Convenção de Direito Civil do Conselho da Europa contra a Corrupção (1999) e a Convenção de Direito Penal contra a Corrupção. Corrupção (1999) e sua Recomendação sobre Proteção de Denunciantes (2014), a Convenção Interamericana contra a Corrupção da Organização dos Estados Americanos (OEA) (1996), a Convenção da União Africana para Combater e Prevenir a Corrupção (2003) e o Protocolo contra Corrupção da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (2001). A maioria destes instrumentos é juridicamente vinculativa, mas não se concentra especificamente na denúncia e na proteção de denunciantes, mas na proteção das pessoas que denunciam de maneira mais ampla.

Além disso, o Guia de Recursos do UNODC sobre Boas Práticas na Proteção das Pessoas que Relatam cita os artigos relevantes destas respetivas Convenções (UNODC 2015, pp. 98-99), e a página da Web do UNODC sobre Proteção de Denunciantes oferece uma variedade de material relevante. Até ao momento, não existe uma definição universal de denúncia de irregularidades, nem uma convenção internacional sobre proteção de denunciantes. Contudo, os padrões e práticas cada vez mais eficazes sobre proteção de denunciantes, princípios e recomendações acabaram por ser adotados por vários órgãos. Além disso, em abril de 2019 o Parlamento Europeu adotou uma diretiva da UE sobre proteção de denunciantes.

(Nota: A Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção contém diferentes artigos que tratam da proteção de testemunhas (Artigo 32.º) e denunciantes (Artigo 33.º). Quanto à diferença entre estes conceitos consulte, por exemplo, a proteção de denunciantes e a implementação de Artigo 33.º da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, sobre a proteção das pessoas que denunciam (Comitê de Peritos em Administração Pública, 2018, pp. 3-5).

Um sistema eficaz de denúncia deve incluir, entre outros, múltiplos canais de denúncia (interno, externo e público), ações de acompanhamento (investigações sobre a questão levantada pela denúncia) e proteção de denunciantes contra qualquer retaliação, incluindo medidas pró-ativas como a confidencialidade e medidas reativas se o denunciante for conhecido e enfrentar retaliação (CoE, 2014).

Debates-chave: Procedimentos de denúncia e proteção de autores de denúncias

Embora todos os fatores acima referidos mereçam mais atenção, um debate importante sobre denúncias, em particular no policiamento, procura determinar se deve haver uma sequência obrigatória de canais de denúncia ao divulgar irregularidades. Em 1979, quando o Código de Conduta das Nações Unidas para os Funcionários da Aplicação da Lei (Resolução 34/169 da GA) foi adotado, o comentário oficial ao Artigo 8.º enfatizou a necessidade de denunciar as irregularidades internamente, em primeira linha, e apenas nos casos em que “nenhuma outra solução esteja disponível ou relatórios eficazes” faria sentido recorrer às entidades externas”.

As linhas de relatórios internos têm vários benefícios. Devido à lealdade ao empregador e à organização, as pessoas podem sentir-se mais inclinadas a relatar as questões ao nível interno, principalmente se se tratar apenas de uma suspeita. Normalmente, a organização está mais próxima do assunto e também está em posição de reagir rapidamente e resolver ou interromper o problema, antes que ocorram mais danos. Contudo, pode ser problemática uma obrigação estrita de relatar primeiro internamente, especialmente quando os mecanismos internos de denúncia não são suficientemente autónomos na organização policial, quando a confidencialidade não pode ser garantida nos processos internos de denúncia e quando a irregularidade é generalizada ou diz respeito à chefia sénior da organização.  

Portanto, um padrão e práticas internacionais emergentes consistem em permitir que os denunciantes relatem diretamente as irregularidades às autoridades externas competentes, como órgãos independentes de supervisão, comissões anticorrupção, instituições de provedoria (Transparency International, 2018). Esta prática não significa que se removam ou substituam mecanismos internos de preparação de relatórios. De facto, ainda é recomendável incentivar os funcionários a reportar primeiro internamente; no entanto, uma obrigação legal em fazê-lo, pode resultar no completo silêncio para aqueles que não se sintam confortáveis ​​em relatar internamente, por várias razões.

