Este módulo é um recurso para professores 

 

Tráfico ilícito de armas de fogo

 

Enquadramento legal

O problema do tráfico ilícito de armas de fogo é multidimensional. As armas de fogo são fabricadas e comercializadas tanto, licita como ilicitamente, tornando muito complexa, a tarefa de identificar e localizar o fabrico e comércio ilegais. Tornando a temática ainda mais complicada, a maioria das armas de fogo são fabricadas legalmente, e só depois são desviadas para o mercado ilícito. Notavelmente, as armas de fogo ilícitas encontram-se na maioria dos crimes violentos, e aumentam o poder de grupos criminosos organizados. Por estas e outras razões, vale a pena analisá-las com mais detalhe.

Uma variedade de instrumentos internacionais e regionais, integram o regime legal sobre armas de fogo. A Convenção contra a Criminalidade Organizada, está entre os esforços globais mais significativos no combate ao tráfico ilícito de armas de fogo. Um dos Protocolos Adicionais a esta Convenção, é o Protocolo contra o Fabrico e o Tráfico Ilícito de Armas de Fogo, Suas Partes, Componentes e Munições (Protocolo das Armas de Fogo). Aborda a questão do fabrico e tráfico ilícito de armas de fogo do ponto de vista da justiça criminal, e foi o primeiro instrumento legal vinculativo sobre armas pequenas adotado a um nível global. Foi desenvolvido com o objetivo de fornecer as medidas para abordar a natureza transnacional do fenómeno, e ligá-lo à criminalidade organizada. O Protocolo das Armas de Fogo inclui a definição de armas de fogo, no seu artigo 3.º.

Definição de armas de fogo, prevista no art. 3.º do Protocolo das Armas de Fogo

Para efeitos do presente Protocolo:

a) Por «arma de fogo» entende -se qualquer arma portátil, de cano, para tiro a chumbo, bala ou projétil por meio de um explosivo, ou que seja concebida para disparar ou ser facilmente modificada para esse fim, com exclusão das armas de fogo antigas ou respetivas réplicas. O conceito de armas de fogo antigas e as respetivas réplicas será definido em conformidade com o direito interno. No entanto, o conceito de armas de fogo antigas não deverá, em caso algum, abranger armas de fogo fabricadas depois de 1899;

O Protocolo das Armas de Fogo, que impõe uma ratificação em separado, entrou em vigor em 2005. É um passo significativo em diante na tentativa de controlar o mercado mundial ilícito de armamento. Como é óbvio que nenhuma arma de fogo, qualquer que seja o propósito, pode funcionar sem munições, o Protocolo das Armas de Fogo também prevê a criminalização do fabrico e tráfico ilícitos de munições, bem como das partes das armas de fogo, e seus componentes.

O Protocolo das Armas de Fogo visa “promover, facilitar e reforçar a cooperação entre os Estados Partes a fim de prevenir, combater e erradicar o fabrico e o tráfico ilícitos de armas de fogo, das suas partes, componentes e munições” (Artigo 2.º, Protocolo das Armas de Fogo). O Protocolo tem um conjunto de características principais que são vinculativas para os Estados partes. Em particular, impõe-lhes que,

  • Criminalizem o fabrico e tráfico ilícito de armas de fogo, das suas partes e componentes, e munições, a falsificação ou obliteração ilícita, a remoção ou alteração de marcas apostas nas armas de fogo;
  • Que sejam apostas marcas às armas de fogo com o fim de tornar efetivos a sua localização e identificação;
  • Manter registos sistemáticos de informação sobre armas de fogo e transações internacionais de armas de fogo, suas partes e componentes, e munições com o fim de localização;
  • Autorizar a apreensão de armas de fogo fabricadas ilicitamente ou traficadas, suas partes e componentes, e munições, após a qual as mesmas armas de fogo devem ser, idealmente, destruídas, a não ser que outra forma de desativação tenha sido legalmente autorizada;

Manter a documentação, e licenciamento de todas as transações internacionais e intermediários (por favor, veja a caixa de texto abaixo), e apor marcas em todas as armas de fogo importadas e armas de fogo do Estado que passaram a ter utilização por civis.

Intermediários no tráfico de armas de fogo

No contexto do tráfico de armas de fogo, a pessoa ou entidade que atua como negociante, que juntou as partes relevantes à transação potencial, a organizou ou facilitou, em troca  de um benefício financeiro ou outro benefício, é referido como um “intermediário”. Alguns intermediários têm feito negócios e vendido armas a ambos as fações do mesmo conflito.

  • Tornar permanentemente inoperacionais todas as armas de fogo desativadas;
  • Partilhar informação, como suspeitas sobre grupos organizados envolvidos no tráfico de armas de fogo;
  • Identificar um órgão nacional, ou um único ponto de contato, para atuar como a ligação entre o país e os outros Estados Partes, na matéria relativa ao Protocolo.

