Este módulo é um recurso para professores 

 

Criminalidade Organizada e Grupos Criminosos Organizados

 

Conceitos e Termos

A criminalidade organizada é um conceito amplo que engloba muitas formas e manifestações diferentes, desde grandes redes orientadas a diversos tipos de crimes até pequenas empresas familiares dedicadas a um ou alguns crimes específicos. No entanto, independentemente do objetivo principal da criminalidade organizada, as armas de fogo são elementos centrais e naturalmente associados a estes grupos. 

Tentar capturar esse conceito fluido é difícil. A Convenção contra a Criminalidade Organizada Transnacional (UNTOC) não define a criminalidade organizada, mas se concentra em alguns elementos que a caracterizam: 

  • a presença de um grupo estruturado de três ou mais pessoas;
  • o objetivo de cometer um ou mais crimes graves;
  • a natureza do grupo voltada para o lucro, em particular a finalidade de obter benefícios financeiros ou materiais

Além disso, a Convenção exige, para sua aplicabilidade, a existência de um elemento transnacional nas infrações cometidas por esses grupos (embora a transnacionalidade não faça parte da definição das infrações e nem do grupo). 

‘Grupo criminoso organizado’ deve, portanto, significar “um grupo estruturado de três ou mais pessoas que existe ao longo de um período de tempo, cujos membros agem em conjunto visando a prática de um ou mais crimes ou infrações graves, a fim de obter um benefício financeiro direto ou indireto ou outro benefício material” (artigo 2, subparágrafo (a)). Ao focar em grupos ou organizações criminosas, e não em indivíduos, a Convenção destaca o elemento associativo frequentemente presente nas manifestações da criminalidade organizada: um grupo de pessoas agindo em conjunto, que cometem crimes orientados por um objetivo mais amplo, que transcende as motivações de um único crime. 

A criminalização da ‘participação de um grupo criminoso organizado’ (artigo 5) é o pendant natural para esta abordagem e serve ao propósito principal de fornecer aos sistemas nacionais de justiça criminal as ferramentas necessárias para atingir não apenas delinquentes de um único crime, mas também os líderes intelectuais das ações. Além disso, serve para conectar incidentes criminais aparentemente desconectados, mas que respondem a um objetivo comum mais amplo. 

Para se qualificar como grupo criminoso organizado, o grupo deve ter alguma estrutura ou organização interna e deve ter como objetivo a prática de crimes graves: 

Um 'grupo estruturado' significa que o grupo não deve ser formado aleatoriamente para a prática imediata de um crime, mas também não requer funções formalmente definidas para seus membros, continuidade de sua filiação ou uma estrutura desenvolvida (artigo 2, subparágrafo (b)).

Finalmente, a participação em um grupo estruturado é ainda complementada pelo elemento intencional de cometer um ou mais crimes graves. A Convenção não fornece uma lista de crimes considerados de natureza grave, mas sim uma definição geral que remete às leis nacionais:

 ‘Crime grave’ descreve “conduta que constitua delitos puníveis pela legislação nacional com uma pena máxima de privação de liberdade não inferior a quatro anos, ou uma pena ainda mais grave” (artigo 2, alínea (b)).

Estes elementos distintivos são de particular importância, pois permitem a exclusão de grupos que possam cometer crimes que não são qualificados como crimes graves (por exemplo, gangues de jovens), ou grupos cujo objetivo não seja o benefício financeiro ou material. Assim, em teoria, alguns grupos terroristas ou insurgentes não se enquadrariam neste termo quando seus objetivos permanecerem de natureza puramente ideológica e imaterial. Da mesma forma, grupos envolvidos em crimes específicos com armas de fogo também estariam fora da definição de grupos criminosos organizados se esses crimes não forem considerados pelo direito nacional como crimes graves de acordo com os termos da Convenção.