No que concerne às leis nacionais, o Reino Unido e a Irlanda, por exemplo, resolveram esta questão através de um método denominado "abordagem em camadas". Em resumo, quanto mais tarde um funcionário informa o seu empregador, maiores são os requisitos probatórios para que a pessoa possa ser protegida. Para fins internos, a pessoa deve ter uma crença razoável de que a informação “tende” a revelar um assunto que deve ser reportado (crime, violação de uma obrigação legal, perigo para a saúde ou a segurança de um indivíduo, etc.). Os relatórios internos visam reportar os fatos ao empregador ou a outra pessoa, caso o empregador a tenha autorizado a tal (veja abaixo o exemplo do Escritório Independente de Conduta Policial). Os relatórios externos têm em vista uma “pessoa específica”, por exemplo, o órgão regulador ou o órgão policial, exigem que a pessoa acredite razoavelmente “que as informações divulgadas e quaisquer alegações neles contidas sejam substancialmente verídicas”. (Veja, por exemplo, UNODC 2015, p. 30).

No que diz respeito às informações externas aos meios de comunicação, ao público ou a outros, o patamar tornar-se ainda mais alto e é justificado apenas como último recurso, por exemplo, se houver perigo grave ou se a prova correr o risco de ser destruída. Na Europa, existe jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos com vista a esclarecer este assunto (UNODC 2015, p. 41-45). Embora o TEDH não tenha ainda decidido um caso envolvendo um denunciante da polícia, seriam de aplicar princípios semelhantes. O TEDH sugere que os tribunais considerem os seguintes pontos:

  • Se a pessoa tinha canais alternativos para relatar o assunto;         
  • O interesse público no assunto denunciado justifica que se vá ao ponto de anular um dever de confidencialidade imposto legalmente;         
  • A autenticidade das informações divulgadas;        
  • O prejuízo para o empregador;         
  • Se o relatório foi realizado de boa-fé;        
  • A severidade das sanções impostas contra o denunciante.         

Se as pessoas reportarem o caso apenas externamente, aos meios de comunicação ou anonimamente, tal poderá ser uma indicação de que haja alguma falta de confiança sobre a organização que irá acompanhar o relatório, resolver o problema e proteger o denunciante e, portanto, pode exigir uma mudança de organização, cultura e procedimentos.

Outra questão importante na denúncia, consiste na necessidade de proteção dos denunciantes. É claro que os riscos de retaliação (como demissão, ameaças e qualquer outro tratamento injustificado) e a falta de medidas de proteção contra estes riscos, impedirão os polícias de denunciar. O Artigo 33.º da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Resolução 58/4 da GA) dita que: “Cada Estado Parte deverá considerar a incorporação no seu sistema jurídico interno de medidas adequadas para assegurar a protecção contra qualquer tratamento injustificado de quem preste, às autoridades competentes, de boa fé e com base em suspeitas razoáveis, informações sobre quaisquer factos relativos às infracções estabelecidas em conformidade com a presente Convenção”. Apesar deste padrão legal, muitos serviços policiais a nível mundial falham em fornecer medidas de proteção eficazes e abrangentes contra todas as formas de retaliação.

A confidencialidade e o anonimato são considerados duas medidas importantes para garantir denúncias seguras e eficazes, com anonimato. Tal significa que a pessoa que denuncia não é reconhecida, até pelo destinatário, e que, no que respeita à confidencialidade, o destinatário pode conhecer a identidade, mas protege-a. No entanto, o anonimato da denúncia tem sido objeto de controvérsia e nem todos os Estados permitem denúncias anónimas. Há quem argumente que as denúncias anónimas tornam a investigação muito mais difícil de conduzir e que a “cultura de denúncias anónimas” não é saudável e não deve ser promovida. Levantam-se preocupações adicionais em relação à possibilidade da existência de mecanismos de denúncia anónimas, os quais correrem um risco maior de serem mal utilizados. No entanto, outros afirmam que deve oferecer-se aos denunciantes a opção de se denunciar anonimamente, de modo a obter-se informações adicionais importantes (Transparency International, 2013, p. 12). O risco de uso indevido pode ser atenuado, através de questões orientadoras ou formulários que precisam de ser preenchidos e de informações adicionais, bem como pela conscientização sobre o que constitui uma preocupação dos denunciantes e em que consiste o emprego privado (por exemplo). O surgimento de novas tecnologias que permitam a comunicação bidirecional, enquanto protegem a identidade do denunciante, pode ajudar a resolver alguns desses problemas. No entanto, prossegue o debate sobre possíveis prós e contras.

Assim, o papel dos denunciantes e a extensão da sua eficácia na prestação de contas da polícia dependem muito da estrutura jurídica da denúncia e dos direitos e proteções processuais concedidos aos denunciantes.

