Este módulo é um recurso para professores 

 

Infrações relacionadas ao conteúdo

 

Como o título indica, os cibercrimes de que trata esta seção envolvem conteúdo ilegal. Um excelente exemplo de conteúdo ilegal é um material de abuso sexual infantil. A expressão child sexual abuse material deve ser usado em lugar de pornografia infantil (child pornography), porque esta minimiza a gravidade do crime. O que se vê não são atividades sexuais entre uma criança e um adulto, mas uma violência sexual contra uma criança. No entanto, os marcos normativos internacional, regionais e nacionais usam a denominação “pornografia infantil” em vez de material de abuso sexual infantil. O Artigo 9º da Convenção sobre Ciberrime  do Conselho da Europa criminaliza delitos relacionados à pornografia infantil, que são conceituados como “todo o material pornográfico que represente visualmente um menor envolvido em comportamentos sexualmente explícitos; uma pessoa com aspecto de menor envolvida em comportamentos sexualmente explícitos; [ou] ou imagens realistas de um menor envolvido em comportamentos sexualmente explícitos”. Essa concepção de pornografia infantil não é universalmente aceita. Alguns Estados criminalizam imagens não realistas de pornografia infantil, como desenhos animados e cartuns (Brasil, Costa Rica, República Dominicana, Guatemala, México, Nicarágua, Panamá e Uruguai, por exemplo), enquanto outros apenas criminalizam imagens envolvendo crianças reais (como Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, Honduras, Paraguai, Peru e Venezuela) (ICMEC e UNICEF, 2016). 

Uma pessoa comete o crime previsto no Artigo 9º da Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa se, de forma intencional e ilegítima, sua conduta envolve a “produção de pornografia infantil com o propósito de a divulgar através um sistema informático; a oferta ou disponibilização de pornografia infantil através de um sistema informático; a difusão ou transmissão de pornografia infantil através de um sistema informático; a obtenção para si ou para outra pessoa de pornografia infantil através de um sistema informático; [ou] a posse de pornografia infantil num sistema informático ou num dispositivo de armazenamento de dados informáticos”. O Artigo 29 (3) (a-d) da Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Proteção de Dados Pessoais também proíbe a produção, aquisição, posse e facilitação de pornografia infantil. 

Um notório pedófilo (ou seja, uma pessoa que se sente sexualmente atraída por uma criança), Matthew Falder, que era acadêmico no Reino Unido com PhD pela Universidade de Cambridge, foi acusado em 2017 do cometimento de mais de 137 crimes contra 46 vítimas, que incluíam a instigação ao estupro e à prática de abuso sexual entre menores e membros de suas próprias famílias, incitação à exploração sexual de crianças e a posse e distribuição de pornografia infantil, entre outras infrações (Dennison, 2018; Vernalls e McMenemy, 2018). O agente chantageava suas vítimas levando-as a cometer atos humilhantes, desagradáveis, degradantes ou abusivos contra si mesmas (como automutilações ou obrigá-las a lamber uma escova de banheiro suja) e contra outrem, e registrava tais condutas em fotografias e em vídeo (Davies, 2018; Dennison, 2018). Em seguida, o acusado compartilhava tais imagens e vídeos em sites de pornografia violenta (hurt core), como o Hurt 2 the Core (que não mais existe), e em sites especializados em estupros, homicídios, sadismo, tortura e conteúdo pedófilo (McMenemy, 2018).

Você sabia?

Bonecas sexuais anatomicamente parecidas com crianças são vendidas online. Esses réplicas podem ser de modelo padrão ou feitos sob encomenda e são produzidos principalmente na China e no Japão.

Quer saber mais?

Leia: Maras, Marie-Helen e Lauren Renee Shapiro. (2017). Robôs e bonecas sexuais em forma de crianças: mais do que apenas um vale da estranheza. Journal of Internet Law 21 (6), 3-21.