Este Módulo focaliza a relação entre armas de fogo e seu tráfico ilícito e exemplos representativos de criminalidade organizada, terrorismo e criminalidade de gangues. Uma análise mais aprofundada sobre a criminalidade organizada e o terrorismo pode ser encontrada na Série de Módulos Universitários sobre Criminalidade Organizada (E4J), no módulo sobre Combate ao Terrorismo.

 

Demanda por Armas de Fogo

Em todo o mundo, as armas de fogo estão entre as mercadorias mais procuradas no mercado negro. Relativamente baratas, amplamente disponíveis, extremamente letais, simples de usar, duráveis, portáteis e ocultáveis. Com essas características, as armas de fogo são muito procuradas, especialmente por grupos criminosos (UNODC, 2015). 

As armas de fogo desempenham um papel central e essencial na evolução e na atividade da criminalidade organizada, uma vez que estão naturalmente associadas a crimes tipicamente cometidos por grupos criminosos organizados (GCOs), como chantagem e extorsão, crimes violentos e homicídios. Eles também são necessários aos GCOs para cumprir seus objetivos de ganhar e manter o poder, e de usar esse poder para obter riqueza. Ilícitos por natureza, esses grupos estão envolvidos e conectados a uma ampla gama de redes ilícitas de todos os tipos (por exemplo, drogas, diamantes, vida selvagem, seres humanos, etc.). Sua demanda por armas de fogo é, a este respeito, significativa e relativamente constante. 

Em seu resumo de casos de criminalidade organizada, UNODC (2012: 101) afirma que “As armas de fogo estão ligadas a várias formas de criminalidade organizada de diversas maneiras: como uma ferramenta para obter e manter o poder, como um instrumento para a prática de um crime e como uma mercadoria a ser traficada”. 

Em geral, os grupos criminosos organizados tendem a ter uma preferência por tipos menores de armas de fogo, como revólveres e pistolas, devido à sua portabilidade e capacidade de ocultação. No entanto, em notas de revisão da Europol (2011: 18) apresentou-se que, “embora a maioria dos grupos de criminalidade organizada prefira pistolas, há um aumento no uso de armas de fogo pesadas, como rifles de assalto (por exemplo, AK-47s) e dispositivos explosivos.” Esse crescente interesse por armas e explosivos de alto calibre é indicativo de uma forma mais agressiva de fazer negócios e de uma possível luta por maior poder entre esses grupos.

Armas de Fogo como Instrumentos de Poder

Tradicionalmente, o controle do território era crucial para os GCOs, na medida em que as guerras territoriais eram travadas em uma área de interesse particular que poderia variar de um bairro a territórios nacionais ou internacionais específicos. Este foco territorial mudou até certo ponto para GCOs menores e territórios de gangues de rua. (ver Seção 3 deste Módulo). GCOs maiores se envolvem cada vez mais com o crime global, embora muitos ainda mantenham controle firme sobre uma determinada região; por exemplo, o clã Casalesi da Camorra napolitana controla atividades criminosas (e até certo ponto legítimas) na cidade de Casal di Principe (Squires, 2011).

Gradualmente, com a globalização do crime, muitos GCOs mudaram de direção, tornando-se mais versáteis em relação aos crimes que cometem, mais voltados para o lucro e menos vinculados a um determinado território ou região. Pesquisadores enfatizaram a necessidade de uma nova forma de olhar para os grupos criminosos organizados, com base no pressuposto de que eles estão focados no mercado e não no território (Hobbs, 1998). Tal abordagem é confirmada pela análise de ameaças da Europol (2013: 34), que mostra que:

  • Os grupos criminosos operam cada vez mais em uma base de rede de contatos;
  • 70% dos grupos são compostos por membros de várias nacionalidades;
  • Mais de 30% dos GCOs cometem diversos tipos de crimes. 

Essas evidências não são totalmente novas e sugerem que o foco em um território ou grupo étnico específico pode não ser mais a abordagem predominante para grupos criminosos organizados.