Os Estados partes do Protocolo sobre Armas de Fogo, comprometem-se a trocar informações relevantes sobre um determinado processo, e cooperar extensivamente a um nível bilateral, regional e internacional, incluindo no treino e assistência técnica a outras partes.

Outros instrumentos internacionais e regionais, ainda que referindo-se a questões semelhantes, abordam a temática mais da perspetiva do desarmamento, comércio e desenvolvimento, e focam-se mais nas medidas para a redução da acumulação, proliferação, desvio e uso indevido de armas de fogo, do que trazer à justiça os criminosos. Estes elementos refletem abordagens substancialmente distintas, ainda que sejam abordagens complementares para o mesmo problema.

Outro importante instrumento internacional nesta área, é o Tratado de Comércio de Armas (TCA), que entrou em vigor em Dezembro de 2014. O TCA é de âmbito mais amplo, e abrange oito categorias de armas, enquanto o Protocolo sobre Armas de Fogo só abrange armas de fogo, as suas partes e componentes, e munições. Em particular, o TCA aplica-se a “todas as armas convencionais pertencentes às seguintes categorias: a) Carros de combate; b) Veículos blindados; c) Sistemas de artilharia de grande calibre; d) Aviões de combate; e) Helicópteros de ataque; f) Navios de guerra; g) Mísseis e lançadores de mísseis; e h) Armas pequenas e de pequeno calibre” (artigo 2.º, Tratado de Comércio de Armas).

Ambos os instrumentos promovem a cooperação internacional para enfrentar os desafios colocados pelo tráfico ilícito de armas. O Protocolo sobre as Armas de Fogo enfrenta-os, promovendo a cooperação para o combate e prevenção da criminalidade organizada transnacional de forma mais eficaz, enquanto o TCA, de forma mais geral, se refere à lei humanitária internacional, redução de armamento, bem como considerações sobre direitos humanos (UNODC, 2016).

 

Mercado e tendências

De forma semelhante a outros produtos e serviços ilícitos, novos canais de vendas (e.g. a internet e as suas redes encriptadas) estão a ser cada vez mais usados no tráfico ilícito de armas de fogo. Grupos criminosos organizados tiram vantagem das novas tecnologias, enquanto continuam a usar os antigos canais e mercados conhecidos. A título de exemplo, relatórios da polícia revelaram recentemente, que alguns grupos criminosos organizados têm usado serviços de entregas para o tráfico de armas de fogo para países, frequentemente enviando as suas partes e componentes separadamente porque, desta forma, são mais dificilmente detetáveis.

O tráfico de armas de fogo difere da maioria das outras atividades da criminalidade organizada, na medida em que o bem é duradouro e não consumível. Consequentemente, a rotatividade global na indústria, lícita e ilícita, de armas é limitada, e o tráfico tende a ser episódico, geralmente um lote estabelecido para uma região em crise. Muitas das armas disponíveis resultaram ilicitamente do fim da Guerra Fria e do descarregamento de armas que não eram mais necessárias, que se tornaram disponíveis de ex-funcionários do regime deposto, de criminosos e, em alguns casos, da licitação mais elevada.

O resultado dessa mudança de fabrico estadual e propriedade, para um fabrico privado e propriedade de armas e armamento, é que a guerra, o conflito civil, e a violência, estão agora mais fáceis de ser realizados do que nunca. Outra consideração preocupante relaciona-se com o tamanho atual da indústria ilícita de armas, uma vez que há, mais do que nunca, mais revólveres, AK-47s, lança-mísseis, granadas, minas e componentes nucleares disponíveis ilicitamente.

Traficante de armas: o caso de Viktor Bout

Viktor Bout, um reputado traficante de armas russo, foi finalmente apanhado numa operação em 2008, depois de estar em parte incerta por muitos anos. Ele obteve lucros,  principalmente, comprando armamento militar russo e equipamento, e vendendo-os tanto aos governos como aos grupos de insurgentes, principalmente em África e na Ásia. Bout serviu de inspiração ao livro O Mercador da Morte, e ao filme O Senhor da Guerra. Alguns destes grupos de insurgentes e governos não tinham dinheiro para pagar pelo armamento, então pagavam com recursos naturais, como diamantes (no caso de África). Isto deu origem ao termo “diamantes de guerra”, onde as preciosas pedras de países pobres foram extraídas das minas, e vendidos para aquisição de armamento, a fim de financiar o conflito e as guerras civis.

