Este módulo é um recurso para professores 

 

Atividades de tráfico ilícito de armas de fogo em maior escala

 

O tráfico em larga escala envolve diferentes cenários e situações. Os exemplos abaixo ilustram alguns dos casos mais comuns que envolvem tráfico em larga escala e indicam algumas de suas características, como a complexidade de seu modus operandi e a natureza global de seu comércio ilícito.

Os traficantes de armas são organizados para mover remessas de armas em larga escala, medidas em centenas de toneladas ou mais, passando por várias autoridades nacionais competentes para a aplicação da lei. O tráfico em larga escala é geralmente associado ao abastecimento de grupos envolvidos em conflitos armados (atores estatais e não estatais, grupos rebeldes e insurgentes, entre outros) ou a envios para localidades embargadas e proibidas (UNODC, 2015). Dado o tamanho e a estrutura militar de muitos desses grupos armados, é esperado que eles exijam não apenas quantidades maiores, mas também um certo grau de padronização de seus arsenais militares, ao contrário de grupos de criminalidade comum e organizada.

Instâncias de alto nível de tráfico ilícito de armas de fogo geralmente envolvem intermediários e comerciantes ilegais e, às vezes, agências governamentais secretas que lidam com transferências de alto volume de armas de fogo. Por exemplo, em meados da década de 1980, os Estados Unidos forneceram armas pequenas e outras armas leves a grupos insurgentes e rebeldes em Angola e aos guerrilheiros do Contras na Nicarágua (Stohl e Tuttle, 2008). Durante a ocupação soviética do Afeganistão, na década de 1980, houve uma grande variedade de armas secretamente fornecidas aos Mujahideen. Mesmo após o escândalo envolvendo o coronel Oliver North e o caso Iran-Contras, e a exposição na mídia da escala da apropriação indevida de fundos do governo dedicados ao contrabando de armas, a Agência Central de Inteligência persistiu com o fornecimento escondido de armas para a Nicarágua, protegido por uma rede de empresas de fachada (Klare e Anderson, 1996).

Cenário do caso 4: caso Otterloo

O desvio de cargas de armas regulamentadas também costuma resultar de práticas corruptas, intermediação ilícita e afrouxamento da regulamentação e controle. Um exemplo notório desse tipo de tráfico é o chamado "caso Otterloo" (em referência ao nome do navio que transportava as armas), de 1999, onde aproximadamente 3.000 AK-47 e 2,5 milhões de cartuchos de munição foram desviados da Polícia Nacional da Nicarágua para as Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), uma organização terrorista paramilitar na Colômbia. A transação original e legítima deveria ser uma negociação entre a Polícia Nacional da Nicarágua e uma revendedora privada de armas da Guatemala, o Grupo de Representações Internacionais (GIR S.A.), que ofereceu à polícia uma quantidade de novas pistolas e mini-uzis de fabricação israelense em troca de cinco mil AK-47 e 2,5 milhões de cartuchos de munição. As armas foram despachadas da Nicarágua a bordo de um navio chamado “Otterloo” destinado ao Panamá e de lá para o comprador, uma empresa privada na Guatemala. Em vez disso, o navio foi diretamente para o porto de Turbo, na Colômbia, de onde as armas foram transferidas para 23 caminhões e, no caminho, foram interceptadas e entregues à AUC. O capitão do navio desapareceu pouco depois e a companhia marítima foi dissolvida alguns meses mais tarde. O Otterloo foi vendido a um cidadão colombiano. Uma investigação realizada a pedido do governo colombiano pela Organização dos Estados Americanos (OEA) constatou que o desvio foi possível devido à negligência por parte de vários funcionários do governo e de empresas privadas, assim como às ações criminosas de vários comerciantes de armas (OEA, 2003).

O caso e as investigações internacionais subsequentes revelaram lacunas legislativas e a importância de controles mais eficazes sobre os intermediadores e as atividades intermediárias. Por fim, levou à adoção, pelos Estados membros da OEA, de uma regulamentação suplementar sobre os intermediários e atividades de intermediação, a fim de evitar desvios e combater o tráfico ilícito de maneira mais eficaz.

A falsificação de documentos, a corrupção e o papel facilitador dos agentes ilícitos continuam no centro de muitos casos de tráfico em larga escala. No chamado "caso Montesinos", de 2.000 a 10.000 rifles Kalashnikov que o governo jordaniano havia vendido ao governo peruano foram lançados de paraquedas na selva colombiana para as mãos das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Embora a venda fosse aparentemente legítima por parte da Jordânia, o governo do Peru havia fornecido documentos falsificados porque as armas foram trocadas por cocaína pelas FARC. Em 2006, Vladimiro Montesinos, o principal assessor de inteligência de Alberto Fujimori, o então Presidente do Peru, recebeu uma sentença de 20 anos de prisão na época por ser considerado culpado de projetar e executar a operação (El País, 2006).

 

Tráfico de armas em larga escala a partir de estoques de governos extintos: tráfico pós União Soviética e pós Iugoslávia

O papel da Ucrânia como um “epicentro do tráfico de armas pós União Soviética” é destacado na interessante análise de Overton (2015) sobre o tráfico ilícito de armas de fogo. Uma comissão de inquérito em 1992 concluiu que os estoques militares do país avaliados no valor de US$ 89 bilhões tinham, seis anos depois, um déficit de US$ 32 bilhões. Esses estoques foram roubados, desviados e revendidos a terroristas, chefes militares, grupos insurgentes e à criminalidade organizada, como a Frente Revolucionária Unida de Serra Leoa, as forças das FARC na Colômbia e o exército de Charles Taylor na Libéria. Os carregamentos de armas traficadas continham milhões de cartuchos de munição e milhares de rifles de assalto do tipo AKM (Overton, 2015: 253).