O uso de armas de fogo para projetar poder é fundamental para os GCOs, embora isso nem sempre implique o uso real dessas armas em conflitos abertos. Nas guerras de cartéis de drogas no México, por exemplo, as armas de fogo são usadas com frequência em conflitos abertos, enquanto em outras situações as armas de fogo desempenham um papel mais dissuasor. A existência conhecida ou projetada de grandes estoques de armas de fogo prontos para uso por um grupo criminoso pode impedir que os outros entrem em um conflito aberto. Além disso, a disponibilidade de certos tipos de armas militares de alto grau, em oposição a armas menos poderosas, tem influência na "posição" que os grupos criminosos assumem dentro de suas próprias comunidades criminosas. O resultado é que o grupo criminoso inferior tomará medidas para aumentar e atualizar seus próprios estoques para igualar ou superar os dos grupos mais poderosos, o que promove uma corrida armamentista não oficial da criminalidade organizada.

Quanto maior a presença de armas de fogo em uma área específica, maior a prevalência de crimes relacionados a armas de fogo. Assim, quanto maior a quantidade de armas de fogo utilizadas por grupos criminosos organizados em uma área, maior a probabilidade de crimes com armas de fogo praticados por pessoas que não são membros de grupos criminosos organizados. Nos Bálcãs, por exemplo, o Small Arms Survey (2014: 1) relata como “a alta prevalência de armas de fogo e crimes violentos na região está ligada às atividades da criminalidade organizada.” Da mesma forma, Porto Rico é estratégico em termos de rotas de tráfico de drogas entre a América do Sul e os Estados Unidos (Giaritelli, 2018), e quase oito em cada dez homicídios em 2016 foram cometidos com arma de fogo (McCarthy, 2017). Quer se trate da proteção de um determinado território ou de um segmento do mercado, a utilização de armas de fogo pelos GCOs tem um impacto fora da esfera imediata da criminalidade organizada, pela simples presença e disponibilidade numa determinada área.

Armas de Fogo como Facilitadoras do Crime 

As armas de fogo estão naturalmente associadas a crimes tipicamente ligados à criminalidade organizada, como chantagem, extorsão, crimes violentos e homicídios. Um crime que frequentemente envolve GCOs é o roubo à mão armada, de um lugar fixo (por exemplo, um banco) ou móvel (por exemplo, dinheiro em trânsito). O Projeto “Pink Panthers” da INTERPOL foi executado de 2007 a 2016 e se concentrou em uma extensa rede de criminosos ligados a assaltos à mão armada visando joalherias de alta qualidade na Europa, Oriente Médio, Ásia e Estados Unidos entre 1999 e 2015 (INTERPOL, 2010). 

A posse de armas de fogo também torna a prática de crimes não relacionados com armas de fogo menos arriscada para os participantes. Na verdade, a maioria das armas de fogo ilícitas só aparecem quando já caíram nas mãos de criminosos e foram usadas em outros crimes. Isso é frequentemente confirmado por dados nacionais sobre apreensão de armas de fogo e seu contexto criminal. 

De acordo com o Estudo Global sobre Armas de Fogo do UNODC (2015), a maioria das armas reportadas foram apreendidas no contexto de outros crimes cometidos, nomeadamente crimes violentos, mas também tráfico de drogas e crimes relacionados com a criminalidade organizada. Apenas uma minoria dessas armas de fogo estava ligada ao tráfico ilícito. Dados subsequentes do UNODC de 2016-2017 contribuíram para sua Iniciativa de Monitoramento de Armas Ilícitas, que proporciona uma base de evidências mais global neste campo. 

