Este módulo é um recurso para professores 

 

Perda de bens

 

Alguns criminosos podem contentar-se a cumprir pena de prisão se souberem que, depois de serem libertados, os seus bens estarão disponíveis, ou que as suas famílias, cujos membros não foram presos, continuam a aproveitar os proveitos do crime. Por isto é que a perda de bens é tão importante para prevenir e combater a criminalidade organizada. Também se revela como uma ferramenta importante para prevenir a infiltração da criminalidade organizada na economia lícita.

A perda de bens também é conhecida como o confisco em algumas jurisdições. Os dois termos serão usados indistintamente neste Módulo. Confiscar bens ou propriedades consubstancia a privação permanente da propriedade por ordem judicial ou procedimento administrativo, que transfere a propriedade dos bens derivados da atividade criminosa para o Estado. As pessoas ou entidades que eram donas desses fundos ou bens no momento da perda ou confisco perdem todos os direitos sobre os bens confiscados. (FATF, 2017; McCaw, 2011; Ramaswamy, 2013)

Os grandes dividendos gerados pela atividade criminosa organizada podem afetar a economia legítima e, em particular, de forma adversa o sistema bancário através de lucros não tributados e investimentos com fundos ilícitos. Para além disso, mesmo após o investimento na economia legal, os grupos criminosos organizados continuam a usar as ferramentas e métodos ilícitos para alavancar os seus negócios, potencialmente empurrando outros negócios para fora do mercado. A perda de bens é uma forma de minar a estrutura fiscal e até da sobrevivência de um grupo criminoso organizado através da apreensão de dinheiro e propriedades obtidos ilegalmente e derivados da atividade criminosa. (Aylesworth, 1991; Baumer, 2008; U.S. Executive Office for Asset Forfeiture, 1990)

A perda de bens ocorre sob dois tipos de procedimentos: a perda de bens baseada em sentença condenatória penal, ou a perda de bens baseada noutro procedimento que não corresponda a uma sentença penal. Estes dois tipos diferem no nível de prova necessário para que cada uma se verifique. Tradicionalmente, a perda de bens não baseada numa sentença implica um nível standard de prova, que é menor do que aquele que se impõe para uma perda de bens em processo penal no tribunal.

Perda de bens ou confisco baseada numa sentença penal:  confisco pelo Estado dos proveitos do crime que o agente foi condenado por ter cometido. Também é denominada como a perda de bens penal ou confisco penal em algumas jurisdições.

Perda de bens ou confisco não baseada numa sentença penal: confisco de bens ou perda de bens com ausência de uma condenação contra o agente. Este termo é usado de forma indistinta com a perda de bens civil ou confisco civil.

Para além disso, os Estados podem decidir adotar uma perda de bens baseada no valor, o que permite ao tribunal impor uma sanção pecuniária (como a multa), assim que for determinado o beneficio derivado, direta ou indiretamente, da conduta criminosa. A perda de bens baseada no valor está incluída na alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º das Convenção contra a Criminalidade Organizada. Também é importante salientar que, em alguns países, os bens podem ser confiscados mesmo que não estejam diretamente ligados com um crime em especial em relação ao qual o arguido tenha sido condenado, mas que resulte claramente de atividades criminosas similares (i.e. perda alargada).

O crescente recurso à perda de bens oferece a oportunidade de interromper atividades ilícitas continuadas, bem como limitar o efeito, na economia, da circulação de largas quantias de dinheiro obtidas ilicitamente. Existe um crescente número de processos e políticas relativas à apreensão e disposição da propriedade sobre ativos confiscados.

Preocupações relativas à apreensão e disposição da propriedade inclui:

(a) Legalidade do confisco;

(b) Proteção de direitos de terceiros;

(c) Gestão e disposição dos bens apreendidos ou confiscados.
 

Legalidade da Perda de Bens

Todas as jurisdições têm poderes e limites específicos no que tange à perda de bens. Estes procedimentos têm associadas as diferentes tradições legais nos diversos países. Em países com tradição romano-germânica , o poder para emitir uma ordem para restrição ou apreensão de bens objeto do confisco é garantida aos procuradores, juízes de instrução ou agentes da autoridade. Noutras jurisdições romano-germânicas já se impõe que a decisão resulte de uma entidade judicial.

