Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico Três: Alternativas ao Processo

 

O recurso excessivo à aplicação da pena de prisão e o seu impacto negativo nos sistemas de justiça, nos indivíduos e nas sociedades impulsionou, em alguns países, a adoção e implementação de políticas alternativas, para as fases iniciais do processo penal. Combater o uso excessivo da pena de prisão exige um compromisso que compreenda alternativas à prisão antes da sentença. Esta parte do presente Módulo irá analisar seguidamente a utilização de estratégias de descriminalização e de diversão processual, como formas de evitar a subsequente tramitação do processo criminal, e irá, igualmente, considerar a importância de alternativas à prisão provisória.

 

Decriminalização

"Legalização" é o processo pelo qual determinadas condutas anteriormente ilegais à luz do ordenamento jurídico passam a ser consideradas legais, podendo ser sujeitas a uma nova regulamentação legal. 

"Descriminalização" é o processo pelo qual uma conduta previamente tipificada como crime deixa de o ser, podendo ficar sujeita a sanções de outra natureza (por exemplo, administrativas).

Uma questão central quando nos reportamos ao tema do uso excessivo da prisão, é se certos tipos de comportamento devem ou não ser tipificados como crime. A descriminalização corresponde ao “processo de alteração da lei no sentido de a conduta definida como crime deixar de o ser" (UNODC, 2007, p.13). Como evidenciado no relatório do Relator Especial das Nações Unidas de 2018, sobre o direito à saúde, o enquadramento legal penal que criminalize certos comportamentos, identidades ou status, tais como a prostituição, a orientação sexual, a identidade de género, o uso de drogas, o facto de se ser portador de HIV, o aborto e a vadiagem, impede muitas vezes que os indivíduos com grandes dificuldades relacionadas com o seu estado de saúde tenham acesso ao sistema de saúde, porque são derivados para a prisão (UNHRC, 2018, para. 19b). O relatório declara que: 

O predominante recurso à aplicação da pena de prisão como resposta a questões de segurança e de saúde pública, levou à monopolização de recursos que deveriam ser redistribuídos, para apoiar o desenvolvimento progressivo de sistemas sólidos de saúde, a criação de escolas seguras, de programas de apoio a relações saudáveis, de acesso a oportunidades de desenvolvimento e a ambientes livres de violência (UNHRC, 2018, para. 19c). 

Nas últimas décadas, vários países têm adotado medidas com vista à descriminalização de certos comportamentos. Por exemplo, a vadiagem e a desordem pública têm sido descriminalizadas em muitos ordenamentos, com o intuito de reduzir significativamente as taxas de encarceramento daqueles que vivem em situações de marginalização. Em 2012, as Filipinas adotaram uma lei que descriminaliza a vadiagem (cf. Projeto The Law Phil, 2012). A Finlândia, ao descriminalizar a embriaguez pública, permitiu uma redução significativa da população prisional (cf. De Vos et al., 2014). Alguns países, como a Noruega e Portugal, adotaram medidas significativas para descriminalizar o uso e posse de drogas, transferindo a responsabilidade pela política de drogas do sistema de justiça para o sistema de saúde, priorizando assim o tratamento à punição. 

Nos últimos anos, alguns Estados descriminalizaram o aborto, permitindo que as mulheres tivessem o direito de o realizar com a devida segurança e acesso aos cuidados médicos necessários (ver por exemplo: Barrica, 2018; Berer, 2017). Além disso, Organizações Internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV e AIDS (UNAIDS), o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e a Rede Global de Projetos de Trabalho Sexual (NSWP) apelaram aos Estados que descriminalizassem a prostituição, como parte de um esforço global para prevenir e tratar doenças sexualmente transmissíveis como o HIV, permitindo assim o acesso dessas pessoas a cuidados de saúde (ver OMS, 2012). Embora a prostituição continue a ser um assunto polémico em muitos países, foi descriminalizada na Nova Zelândia, em 2003, no âmbito da Lei de Reforma da Prostituição (Prostitution Reform Act), que "não só revogou a legislação que criminalizava a prostituição, como também concedeu novos direitos às prostitutas/trabalhadoras do sexo" (Armstrong, 2017).    

 

Diversão Processual

As estratégias de diversão incluem qualquer medida que impeça a tramitação formal do processo contra o ofensor no âmbito do sistema criminal. A base das estratégias de diversão decorre do entendimento de que uma condenação criminal "desencadeia um conjunto de consequências ‘colaterais’" que impede, muitas vezes, a possibilidade de os indivíduos se integrarem na sociedade e de serem membros produtivos da mesma (Center for Health and Justice, 2013, p.8). A existência de um cadastro criminal dificulta, muitas vezes, o acesso à educação, à habitação ou ao mercado de trabalho, o que por sua vez pode conduzir à prática de novos crimes. Os especialistas da área têm sustentado que, comparativamente com a pena de prisão, as medidas de diversão que estejam focadas nas causas do crime apresentam uma relação custo-benefício de relevo e constituem uma ferramenta positiva, que pode contribuir para a melhoria da segurança comunitária e bem assim para a redução dos níveis de reincidência (Centro de Saúde e Justiça, 2013, p. 8). 