Em 2017, a Agência de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos (ATF) dos Estados Unidos prendeu 28 pessoas em uma "operação nacional de armamento e drogas" (Departamento de Justiça dos Estados Unidos, 2017). Nesta ocasião, 71 armas de fogo foram apreendidas, mas uma análise das acusações contra os presos mostra o seguinte: 

  • Seis acusações ligadas ao uso e porte de arma de fogo durante e relacionadas ao tráfico de drogas/um crime de tráfico de drogas;
  • Seis acusações relativas à posse de arma de fogo na promoção do tráfico de drogas/um crime de tráfico de drogas; e
  • Quatro acusações relacionadas à posse de arma de fogo por indivíduo sem autorização/envolvido com a justiça penal. 

O fato de as acusações serem relacionadas à posse ilícita de arma de fogo e não ao tráfico não são necessariamente indicativas da origem nacional ou estrangeira dessas armas, uma vez que a 'posse ilícita' éo fundamento jurídico mais imediato e abrangente para apreensões de armas de fogo de uma pessoa que não é sua proprietária legítima. No entanto, a presença dessas armas de fogo no contexto de outros crimes é um forte indício de que as armas apreendidas tinham o objetivo de fornecer proteção ou intimidação durante os crimes relacionados com drogas. 

Como ilustra o Módulo 1 dados estatísticos sobre crimes cometidos com arma de fogo, em particular homicídios dolosos, e os mecanismos utilizados para a prática desses crimes podem fornecer pistas úteis adicionais sobre o uso de armas de fogo por grupos criminosos organizados. De acordo com o  Estudo Global sobre Homicídios 2013 (UNODC), as armas de fogo figuram entre as preferidas para os homicídios dolosos, principalmente em regiões infestadas por altos índices de homicídios e presença da criminalidade organizada. Na América Latina, por exemplo, armas de fogo foram usadas em 66% dos homicídios registrados em 2012. Em sua edição de 2019 (não lançada), o Estudo Global sobre Homicídios (UNODC) revela que a proporção de homicídios cometidos com arma de fogo aumentou nas Américas, e que representa aproximadamente três quartos de todos os homicídios e o equivalente a cerca de um quarto de todos os homicídios em todo o mundo. Na África, a segunda maior região em homicídios dolosos, os cometidos com armas de fogo aumentaram para cerca de 40%, o equivalente a um sétimo do total mundial. Em muitos países, há ausência de dados desagregados para homicídios ligados à criminalidade organizada, gangues ou terrorismo, o que não permite que sejam tiradas conclusões mais detalhadas sobre esse aspecto em nível global. 

No entanto, diversas análises relacionadas às regiões das Américas fornecem alguns insights sobre este problema. El Salvador, Venezuela e Honduras lideraram a tabela de homicídios em 2015 e 2016, embora seja importante notar que em El Salvador e, em menor medida, em Honduras, a taxa caiu ligeiramente após ações das autoridades para conter a onda de violência (Asmann, 2018). Uma dessas ações foi uma tentativa de negociar com as maras, as principais gangues de El Salvador, para que quando as gangues pedissem uma trégua, a taxa de homicídios caísse pela metade durante a noite (Grupo de Crise Internacional, 2017). 

Nesta região do "Triângulo Norte" das Américas, composta por El Salvador, Honduras e Guatemala, a história de conflitos civis e regimes autoritários gerou instabilidade. A exposição à maior região produtora de drogas ilícitas do mundo ao sul, e aos maiores mercados produtores de armas ao norte, combinou-se com um histórico de democracia e Estado de Direito falhos, deixando um dos mais graves legados de crime e violência de todo o mundo. Ainda, leis fracas ou inconsistentes de controle de armas facilitam o tráfico ilícito de armas de fogo na região (Salcedo-Albarán e Santos, 2017). A combinação dessa circulação interna de armas de fogo de conflitos anteriores e o significativo influxo de armas de fogo de países vizinhos promove as atividades da criminalidade organizada por meio do controle e da corrupção de funcionários de alto escalão do Estado. Em 2017, o ex-ministro da Defesa de El Salvador, General Atilio Benitez, foi acusado de atividade criminosa, incluindo comércio ilegal de armas de fogo (La Prensa Gráfica, 2017), e em abril de 2018, o Procurador-Geral anunciou que havia provas suficientes para as acusações de “comércio ilegal e posse ilegal de armas de fogo” para prosseguir para a próxima fase da acusação.