Em jurisdições de tradição anglo-saxónica, uma ordem para restrição ou apreensão, normalmente, implica uma autorização judicial (com algumas exceções em casos de apreensão). Os sistemas legais podem ter obrigações estritas de notificação aos sujeitos evolvidos na investigação, como quando em cumprimento de uma busca ou apreensão é feita a um terceiro, como uma instituição bancária. Estes terceiros podem ser obrigados a informar os seus clientes da existência de tais mandados, o que significa que o cliente será avisado sobre um interesse investigatório em curso. Isto tem que ser tomado em consideração quando se desencadeiem ações com vista a assegurar os bens, ou o recurso a medidas investigatórias coercivas. (UNODC, 2012)

O princípio legal subjacente à perda de bens e confisco é que o Estado pode subtrair propriedade sem compensação ao seu dono, se aquela propriedade foi adquirida de forma ilegal. Existe um amplo espetro de mecanismos diversos para cumprir este objetivo, no entanto são três, os tipos predominantes de processos usados para confiscar a propriedade: administrativo (sem condenação), real ou criminal (baseado em condenação), e com base em valor.(UNODC, 2012).

Perda de Bens baseada em sentença condenatória (ou criminal)

Num confisco baseado em condenação, a propriedade só pode ser apreendida depois do seu dono ter sido condenado por um certo tipo de crimes. A perda de bens criminal é uma abordagem comum para o confisco de bens em que os investigadores reúnem provas, e localizam e asseguram os bens, conduzem a uma acusação, e logram uma condenação. Com a condenação, a perda de bens pode ser ordenada pelo tribunal. É necessária a prova (normalmente para além da dúvida razoável) para uma ordem de confisco é geralmente a mesma necessária para lograr uma condenação criminal.

Ónus da prova

Nos termos do artigo 12.º, n.º 7 da Convenção contra a Criminalidade Organizada, prevê-se que os Estados partes podem considerar a possibilidade de ser ordenado ao arguido que demonstre a legalidade da origem dos alegados proveitos de um crime, ou outros bens suscetíveis de perda, nos termos e limites que tal ordem seja adequada com os princípios das suas leis nacionais e com a natureza do processo judicial e de outros procedimentos.

De forma similar, a Recomendação 4 da FAFT estabelece que os países devem considerar a adoção de medidas que impliquem que o arguido tenha que demonstrar a origem lícita de bens que alegadamente são suscetíveis de perda, na medida em que tal ordem seja adequada com os princípios da sua lei nacional. Consubstancia uma melhor prática que os países implementem estas medidas desde que consistentes com os princípios das suas legislações nacionais. (FATF, 2012) Os seguintes dois exemplos demonstram como é que estas medidas podem ser estruturadas.

Quando considera a perda de bens, o tribunal tem que decidir se o arguido tem um “estilo de vida criminoso”. Um arguido apresentará um estilo de vida criminoso se uma das seguintes três condições estiver verificada. Deverá existir um total mínimo de benefício para as condições (ii) e (iii), indicadas abaixo, para se considerarem satisfeitas.  

As três condições são:

(i) é um ‘estilo de vida de crime’ (por exemplo, tráfico de droga);

(ii) é parte de um “percurso de conduta criminosa’ ou

(iii) é um crime cometido por um período de, pelo menos, 6 meses e o arguido tem beneficiado dele.

O tribunal tem que calcular o benefício da conduta criminosa usando um dos seguintes dois métodos:

1) Conduta criminosa geral (“perda de bens por estilo de vida criminoso”):

Este método é usado quando o arguido tem um estilo de vida criminoso.

O tribunal tem que assumir que,

  • Qualquer propriedade transferida para o arguido a partir de uma data seis anos antes de se ter iniciado o processo crime, foi obtido como resultado de uma conduta criminosa;
  • Qualquer propriedade detida pelo arguido, em qualquer altura depois deste ter sido condenado, foi obtido como resultado de uma conduta criminosa;
  • Qualquer despesa assumida no período de 6 anos referido no ponto anterior foram cobertas por valores obtidos como resultado de uma conduta criminosa;
  • Para fins de avaliação, qualquer propriedade obtida pelo arguido foi obtida sem qualquer interesse de terceiros.

Quando a condição do estilo de vida criminoso estiver verificado, o ónus da prova em relação à origem dos bens inverte-se (i.e. a acusação cumpriu a sua obrigação de prova e, agora, o arguido tem que provar, de acordo com a normalidade das circunstâncias, que um bem em particular, a transmissão, ou a despesa tem uma fonte legítima).