Exploração sexual de crianças ou adolescentes com fim de lucro é uma expressão usada para descrever atividades ilícitas que envolvem a prática de abuso sexual de menores em troca de vantagem pecuniária ou in natura (como abrigo ou comida). Um exemplo de exploração sexual de crianças ou adolescentes com fins comerciais é a transmissão ao vivo de violência sexual contra menores, que envolve a transmissão e difusão em tempo real de tais práticas, nas quais os espectadores podem ser passivos ou ativos, ou seja, podem simplesmente assistir à transmissão ou interagir com a vítima ou solicitar que determinados atos sejam por ela realizados, sozinha, ou que adultos com ela pratiquem certos atos abusivos (UNODC, 2015). Essas e outras formas de exploração sexual de crianças ou adolescentes, com o fim de lucro, como o tráfico de crianças, que envolve “induzir, recrutar, abrigar, transportar, fornecer, ou obter um menor de dezoito anos para fins de prostituição” (Maras, 2016 , p. 310), são examinadas detalhadamente no Módulo 12 sobre cibercriminalidade interpessoal e na série de módulos universitários do programa E4J sobre tráfico de pessoas

Ressalvados o material sobre abuso sexual infantil e a transmissão ao vivo (streaming) de tais abusos, outros conteúdos incluídos nesta categoria de crimes não são considerados ilegais em todos os países. É o caso de "materiais racistas e xenófobos", que correspondem a "qualquer material escrito, imagem ou outra representação de ideias ou teorias que defende, promove ou incita ao ódio, à discriminação ou violência contra um qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos em razão da raça, cor, ascendência, origem nacional ou étnica e religião, se for utilizado como pretexto para qualquer um destes elementos", conceito previsto no Artigo 2.º (1) do Protocolo Adicional à Convenção sobre o Cibercrime Relativo à Incriminação de Atos de Natureza Racista e Xenófoba Praticados através de Sistemas Informáticos, de 2003. No entanto, tal conteúdo é proibido pelo direito internacional, por exemplo, pelo Artigo 29.º (3) (ef) da Convenção da União Africana sobre Cibersegurança e Proteção de Dados Pessoais e pelo Artigo 20.º (2) do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, de 1966, que veda "qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou a violência" (consulte o Módulo 3 sobre marcos normativos e direitos humanos, para obter mais informações sobre a criminalização desta e de outras formas de expressão, com base no direito interno e sobre a falta de proteção dessas formas de expressão à luz do direito internacional dos direitos humanos). 

A publicação de informações falsas também é considerada crime em vários países. Na Tanzânia, o Artigo 16.º da Lei de Cibercrimes de 2015 proíbe a publicação de "informações ou dados apresentados em uma figura, texto, símbolo ou qualquer outra forma em um sistema informático, sabendo-se que essas informações ou dados são falsos, enganosos, errôneos ou imprecisos, se com a intenção de difamar, ameaçar, importunar, insultar ou de outra forma enganar ou iludir o público ou induzir à prática de um crime”. A Lei de Uso Indevido de Computadores e Cibercrimes do Quênia, de 2018, também criminaliza a publicação de informações que se sabe falsas “por impressão, por transmissão, em dados ou em um sistema informático, de forma preordenada ou da qual resulta pânico, caos ou violência entre os cidadãos de República, ou que é capaz de desacreditar a reputação de uma pessoa” (Artigo 23). No entanto, de acordo com o Projeto de Estudo Abrangente sobre Cibercrimes do UNODC, de 2013, “os países relatam a existência de limites variados para a liberdade de expressão, inclusive no que diz respeito à difamação, injúria, desacato, ameaça, incitação ao preconceito, vilipêndio a sentimentos religiosos, divulgação de material obsceno e ataques ao Estado” (UNODC , 2013, p. xxi). Em alguns casos, a remoção pelas autoridades públicas de conteúdo da Internet relacionado a essas formas de expressão tem suscitado preocupações com os direitos humanos (UNODC, 2013, p. 25; para obter mais informações sobre essas e outras preocupações relacionadas a restrições à  liberdade de expressão, consulte o Módulo 3 sobre marcos normativos e direitos humanos. 

Em 2005, o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou a Resolução 1624, que, entre outros temas, conclama os Estados Membros a “adotarem as medidas necessárias e apropriadas e de acordo com suas obrigações nos termos do direito internacional para (...) proibir por lei a  incitação à prática de ato ou atos terroristas e impedir tais condutas" (Resolução CS/ONU 1624, de 2005). As medidas que os Estados-Membros podem adotar para alcançar esse objetivo incluem a criminalização da incitação ao terrorismo. 