Armas de Fogo como Tráfico de Mercadorias

Além das armas de fogo usadas dentro das organizações, os GCOs também costumam estar diretamente envolvidos no tráfico ilícito de armas de fogo como uma atividade lucrativa secundária. Quando combinados com outras atividades principais, os GCOs aproveitam suas redes e canais já estabelecidos para adquirir e trafegar todas as categorias de armas de fogo, em todos os níveis, de acordo com as demandas dos mercados ilícitos. 

Estimativas do valor de mercado de armas de fogo ilícitas estão entre US$170 e US$320 milhões (UNODC, 2010) e US$1 bilhão (Conselho de Relações Exteriores, 2013). Neste contexto, as armas de fogo ainda parecem constituir uma oportunidade de tráfico atraente para GCOs, mesmo que às vezes seja apenas uma fonte adicional de renda.

A Europol (2018) assinala que muitas vezes o desarmamento em áreas pós-conflito é incompleto e mal gerido, resultando em armas à disposição dos civis.  Em alguns casos, a proliferação e disponibilidade dessas armas são tão generalizadas que seus preços caem bem abaixo do custo de fabricação. Por exemplo, um relatório de 1996 indicou que em Moçambique e em Angola um rifle de assalto poderia ser comprado por menos de $15 ou por um saco de milho.  Em Uganda, o preço relatado era o mesmo de um frango (Comitê Internacional da Cruz Vermelha, 1999: 5).

Essas armas deixadas para trás tornam-se objeto de tráfico ilícito no exterior por civis que têm fácil acesso a elas. Os civis, neste contexto, incluem também grupos criminosos organizados, às vezes até mesmo formados por ex-combatentes que se reorganizaram no período pós-conflito (McMullin, 2004; Moratti e Sabic-El-Rayess, 2009; Human Rights Watch, 2014). Na prática, isso significa que “Os fornecedores [...] são capazes de atender a qualquer aumento de demanda. O fato de uma Kalashnikov ou um lançador de foguetes poder ser adquirido por apenas 300 a 700 euros em algumas partes da UE indica a sua disponibilidade imediata para os criminosos” (Europol, 2011: 18). Uma vez que uma das principais motivações para grupos criminosos organizados é o lucro, a existência de uma fonte de armas de fogo a um preço relativamente baixo e um mercado geograficamente próximo para armas de fogo a um preço mais alto é uma oportunidade de ouro. Para grupos criminosos organizados, o comprador de armas de fogo tem pouca ou nenhuma importância, a chave é o preço que eles estão dispostos a pagar, como será explorado a seguir neste Módulo.

A este respeito, os Balcãs Ocidentais são um caso pertinente, de acordo com o reportado pela Europol (2013: 31): 

“O tráfico de armas [na Europa] é quase exclusivamente uma fonte de renda complementar e não primária para o pequeno número de GCOs envolvidos neste nicho de crime. A maioria dos grupos entra no negócio do tráfico de armas por meio de outra atividade criminosa, a qual costuma oferecer contatos, conhecimento das rotas existentes e infraestrutura relacionada ao contrabando de armas. As armas e GCOs envolvidos no tráfico de armas são originários principalmente dos Balcãs Ocidentais e da antiga União Soviética. As gangues de motociclistas fora da lei também estão envolvidas no tráfico de armas e abriram negociações nos Balcãs Ocidentais. O tráfico de armas ocorre por meio de rotas criminosas já existentes”. 

Embora a criminalidade organizada na região não tenha começado na época do desmembramento da Iugoslávia e da guerra que se seguiu, esses eventos e as sanções econômicas subsequentes deram oportunidade para que ele se proliferasse (Small Arms Survey, 2014). 