2) Conduta Criminosa Particular (“conduta criminosa para perda de bens”):

Este método é usado quando o arguido não tem um estilo de vida criminoso. Isto impõe ao procurador que demonstre que a propriedade ou a vantagem financeira do arguido foi obtida através de um crime específico por que venha acusado. A lei permite que a acusação rasteie a propriedade ou a vantagem financeira que, direta ou indiretamente, representa o benefício (por exemplo, a compra de um bem com recurso a lucros de um crime). Não existe um limite mínimo para este método de cálculo do benefício.

 

Perda de Bens não baseada em sentença condenatória (ou Administrativa)

Uma perda de bens quando não seja baseada numa sentença condenatória ocorre independentemente de qualquer processo crime, e visa a propriedade diretamente que tenha sido usada, ou adquirida, ilegalmente. A condenação do titular dos bens não é relevante para este tipo de perda de bens.

A perda de bens administrativa envolve, geralmente, um procedimento para o confisco dos bens usados, ou que tenham integrado a execução de um crime, que tenham sido apreendidos no decurso de uma investigação. É muito frequente verificar este tipo de perda no campo dos agentes fronteiriços (e.g. apreensão de dinheiro, drogas, ou armas), e aplica-se quando a natureza do bem apreendido justifica o confisco administrativo (sem anterior decisão judicial). Este processo é menos viável quando a propriedade diz respeito a uma conta bancária, ou um bem imóvel. A perda de bens é levada a cabo por um investigador ou agente da autoridade (como uma unidade policial ou um serviço de autoridade designado), e segue geralmente um processo em que a pessoa afetada pela apreensão pode requerer que o bem deixe de ser confiscado automaticamente, como num processo judicial. Todos os proveitos do crime estão sujeitos a perda de bens, o que se tem interpretado por forma a incluir, juros, dividendos, proveitos e bens, ainda que haja variações de jurisdição para jurisdição (para mais informação, por favor consulte a StAR’s “A Good Practice Guide for Non-conviction-based Asset Forfeiture”).

Considerando que a Convenção contra a Criminalidade Organizada não faz referência a este tipo de perda de bens, a Convenção contra a Corrupção inclui-o no seu artigo 54.º, n.º 1, al. c), encorajando os Estados a “considerar a adoção de medidas que se revelem necessárias para permitir a declaração de perda desses bens [bens adquiridos através ou com o envolvimento na execução de um crime, estabelecido nos termos desta Convenção] na ausência de sentença criminal quando contra o autor da infração não possa ser instaurado um procedimento criminal em razão de falecimento, fuga, ausência ou noutros casos apropriados”.

Perda de bens baseada em valor

Algumas jurisdições elegem este método baseado em valor que, constitui um sistema, em que um arguido é condenado a pagar o valor equivalente aos proveitos do benefício criminoso. Este metido é também usado em casos específicos quando não é possível localizar os bens. O tribunal calcula o benefício para o arguido de um crime em particular. A perda de bens baseada em valores permite que o valor dos proveitos ou outros montantes de um crime sejam determinados, e bens correspondentes ao equivalente desse montante são apreendidos.

Proteção de Direitos de Terceiros

Suscitam-se preocupações em relação a direitos de terceiros que não estejam envolvidos na atividade criminosa mas os seus bens podem estar a ser usados nessas atividades, ou derivem da atividade criminosa de outros. (Friedler, 2013; Geis, 2008; Gibson, 2012; Goldsmith and Lenck, 1990) Isto pode incluir detentores ou compradores não informados, co-locatários, ou parceiros de negócios. Uma pessoa que suspeite que a sua propriedade é alvo de uma investigação para confisco criminal ou administrativo pode vender os ativos, ceder a propriedade para membros da família, ou outra forma de os dissipar.

As reclamações de terceiros sobre a apreensão de bens são, muitas vezes, atrasadas em confiscos criminais uma vez que a reclamação não pode ser decidida antes que termine o julgamento do processo-crime. Na perda de bens administrativa, o procedimento avança mais rapidamente uma vez que a audiência respetiva geralmente ocorre pouco depois do confisco. Em algumas jurisdições, os terceiros são protegidos sob a exceção de ‘proprietário inocente’ por perda de bens não baseadas em condenações, se os Estados falharem em estabelecer que eles teriam conhecimento, tenham ado consentimento, ou desconhecimento intencional da utilização ilegal dos seus bens.