Muitos Estados reconheceram que a pequena criminalidade não deve necessariamente desencadear um processo e que o apoio e a intervenção, em vez da punição, podem contribuir para a redução futura de conflitos com a lei (para informações sobre a Alemanha e a Holanda cf.: Vera Institute for Justice, 2013). As estratégias de diversão podem compreender diferentes medidas, mas o mais comum será a pessoa acusada da prática de um crime ser alvo de uma admoestação ou advertência, ou encaminhada para tratamento, para o sistema de ensino ou para intervenção relacionada com a reparação, como alternativas ao processo penal. Alguns Estados garantem a possibilidade de pagamento de uma multa ou de uma indemnização à vítima, como alternativa ao processo judicial (Vera Institute for Justice, 2013 e Croallet al., 2012). O cumprimento de uma medida de diversão significa normalmente que a acusação será retirada ou reduzida, enquanto o incumprimento poderá dar lugar e até intensificar a sanção inicial. 

Os órgãos de polícia criminal e o Ministério Público desempenham um papel crucial na aplicação de medidas e estratégias de diversão. Geralmente, estes dois órgãos agem como guardiões do sistema processual penal, caso optem pela emissão de uma advertência, aplicação de multa, ou pelo encaminhamento para um programa de reabilitação, em vez de decidir pela tramitação processual. Os critérios de aplicação de medidas de diversão pela polícia devem ter base legal, ser transparentes e coerentes com os princípios basilares do ordenamento jurídico. Os policiais necessitam de orientações claras sobre quando se podem meramente limitar a emitir avisos e a não adotar outras medidas, sobre quando podem derivar os ofensores para programas de tratamento e quando devem remeter os casos para o Ministério Público (UNODC, 2007). Para mais informações sobre a importância da transparência e responsabilização dos órgãos competentes, ver o Módulo 5 na Série de Módulos da Universidade E4J sobre Prevenção da Criminalidade e Justiça Criminal. 

A existência de programas de Justiça Restaurativa pode desempenhar um papel crucial na tomada de decisão sobre a diversão processual. A consagração da mediação vítima-ofensor e de outras estratégias restaurativas que envolvam encontros entre ofensores, vítimas e membros da comunidade para resolver questões que, de outro modo, seguiriam os seus trâmites nos tribunais, "tem potencial para determinar a diversão de casos que de outro modo teriam resultado na prisão, tanto antes do julgamento como depois da condenação” (UNODC, 2007, p.15; ver também UNODC, 2006b). 

 

Alternativas à prisão preventiva

O World Prison Brief deu conta, em 2017, que "mais de dois milhões e meio de pessoas estão detidas em instituições penais em todo o mundo como prisioneiros em regime de prisão preventiva" (Walmsley, 2017a, p.2) e que este número cresceu 15%, a partir de 2000, embora existam diferenças consideráveis entre regiões e países. 

Penalistas, ativistas de direitos humanos e as orientações internacionais deixam claro que as alternativas à prisão preventiva, durante as fases iniciais do processo, devem ser consideradas em primeiro lugar. Com efeito, no plano internacional existe um amplo consenso no sentido da redução do recurso à prisão preventiva e incentiva-se, sempre que possível, o uso de medidas alternativas à prisão. O Comentário sobre as Regras de Tóquio evidencia que o recurso à prisão preventiva "deverá ter lugar de forma moderada sempre que possível" (1993, p.8). A Regra 6.2 das Regras de Tóquio (1990) estabelece que “as alternativas à prisão preventiva devem ser aplicadas o mais cedo possível no processo”. A nível regional, o Conselho da Europa (1999, para. 12) determina que "deve ser considerada a utilização o mais vastamente possível de medidas alternativas à prisão, tais como a exigência de o indiciado residir em um certo local, a restrição de acesso a determinados locais sem autorização, a prestação de caução e a supervisão". O Princípio III dos Princípios e Boas Práticas sobre a Proteção das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas, aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, evidencia "que o uso da prisão provisória é excecional" e também a importância de "medidas alternativas ou substitutivas à prisão" (2008, p.157). No entanto, num relatório de 2017, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2017a, p.11) sublinhou a "aplicação arbitrária e ilegal da prisão preventiva" como um "problema crónico na região", incentivando os Estados a adotar "medidas específicas que procurem reduzir o recurso à prisão preventiva de acordo com as normas internacionais relevantes" (Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 2017a, p.12). 