 

Exemplos de mecanismos de denúncia

Os polícias de Inglaterra e do País de Gales estão legalmente autorizados a entrar em contato diretamente com o Escritório Independente de Conduta Policial (órgão independente de supervisão policial) e relatar quaisquer irregularidades, de forma segura e confidencial. Ao fazerem isto, não precisam de levantar primeiramente a questão por meio de mecanismos internos. A IOPC é obrigada a “proteger a identidade de um denunciante genuíno e a restringir as informações que fornece às forças policiais (inclusive, por meio de acordos de não divulgação) quando investigar um relatório de denúncia. Isto tem como objetivo tranquilizar os denunciantes da polícia de que, quando a IOPC decidir investigar a irregularidade, poderá fazê-lo sem divulgar a identidade do reclamante, aliviando a preocupação do denunciante de que ele possa sofrer consequências adversas se denunciar os factos” (UK Home Office, 2016).

Em resposta à falta de mecanismos de proteção de denunciantes na Indonésia, dez agências de comunicação e cinco ONG’s colaboraram para estabelecer o 'IndonesiaLeaks ', uma plataforma digital segura para denunciantes. A plataforma foi projetada para proteger o anonimato e a segurança dos denunciantes. As informações enviadas ao 'IndonesiaLeaks' são examinadas e verificadas, para uso em relatórios de investigação, pelas dez organizações de comunicação afiliadas (GIJN, 2017).

 

Diversidade no policiamento

As secções anteriores deste módulo referem-se aos padrões de integridade no policiamento. Um padrão-chave em qualquer Código de Ética é a não discriminação, um princípio fundamental do direito internacional. Este princípio tem duas implicações importantes para o policiamento: por um lado, que a polícia deve tratar todos os indivíduos com absoluta justiça e não discriminar ninguém por motivos como raça, cor, descendência, origem nacional ou étnica, género, religião, idioma, opinião política, propriedade, nascimento ou outro estatuto; por outro, que a polícia deve defender o princípio da não discriminação dentro do serviço. Este último implica que os serviços de aplicação da lei devam adotar políticas não discriminatórias em todos os aspetos do policiamento, do recrutamento, retenção, promoção às decisões operacionais, como o destacamento de agentes. 

Além das disposições juridicamente vinculativas de convenções como o PIDCP (Resolução 2200A (XXI) da GA) e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Resolução 2106 (XX) da GA); os padrões normativos desenvolvidos pela comunidade internacional reiteraram a não discriminação e a diversidade nos serviços policiais nas últimas décadas. O Código de Conduta das Nações Unidas para os responsáveis ​​pela aplicação da lei  (Resolução 34/169 da GA)  declara que “Todos os órgãos de aplicação da lei devem ser representativos, responsivos e responsáveis perante a comunidade como um todo” (preâmbulo 8a). Ser "representante da comunidade" implica a inclusão de polícias de todas as origens étnicas, raciais, religiosas e sexos da comunidade. Posteriormente, a Declaração e o Programa de Ação de Durban (2001) enfatizaram ainda mais a diversidade no policiamento e instaram os Estados a “criar e implementar políticas que promovam uma polícia de alta qualidade e diversa, livre de racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância e recrutar ativamente todos os grupos, inclusive minorias, para o emprego público, incluindo o serviço policial e outras agências do sistema de justiça criminal” (parágrafo 74). Com base nestes padrões de diversidade, a OSCE desenvolveu orientações mais específicas e detalhadas sobre os procedimentos de gestão de recursos humanos (recrutamento, retenção, promoção), para garantir uma força policial diversificada (2009, parágrafos 124-143).

Enquanto a Declaração e o Programa de Ação de Durban (2001) destaca a importância de promover a diversidade étnica e racial na aplicação da lei, os serviços policiais devem prestar atenção a uma ampla gama de questões de diversidade, incluindo a inclusão de indivíduos LGBTI nos serviços policiais. Os indivíduos LGBTI podem enfrentar uma série de barreiras formais ou informais em diferentes momentos do trabalho na aplicação da lei. Se a cultura policial é, ou é percebida como sendo, excessivamente dominada por homens, tal acarretará que pessoas de outros sexos poderão abster-se de se candidatar ao serviço policial. Assim sendo, é importante que os serviços policiais desenvolvam estratégias de desvio e inclusão e os comuniquem efetivamente nos meios de comunicação convencionais e sociais, com vista a alcançar potenciais ou atuais candidatos. Mesmo após o recrutamento, os agentes LGBTI podem enfrentar uma série de desafios, como o assédio por parte dos seus colegas, atitudes homofóbicas, ter que usar instalações e uniformes que não são compatíveis com sua identidade de género, bem como discriminação em relação à sua colocação, tarefas e promoção com base na sua orientação sexual. É responsabilidade dos serviços policiais garantir um ambiente de trabalho com inclusão de género, por exemplo, realizando as modificações necessárias nos vestiários, casas de banho, revendo o recrutamento, o treino e outros procedimentos, com o objetivo de evitar preconceitos e implementar mecanismos para prevenir e combater o assédio sexual e outras formas de assédio no local de trabalho. Copple e Dunn (2017) fornecem uma visão mais abrangente das políticas de género na aplicação da lei.