Disposição dos Bens Confiscados

Alguns dos ativos mais comummente confiscados são dinheiro, carros e armas, bem como bens de luxo, como barcos, aeronaves e joalharia. Propriedades residenciais e estabelecimentos comerciais também são objeto de perda de bens. Uma vez que o ativo seja confiscado, o mesmo terá que ser avaliado para determinado o valor da propriedade, menos quaisquer reclamações contra ele. O item tem que ser armazenado e mantido até que a propriedade, e reclamações de terceiros, tenham sido decididas em tribunal. Se a contestação da perda de bens não for procedente, a propriedade é transferida para o Estado, ou leiloada.

Tem-se suscitado controvérsia sobre a utilização dos bens confiscados por algumas autoridades. A legislação de algumas jurisdições determina a utilização específica de alguns bens confiscados, como para suportar custos com educação. Alguns têm suscitado que a perda de bens que são mantidos pela polícia, constitui um incentivo para confiscos mais espúrios ou agressivos. (Bartels, 2010; Skolnick, 2008; Worrall and Kovandzic, 2008).

As experiências dos países na gestão e disposição de ativos confiscados

Em 2017, o UNDOC publicou “A Gestão e Disposição Efetiva de Ativos Apreendidos e Confiscados” para fornecer aos Estados, e outras entidades relevantes, um guia sobre a apreensão e a perda de bens. Com uma abrangência em todas as regiões, com sistemas legais distintos, e diferentes níveis de desenvolvimento, o estudo apresenta a experiência de 64 países sobre a gestão e disposição de ativos apreendidos e confiscados. O estudo apresenta experiências anteriores para ajudar quem tenha a tarefa de desenvolver quadros legais e de políticas e/ ou seja responsável pela gestão diária de bens apreendidos e confiscados, para saber como evitar, ou gerir de forma mais eficaz, os riscos e desafios associados. (UNODC, 2017)

A FATF também desenvolveu uma lista de recomendações e boas práticas sobre a gestão de ativos congelados, apreendidos e confiscados.. (FATF, 2012) Idealmente, uma estrutura de gestão de ativos, tem as seguintes características:

(a) Existe uma estrutura para gestão ou supervisão de ativos congelados, apreendidos e confiscados. Esta estrutura deve incluir autoridade(s) designada(s) que seja(m) responsável(eis) pela gestão (ou pela supervisão da gestão) de tais ativos. Também deve incluir autoridade legal para preservar e gerir tais ativos.

(b) Existem recursos suficientes para gerir todos os aspetos da gestão.

(c) Planeamento apropriado deverá ter lugar antes do arresto ou apreensão.

(d) Existem medidas para:

(i) de forma adequada, cuidar e preservar na medida do possível tais ativos;

(ii) lidar com direitos dos indivíduos e de terceiros;

(iii) dispor dos ativos confiscados;

(iv) manter os registos apropriados; e

(v) assumir responsabilidade por quaisquer danos a pagar, subsequentes a uma ação judicial relativa a perda ou danos sobre os ativos.

(e) Aqueles que sejam responsáveis pela gestão (ou pela supervisão da gestão) de tais ativos terão a capacidade para prestar apoio ou conselhos imediatos aos agentes da autoridade, em qualquer altura, em relação ao arresto ou apreensão, incluindo aconselhamento sobre, e subsequente tratamento de todas as questões práticas em relação aos ativos arrestados ou apreendidos.

(f) Aqueles que sejam responsáveis pela gestão dos ativos tenham experiência suficiente para gerir qualquer tipo de ativos.

(g) Exista autoridade estatutária para permitir ao tribunal que ordene a venda, incluindo quando os bens são perecíveis ou tenham rápida depreciação.

(h) Haja um mecanismo para permitir a venda dos ativos com o consentimento do seu proprietário.

(i) Os ativos para os quais não seja adequada a venda, sejam destruídos. Isto inclui quaisquer ativos que: sejam provavelmente usados para levar a cabo subsequente atividade criminosa; para os quais a propriedade constitua um crime; que sejam contrafeitos; ou que constituam uma ameaça à segurança pública.

(j) No caso de bens confiscados, existam mecanismos para transmissão da titularidade, conforme se mostre necessário, sem complexidades ou atrasos.

Para assegurar a transparência e avaliar a eficácia do sistema, existam mecanismos para: localizar os bens congelados/ apreendidos; determinar o seu valor no momento do arresto/ apreensão, e depois se se mostrar apropriado; manter registos sobre a sua última disposição; e, em caso de venda, manter o registo do valor adquirido.

 
 Seguinte: A perda de bens na prática: respondendo ao movimento de ativos criminosos
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