Não é apenas nos Balcãs que isto é um problema. De acordo com Prentice e Zverev (2016), o aumento e o declínio do conflito na Ucrânia permitiram que as armas de fogo chegassem à posse de criminosos e fossem vendidas a pessoas fora da zona de conflito. Durante o conflito, as armas permaneceram na zona até o cessar-fogo de fevereiro de 2015, quando começaram a se espalhar para fora do campo de batalha.

 

Estudos de caso

Depois de apresentado o que constitui um grupo criminoso organizado e por que tais grupos precisam e querem armas de fogo, esta seção expõe uma lista não exaustiva de estudos de caso de diferentes regiões. O objetivo é viabilizar a compreensão de como as ligações entre armas de fogo e GCOs se desenvolvem na prática. As informações nos estudos de caso são extraídas de notícias de domínio público.

África do Sul

Embora a taxa de homicídios na África do Sul tenha diminuído continuamente entre 1995 a 2016 (Banco Mundial, 2019), ela ainda estava classificada em 14º lugar no mundo em homicídios por armas de fogo em 2017 (Atlas Mundial, 2017). Embora apenas uma parte dessas mortes seja devido às atividades dos GCOs, o país tem uma história de criminalidade organizada que remonta ao século XIX (World Atlas, 2017). 

A legislação sul-africana usa o termo “sindicato do crime” em vez de grupo criminoso organizado. De acordo com Shaw (1998: 1), o Serviço de Polícia da África do Sul (SAPS) estimou que, no final da década de 1990, havia “uma série de sindicatos do crime extremamente bem financiados e soberbamente armados operando na África do Sul [...], quase metade dessas operações são baseadas em Joanesburgo e em seus arredores.” 

A SaferSpaces (2015), uma plataforma interativa administrada por profissionais de segurança da África do Sul para difundir conhecimento, demonstra três maneiras pelas quais as armas de fogo entram no mercado ilícito na África do Sul:

  • Um pequeno número de armas de fogo legais é contrabandeado de países vizinhos;
  • Fraude, corrupção e má aplicação da legislação, resultando na concessão de licenças de porte de arma a pessoas inadequadas;
  • Perda e roubo de armas de fogo legítimas. 

Embora alguns GCOs existam, a maior parte da criminalidade organizada na África do Sul assume a forma do que Goga (2015: 1) identifica como ad hoc e “redes pouco sofisticadas” de criminosos.

América Central

La Cosa Nostra é um GCO muito conhecido, tanto na Sicília como nos Estados Unidos. Ao longo dos anos houve uma série de casos notáveis sobre posse, uso e transferência de armas de fogo nos Estados Unidos. Em 2011, o Departamento de Justiça (2011) do país anunciou 127 detenções de membros e associados da La Cosa Nostra, e muitas das acusações apresentadas foram por assassinato com arma de fogo. Em 2016, 46 membros de diferentes famílias La Cosa Nostra foram acusados de crimes de extorsão, incluindo tráfico ilegal de armas de fogo (Departamento de Justiça dos Estados Unidos, 2016). Em 2017, houve 19 prisões de membros e associados da Família do Crime Lucchese, uma das 'Cinco Famílias' de La Cosa Nostra, novamente sob acusações incluindo homicídio relacionado com armas de fogo e outros crimes relacionados com armas de fogo (Departamento de Justiça dos Estados Unidos, 2017). 

Em 2013, o promotor do Distrito Central da Califórnia emitiu uma acusação detalhando “uma aliança entre a gangue da máfia mexicana na prisão e o cartel de drogas La Familia Michoacana. O objetivo desta aliança era proteger e expandir as atividades de tráfico de drogas do cartel em todo o país” (Departamento de Justiça dos Estados Unidos, 2013: 1). Além da acusação ligar a máfia mexicana a um cartel de drogas, “a gangue de rua criminal Florencia 13” foi relacionada ao tráfico ilícito de armas de fogo. Segundo Calderón (2014: 1), Michoacán é um dos estados mais violentos do México e, embora La Familia Michoacana tenha se tornado em grande parte Los Caballeros Templarios, o uso de armas de fogo por traficantes de drogas resultou em 990 homicídios em 2014, “a maior taxa de homicídio em 15 anos.” 