Examples of gender-inclusive policies

  • Tasmania Policehas launched a support network to help support police, fire, State Emergency Service and ambulance staff and volunteers who identify with LGBTI communities in August 2018. The network comprises twelve officers who have received specialized training to equip them with the necessary skills and knowledge to provide assistance to staff within all four emergency services who identify with LGBTI communities.
  • In the United States, the Boston Police Department has several officers actively involved in the Gay Officer's Action League (G.O.A.L. - New England), which functions as both a support group for gay, lesbian, bisexual, and transgender law enforcement officers and serves as a bridge between law enforcement and LGBT communities (Copple and Dunn, 2017, p. 30).
 

Exemplos de políticas inclusivas de género

A Polícia da Tasmânia lançou uma rede de apoio para ajudar a polícia, bombeiros, Serviço Estadual de Emergência e funcionários e voluntários de ambulâncias que se identificam com as comunidades LGBTI, em agosto de 2018. A rede compreende doze polícias que receberam treino especializado, visando assim equipá-los com as habilidades e conhecimentos necessários para prestarem assistência à equipa nos quatro serviços de emergência que se identificam com as comunidades LGBTI.

Nos Estados Unidos, o Departamento de Polícia de Boston tem vários polícias envolvidos ativamente na Liga de Ação para Oficiais Gays (GOAL - Nova Inglaterra), que funciona como um grupo de apoio para polícias gays, lésbicas, bissexuais e transgéneros e atua como ponte entre a aplicação da lei e as comunidades LGBT (Copple e Dunn, 2017, p. 30).

Debates fundamentais: Falta de diversidade, perfil discriminatório e responsabilidade

Garantir a diversidade não é apenas necessário para assegurar que a prática de policiamento se alinhe com os princípios internacionais, tendo várias implicações importantes para a responsabilização policial. No contexto das relações entre polícia e a comunidade minoritária, é geralmente reconhecido que a diversidade no policiamento serve como uma medida de construção de confiança com a comunidade (OSCE, 2009, parágrafo 127; CoE , 2001, Artigo 25.º). 

Por outro lado, uma falta de diversidade no policiamento pode resultar em práticas discriminatórias por parte da polícia, como um perfil racial e étnico, práticas essas que são definidas como “práticas policias que, de qualquer forma, levam em linha de conta a raça, a cor, a descendência ou a origem nacional ou étnica, como base para sujeitar as pessoas a atividades de investigação ou para determinar se um indivíduo está envolvido em atividades criminosas” (Declaração de Durban e Programa de Ação, 2001, parágrafo 72). Mesmo que a polícia não adote práticas discriminatórias, as investigações sugerem que as ações levadas a cabo por uma força policial não diversificada propendem a ser tidas pelo público como injustas e discriminatórias, especialmente pelas comunidades minoritárias. No contexto de parar e revistar, Cochran e Warren (2011) descobriram que as comunidades minoritárias têm maior propensão para avaliar negativamente o comportamento da polícia, quando a paragem é conduzida por um agente não minoritário, mesmo após o controlo pelo motivo que justificará o ato. Os estudos desenvolvidos também constataram que, em parte, cidadãos de origem minoritária avaliam a legitimidade dos polícias mais objetivamente quando são mandados parar por agentes policiais com a mesma origem minoritária. Quando os indivíduos de origem minoritária são mandados parar e são revistados por agentes de origem não minoritária, tendem a ver o comportamento dos agentes com mais ceticismo (p. 14-15).

De facto, o Relator Especial das Nações Unidas elencou soluções baseadas na diversidade dentro da polícia (recrutamento de polícias de diferentes comunidades minoritárias, representando a comunidade), como uma das maneiras de combater e desafiar o perfil racial e étnico da polícia (UNHRC, 2015, par. 60), vinculando assim a falta de diversidade à criação de um perfil.

 
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