A principal crítica feita à aplicação da prisão preventiva, baseia-se na constatação consensual de que a presunção da inocência deve sempre conduzir a uma presunção em favor da liberdade, e que a prisão preventiva deve ser a exceção e não a regra. Tal como foi realçado, em 2018, pela Reforma Penal Internacional “A prisão preventiva é uma das principais causas de excesso de privação de liberdade e de sobrelotação prisional, continuando a ser um grande desafio para os sistemas prisionais. Cerca de 30% da população prisional não foram objeto de condenação.” (2018, p.11). 

O artigo 10(2)(a) do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Resolução AG 2200A (XXI)) reconhece claramente o especial estatuto dos indivíduos detidos em prisão preventiva. Ali se afirma que: "As pessoas acusadas devem, salvo circunstâncias excecionais, ser isoladas ou afastadas dos condenados e beneficiar de um tratamento adequado e distinto de acordo com a sua posição processual de pessoa não condenada”. Todavia, embora legalmente se presumam inocentes, as pessoas presas preventivamente são muitas vezes presas em condições piores do que as que enfrentam os condenados, e em muitos casos isso sucede ao longo de muitos anos. O Subcomité das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura (2011, par. 158) declarou: "Longos períodos de tempo de prisão preventiva contribuem para a sobrelotação prisional, exacerbando o agravamento de problemas já existentes, no que respeita às condições e às relações entre os presos preventivos e o staff prisional; e também aumentam o fardo dos tribunais.” Além disso, os detidos em prisão preventiva, que muitas vezes já se encontram em desvantagem social e económica, perdem o acesso à família, à comunidade, à educação, ao emprego e à sua possível inserção num programa dedicado ao tratamento de drogas, devido, precisamente, à prisão preventiva. 

As justificações para a imposição da prisão preventiva ou de alternativas à sua imposição são diferentes das razões que justificam a punição descritas no Tópico Dois. Para garantir que a prisão preventiva seja utilizada como medida de ultima ratio são necessárias regras claras que norteiem a aplicação da prisão àqueles que se presumem inocentes. A regra 6.1 das Regras de Tóquio (1990) determina que os juízes devem levar em consideração "a investigação do alegado crime e a proteção da sociedade e da vítima", mas o simples facto de serem considerados suspeitos de cometer um crime não é suficiente para ditar a aplicação da prisão preventiva. Os instrumentos regionais relevantes e a doutrina dos direitos humanos determinam que para justificar a prisão preventiva do indiciado, deverá haver:

  • "a suspeita fundada da prática de um crime, passível de ser punido com pena de prisão, e
  • um verdadeiro interesse público que, sem descurar a presunção de inocência, supera o direito à liberdade individual, e
  •  a existência fundada de razões substanciais para acreditar que, caso fosse libertado, a pessoa em causa:
    • Fugiria,
    • Cometeria um crime grave,
    • Interferiria com a investigação ou com o curso do processo, ou
    • Representaria uma séria ameaça à ordem pública, e
    • As medidas alternativas não seriam suscetíveis de dar resposta às questões supra mencionadas" (Amnistia Internacional, 2016, p.61). 

Reduzir e evitar a prisão preventiva também requer medidas de implementação ou opções que permitam que o indiciado permaneça na comunidade. Tanto as Regras de Tóquio como as Regras das Nações Unidas para o Tratamento das Mulheres Presas e Medidas Não-Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras (Regras de Banguecoque) (2010), encorajam os sistemas de justiça criminal a apresentar um conjunto amplo de medidas não-prisionais e condições, com o objetivo de evitar o recurso desnecessário à prisão preventiva. De entre essas condições, incluem-se as seguintes:

  • “o comparecimento obrigatório no tribunal num determinado dia específico;
  • e não:
    • praticar determinadas condutas,
    • entrar ou sair de determinados locais ou distritos, ou
    • estar em contacto com determinadas pessoas;
  • fixar residência em um certo local;
  • apresentar-se, diária ou periodicamente, no tribunal ou perante a polícia ou outra autoridade especificamente designada;
  • entregar às autoridades o passaporte ou outros documentos de identificação;
  • aceitar a supervisão de uma autoridade designada pelo tribunal;
  • sujeitar-se ao monitoramento eletrónico; ou
  • assegurar garantias, pecuniária ou outras, de presença ao julgamento a ter lugar ou já em transcurso. A alternativa mais frequentemente prestada é a caução" (UNODC, 2006c, p. 8, sublinhado conforme o original). 

Um dos principais desafios, quando se disponibilizam estas medidas alternativas, é assegurar a existência de um sistema totalmente funcional e suficientemente financiado para gerir, implementar e monitorar a aplicação das medidas alternativas. Devem ser criados mecanismos para assegurar o cumprimento das condições previamente decretadas pelo órgão competente para o efeito, tranquilizando ainda as vítimas do crime. A implementação efetiva de alternativas à prisão preventiva requer uma série de medidas financeiras, logísticas e tecnológicas. Por exemplo, a supervisão direta requer a existência de uma entidade que possa conduzir a supervisão, a monitoramento eletrónico requer investimento não só tecnológico como infraestrutural (UNODC, 2007).

 
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