O enorme fluxo de armas dos Estados Unidos para o México está exacerbando a violência que acompanhou o comércio ilegal de entorpecentes (Al Jazeera, 2018). De acordo com fontes do governo mexicano, entre 2011 e 2016, o Departamento de Justiça dos EUA rastreou mais de 74.500 armas de fogo apreendidas de cartéis de drogas e de outros criminosos no México, onde foram fabricadas ou vendidas após serem importadas de outros países, e cujo destino seria os Estados Unidos (Grillo, 2018). 

Acredita-se que muitas outras armas estejam nas mãos de atiradores do cartel que cometem dezenas de assassinatos todos os dias. Um estudo de 2013 da Universidade de San Diego e do Instituto Igarapé (McDougal et al., 2013) estimou que, entre 2010 e 2012, cerca de 253.000 armas de fogo foram compradas para serem traficadas na fronteira sul. As lacunas na regulamentação, como a brecha na exibição de armas (gun show loopholes) , tornam impossível saber os números verdadeiros. 

O impacto dessas armas nas mãos dos GCOs, especialmente os cartéis do narcotráfico, é claramente visível nas altas taxas de homicídio. Segundo informações do Escritório Mexicano de Assuntos Domésticos, os homicídios no México aumentaram 16% no primeiro semestre de 2018 (Associated Press, 2018). Com 15.973 mortes nos primeiros seis meses do ano, o maior número desde 1997, ano em que os registros começaram, o país bateu seus próprios recordes de violência. 

Na Colômbia, um conflito armado interno de cinco décadas resultou em milhões de armas de fogo contrabandeadas para o país por várias forças irregulares e por grupos armados. Isso inclui os grupos guerrilheiros Fuerzas Armadas de Colombia (FARC) e o Ejército de Liberación Nacional (ELN), e o grupo paramilitar Autodefesas Unidas de Colombia (AUC), bem como outras organizações criminosas. Durante esses anos, acreditava-se que tanto grupos guerrilheiros quanto grupos paramilitares controlavam partes importantes do comércio ilícito de drogas. Uma modalidade reconhecida de aquisição e pagamento de armas de fogo era a troca de drogas – como cocaína e heroína – por armas (Carillo Galvis, 2017). Além disso, acredita-se que os mesmos meios de transporte pelos quais as armas eram entregues ao território colombiano também foram utilizados para carregar as drogas e devolvê-las como forma de pagamento aos traficantes de armas (UNODC, 2006). 

É claro que não são apenas os grupos criminosos organizados de outros países que estão envolvidos no tráfico ilícito de armas de fogo nos Estados Unidos. O Clube de Motociclistas Hells Angels, por exemplo, é uma das muitas Gangues de Motocicleta fora da lei que opera nos Estados Unidos e em outros lugares. Nos EUA, três membros titulares do Hells Angels e dois associados foram condenados em 2013 por “tráfico de drogas, branqueamento de capitais, tráfico ilícito de armas de fogo, uso de armas de fogo em relação a crimes de violência e a tráfico de drogas, tentativa de assalto à mão armada, incêndio criminoso e outros crimes” (Agência Federal de Investigação; FBI, 2013: 1). 

Ásia

A Yakuza japonesa não é uma entidade única, mas sim um termo coletivo aplicado a várias organizações. Com uma estimativa de mais de 8.000 grupos, aproximadamente 20 são grandes o suficiente para chamar a atenção da mídia. De acordo com Adelstein (2017), eles são regulamentados ao invés de proibidos e operam abertamente como empresas com escritórios, cartões de visita e emblemas corporativos, e o endereço da sede de cada grupo listado no site da Agência Nacional de Polícia. 