O fim da Guerra Fria e o colapso da União Soviética criaram oportunidades para empresários criminosos com conexões militares e governamentais envolverem-se em desvios em larga escala de armas de fogo ilegais. No entanto, nesse momento “novas realidades haviam criado um tipo diferente de contrabandista”, às vezes não oficialmente sancionado pelos governos, mas também capaz de tirar proveito do livre comércio global, dinheiro líquido, telefones celulares, internet e uma série de práticas comerciais secretas e flexíveis (UNODC, 2010: 14; Overton, 2015: 253). 

O cenário de tráfico de armas mencionado na Europa Oriental ilustra como uma região pós-conflito, como os Bálcãs, tornou-se o centro das principais operações de tráfico de armas para o Iraque, Libéria, Sudão, Birmânia, Líbia e Somália, facilitado e engendrado por intermediadores internacionais como Tomislav Damnjanovic (Griffiths e Wilkinson, 2007). Também mostra como as atividades legais e ilícitas, incluindo a transferência de armas, se misturam, assim como os níveis de complexidade que esse tipo de tráfico em larga escala pode alcançar.

 

Tráfico em larga escala para a África

Os eventos após a queda do regime de Kadafi na Líbia em 2011 também são emblemáticos das consequências desestabilizadoras que a perda de controle sobre os estoques do governo teve em regiões maiores da África. Grandes quantidades de armas roubadas de estoques do governo foram traficadas por anos nos países do Saara, onde acabaram nas mãos de grupos terroristas e criminosos, bem como de outros atores não estatais, desencadeando uma série de eventos que levaram a ataques terroristas e crises políticas/militares em vários países vizinhos, como Mali, Níger e Burkina Faso. O trabalho de campo realizado pela Pesquisa de Armamento de Conflitos em 2015 forneceu evidências sobre a proliferação de armas vindas da Líbia, que chegaram ao Mali, Chade, Níger e Síria, e foram usadas nas insurgências dos Tuaregues de 2012 no Mali, e permitiram que vários grupos no início da guerra civil na Síria aumentassem seu poder de fogo (CAR, 2016).

 

Transferências legais e reexportação ilegal: Tráfico em larga escala associado a violações de embargo de armas

Lebrun e Leff (2013) investigaram o fornecimento de armas e munições no Sudão e no Sudão do Sul para o Small Arms Survey (2013), concluindo que a região continha cerca de 2,7 milhões de armas pequenas e armamento leve. Desde meados de 2004, após a 2ª Guerra Civil Sudanesa (1983-2005), a região ficou sujeita a um embargo de armas da ONU, embora “todas as partes do conflito continuassem a ter acesso a recursos militares” e o embargo tenha sido violado “abertamente, de forma consistente e sem consequências”. De acordo com dados oficiais da alfândega, as armas produzidas na China e no Irã e legalmente importadas para o Sudão parecem predominar na região (embora isso não represente a totalidade das importações de armas), indicando que cerca de 58% das transferências de armas e munições para o Sudão foram originadas na China.

Embora essas transferências de armas tenham sido feitas inicialmente às autoridades sudanesas e sujeitas a garantias de certificação do usuário final, mais de dois terços das armas na região estão agora na posse de atores não estatais (grupos de milícias, insurgências, forças tribais e paramilitares rebeldes) devido às retransferências: fornecimento direto a grupos armados não estatais, captura em campos de batalha e fornecimento a civis por grupos não estatais. LeBrun e Leff (2013) concluem que essas armas continuam alimentando insurgências e violência intercomunitária na região. Este é um exemplo claro de transferências legais seguidas de reexportação ilegal para países terceiros ou retransferência para outros usuários finais, especialmente países que enfrentam situações de conflito. Essas transferências são contrárias aos objetivos do Tratado de Comércio de Armas, que se esforça para estabelecer critérios que assegurem que nenhuma transferência de armas seja feita para países que se encontram em situações nas quais há um alto risco de retransferências e desvio para grupos armados, insurgentes e rebeldes, com a probabilidade de provocar graves violações dos direitos humanos. 

 

A utilização da certificação de uso final

O SIPRI produziu outro estudo sobre os procedimentos de certificação do usuário final em 2010 (Bromley e Griffiths, 2010). O estudo encontrou exemplos de certificados de usuário final forjados, fabricados ou alterados, emitidos para transferências de armas envolvendo Guiné Equatorial, Chade e Tanzânia. O mesmo estudo encontrou exemplos de certificados que, desde 1945, garantiram um alto nível de discrição e limitada supervisão documental no caso dos comerciantes de armas britânicos que pensavam estar operando “em nome” do governo. Entre 2003 e 2005, uma série de certificações de usuário final falsificadas permitiu a exportação de 200.000 rifles AK-47 dos países da Europa Oriental. Como observou o Small Arms Survey (2002), o suprimento de armas de fogo deve ser visto como uma “variável independente” em zonas de conflito, ou “facilitadores situacionais” de uma variedade de formas de violência, abrangendo desde abuso doméstico, violência relacionada a gangues e misoginia, até o terrorismo e a guerra civil (Squires, 2014: 230). 

 
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