O fabrico de armas pequenas e armas ligeiras, concebidas para serem usadas por um indivíduo, ou por um pequeno grupo de indivíduos, é estimado em milhões de unidades por ano. Muitas destas são armas de fogo comerciais (revólveres, espingardas, e armas automáticas) fabricadas e compradas nos principais mercados de fabrico. Também há um pequeno número de pequenos fabricantes, localizados em diversos países, que fazem variações de armas bem conhecidas e altamente desejadas, como as espingardas de tipo automático AK-47 (conhecidas como Kalashnikovs).

A disponibilidade dessas armas é agravada pelo elemento acrescido de conhecimento técnico. Há vários prestadores de serviços militares e mercenários, que muitas das vezes são ex-soldados de exércitos que já não existem, ou que já não lhes podem pagar. Dessa forma, o seu conhecimento técnico é usado para treinar os compradores das armas na sua utilização e distribuição. O resultado é que muito deste armamento acabam nas mãos de insurgentes treinados, grupos criminosos organizados, terroristas que travam conflitos em diversos locais do mundo (Coates and Pearson-Merkowitz, 2017; Naim, 2006; Salton, 2013).

Quanto à distribuição geográfica, de acordo com o Small Arms Survey – um projeto de investigação independente localizado no Graduate Institute of International Studies em Genebra, na Suíça -, mais de um terço do fornecimento de armas pequenas localiza-se nos Estados Unidos (Small Arms Survey, 2015). O mesmo estudo revela que mais de 200 milhões de armas pequenas são propriedade de cidadãos dos EUA – aproximadamente uma arma por pessoa – e muito mais do que em qualquer outro país ou região do mundo. Algumas destas armas são compradas legalmente nos Estados Unidos e depois, traficadas para o México e outros países, agravando os problemas de violência que aí se vivenciam. Para encontrar mais informação sobre os mercados de armas de fogo e o seu enquadramento legal, por favor consulte as Séries de Módulos Universitários da E4J sobre Armas de Fogo.

 

Desafios e Oportunidades

O problema atual do tráfico ilícito de armas de fogo pode ser sumarizado da seguinte forma: o que se pode fazer para reduzir o fornecimento constante de armas, com grande armazenamento, de baixo custo, que é de difícil controlo e estão a ser fornecidas a grupos de insurgentes bem armados, grupos privados e agentes livres? Uma solução multinacional é claramente necessária, uma vez que as fronteiras nacionais beneficiam os traficantes de armas e vendas de forma impercetível, na medida em que compram para países com o menor número de restrições. Para além disso, as fronteiras nacionais limitam o alcance e a ação das autoridades, enquanto a cooperação internacional exige tempo e parceiros em entreajuda.

O esforço das Nações Unidas para regular o mercado ilícito no tráfico de armas de fogo visa, principalmente, controlar o seu fornecimento. Não obstante, os esforços para reduzir o fornecimento de armas de fogo, são impedidos pelo elevado número de armas que se encontram já em circulação, que frequentemente, sobrevivem aos seus proprietários e aos conflitos armados existentes, sendo vendidas novamente. A venda transnacional de armas é uma ameaça quer para as regiões instáveis, como para qualquer outro país onde as armas possam passar sem serem detetadas. A destruição das pilhas de armas que hajam sido destinadas a utilização militar, é crucial para reduzir o fornecimento de armas disponíveis para venda para compradores e vendedores sem escrúpulos.

Tráfico Ilício de Armas de Fogo e os ODSs

Considerando a ameaça que o tráfico de armas de fogo representa para a estabilidade e o desenvolvimento das nações, o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 16, dedicado à promoção da paz e de sociedades inclusivas para um desenvolvimento sustentável, explicitamente se refere à importância da redução significativa dos fluxos de armas até 2030 (ODS 16.4). Dada a natureza oculta do comércio ilícito de armas, medir a redução dos fluxos ilegais de armas não é tarefa fácil. Para estabelecer o critério de medição, a Comissão de Estatística da ONU concordou com um indicador para a Meta 16.4 – Indicador 16.4.2 – que se concentra nas armas apreendidas (Comissão de Estatística da ONU, 2016). Daí em diante, a comunidade internacional reconheceu a importância da monotorização dos fluxos ilícitos de armas, e em particular, recolher dados e informações padronizados sobre armas apreendidas, encontradas e entregues.

Uma pesquisa da UNODC em 40 países, revelou a necessidade de mudanças nas áreas relativas aos relatórios sobre apreensões de armas de fogo, a sua localização, e os problemas locais de tráfico ilícito de armas de fogo. Para além disso, é necessária formação e desenvolvimento de outras competências para fortalecer os esforços de recolha de dados, e estabelecer oportunidades, de forma regular, para a partilha de informação, dados e boas práticas para a redução do tráfico ilícito de armas de fogo (UNODC, 2015).

 
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