A confiabilidade e a marca tornam o revólver Smith e Wesson a arma escolhida pela Yakuza. No entanto, como não é fabricado no Japão e leis japonesas sobre posse de armas são rígidas (ver também o Módulo 6), é inevitável concluir que as armas de fogo são contrabandeadas para o país a partir dos Estados Unidos, Oriente Médio ou Sudeste Asiático (Adelstein, 2017).

Europa

Em 2016, o Projeto do Relatório sobre Criminalidade Organizada e Corrupção (OCCRP), um consórcio de centros de investigação, mídia e jornalistas que operam na Europa Oriental, no Caucasus, na Ásia Central e na América Central, relataram que, com a ajuda da Europol, os Carabineiros na Itália prenderam dois dos líderes do Ceusi Cosa Nostra, uma família que contrabandeia armas (Spaic, 2016). Os dois foram acusados de importar armas desativadas da Eslováquia, no valor de 45.000 euros, reativá-las e enviá-las para Malta. Segundo a Europol, os Carabineiros italianos não excluem, portanto, a possibilidade de essas armas terem caído nas mãos de grupos criminosos ou organizações terroristas que operam na região (Spaic, 2016). 

Os GCOs envolvidos no comércio de drogas ilícitas frequentemente também estão envolvidos em atividades de tráfico de armas. De acordo com um relatório de La Repubblica de 11 de março de 2016 (Chiarelli, 2016: 1), em novembro daquele ano a polícia prendeu 25 pessoas que traficavam drogas e armas da Albânia para a Itália. A Diretoria Distrital Antimáfia declarou que organizações mafiosas "autônomas" ativas na Apúlia traficavam cocaína e grandes quantidades de maconha, bem como armas de fogo da Albânia, envolvendo pelo menos três grupos criminosos diferentes. O arsenal de armas apreendidas incluiu várias metralhadoras, rifles e pistolas, silenciadores e mais de 3.500 cartuchos de munições – “capaz de armar um regimento militar inteiro” – uma das maiores apreensões individuais na Itália nos últimos anos. 

Em 2017, os Carabineiros prenderam o chefe do clã Giorgi da ‘Ndrangheta com base na Calábria, que estava em fuga desde 1994 (Anesi, 2017). Ele foi preso em conexão com o tráfico de drogas e armas de fogo. Menos de um mês depois, o portal de notícias Deutsche Welle (Goebel, 2018) relatou duas ações policiais separadas no mesmo dia, nas quais mais 116 membros da ‘Ndrangheta e 54 membros da La Cosa Nostra foram presos por tráfico de armas e drogas, extorsão e assassinato. 

O tráfico ilícito de armas de fogo tornou-se uma grande ameaça à segurança interna na Europa e foi identificado como uma das nove prioridades para 2018-2021 na luta contra a criminalidade organizada pelo Conselho da UE (EU EMPACT). A Europol (2018: 1) indicou que “armas e grupos criminosos organizados envolvidos no tráfico de armas são originários principalmente dos Balcãs Ocidentais (as armas normalmente são mantidas ilegalmente após conflitos recentes na área) e da antiga União Soviética.” A Europol (2018: 1) também é clara sobre o envolvimento de grupos criminosos organizados neste comércio, afirmando que “gangues de motociclistas fora da lei estão envolvidas no tráfico de armas e abriram negócios nos Balcãs Ocidentais.” 

O que esta série de exemplos ilustra é que o uso de armas de fogo pelos GCOs é generalizado e que, embora o tráfico possa ser uma fonte suplementar de renda, como afirma a Europol (2013), a movimentação de armas de fogo é constante. Freeman (2015) sugere que, embora o número de armas traficadas em um carregamento individual possa ser pequeno (o chamado “comércio de formigas”, realizado para tentar escapar da detecção), ao longo do tempo eles podem resultar em grupos criminosos com acúmulo de estoques de armas de fogo.

 
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