Outros organismos também têm exortado os Estados a tomarem medidas para combater a apologia ou a incitação ao terrorismo em seus ordenamentos jurídicos internos. O Artigo 3.º da Decisão-Quadro 2008/919/JAI, do Conselho da União Europeia, de 28 de novembro de 2008, que altera a Decisão-Quadro 2002/475/JAI, relativa à luta contra o terrorismo, e o Artigo 5º da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção do Terrorismo, de 2005, por exemplo, obrigam os respectivos Estados-Membros a criminalizar atos ou declarações que incitem a prática de atos de terrorismo. Além disso, a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção do Terrorismo impõe aos Estados Partes a obrigação de criminalizar o “incitamento público à prática de uma infração terrorista”, bem como o recrutamento e o treinamento para o terrorismo (UNODC, 2012, pp. 39-40). 

Embora atualmente não exista no direito internacional uma obrigação universal vinculante para os Estados de criminalizar o incitamento ao terrorismo, muitos deles têm ferramentas jurídicas e de justiça criminal para o enfrentamento de tais condutas. Pode-se citar como exemplo de abordagens empregadas em alguns países o disposto na seção § 373 (a) do título 18 do Código dos Estados Unidos (18 U.S.C. §373), que proíbe o induzimento e a conspiração criminosas, de modo a viabilizar a persecução de atos de incitação ao terrorismo (vide o caso Estados Unidos da América vs. Emerson Winfield Begolly, UNODC, 2012, pp. 39-41), e também o que prevê o Art. 1º da Lei de Terrorismo, de 2006, do Reino Unido, que criminaliza o “incentivo ao terrorismo” da seguinte maneira: 

Comete crime aquele que: (a) publica uma declaração à qual esta seção se aplica ou faz com que outrem publique tal declaração; e (b) no momento em que ocorre tal publicação ou que se faz publicá-la,  (i) pretenda direta ou indiretamente encorajar, incentivar ou induzir alguém a cometer, preparar ou instigar atos de terrorismo ou crimes da Convenção; ou (ii) assuma o risco de que outras pessoas sejam direta ou indiretamente incentivadas ou induzidas por tal declaração a cometer, preparar ou instigar tais atos ou crimes. 

Autoridades do Reino Unido já haviam logrado processar com êxito situações de incitamento ao terrorismo com base na Lei Antiterrorismo do ano 2000. Veja o caso de Younes Tsouli e outros, que foram condenados por violar tal lei, ao incitar o terrorismo no exterior por meio da publicação on-line de material ilícito em sites e salas de bate-papo (chats) por eles criados, administrados e controlados (R. vs. Tsouli, 2007; UNODC, 2012, parágrafo 114). 

Como já vimos, não há dever universal, à luz do direito internacional, de implementação de medidas voltadas à repressão à incitação ao terrorismo. Nada obstante, muitos Estados adotam  medidas desta ordem no direito interno. Vários fatores contribuem para instituir desafios para que se chegue a uma abordagem internacionalmente aceita. Entre eles estão a ausência de um conceito universal de terrorismo e as diferentes perspectivas, sob o prisma constitucional e dos direitos fundamentais, dos direitos à liberdade de expressão e de associação, do direito à privacidade etc. Portanto, a adoção e implementação de enfoques nacionais – que tenham como objeto conteúdo on-line que incite a prática de atos violentos de terrorismo e não tenham um efeito inibidor (chilling effect) na liberdade de expressar legítima e licitamente visões políticas ou ideológicas específicas – continua sendo um desafio para legisladores, órgãos de persecução penal e de justiça criminal de todos os Estados (ver UNODC, 2012, pp. 39-41). 

O conflito entre a criminalização do conteúdo on-line e o exercício de certos direitos humanos é examinado mais a fundo no Módulo 3 sobre marcos normativos e direitos humanos, assim como no Módulo 10 sobre privacidade e proteção de dados. Para obter mais informações sobre a incitação ao terrorismo, consulte os Módulo 2 e 4 do Currículo de Capacitação Jurídica em Contraterrorismo do UNODC, bem como os Módulos 2 e 4 da série de módulos universitários do programa E4J sobre contraterrorismo.

 
Seguinte: Conclusão
Regressar ao início