Este módulo é um recurso para professores 

 

Atividades complementares e papel dos atores da justiça não criminal

 

Os protagonistas da justiça não criminal têm um papel complementar em relação às autoridades policiais e judiciais. Isto deriva do facto de uma abordagem multidisciplinar robusta assentar tanto em respostas de direito penal como de direito não penal. No Módulo 3, foi explicado o papel de alguns protagonistas da justiça não criminal e a sua contribuição para as respostas da justiça penal ao tráfico ilícito de migrantes. Nesta fase, é apresentada uma visão geral breve desses protagonistas, não exaustiva e contextualizada, no contexto das respostas de justiça não criminal.

 

Stakeholders (partes interessadas) privados

Os stakeholders privados podem ser capazes de ajudar a combater atividades ilegais e problemas de ordem pública. Podem ter informações relevantes e ser capazes de agir por conta própria. Por exemplo, os stakeholders privados podem desempenhar um papel na negação do acesso à propriedade que os criminosos utilizam para facilitar as atividades ilegais. Por exemplo, o dono de uma propriedade pode ser capaz de rescindir um arrendamento quando o arrendatário começa a utilizar a instalação para permitir a permanência irregular com o objetivo de obter um benefício financeiro ou outro benefício material indevido ou desproporcionado, que poderia ser interpretado como "meio ilegal" ao abrigo do Protocolo Adicional contra o Tráfico Ilícito de Migrantes. O contrato pode claramente prever a possibilidade de rescisão com base no facto de o imóvel ter hospedado ou ter sido utilizado para atividades criminosas ou ilegais. Do mesmo modo, as disposições sobre a proteção da ordem pública na legislação podem conduzir a resultados semelhantes, dependendo das leis nacionais.

No caso descrito abaixo, na Caixa 5, as ações da empresa Unilever mostram como as empresas privadas podem pressionar outras entidades a combater atividades ilegais.

Caixa 5

A Unilever ameaça retirar anúncios do Facebook e Google

A Unilever ameaçou retirar anúncios de plataformas como o Google e o Facebook se não fizerem o suficiente para policiar conteúdos extremistas e ilegais [tais como publicidade para empreendimentos de TIM [Tráfico Ilícito de Migrantes]. A Unilever disse que a confiança dos consumidores nos meios de comunicação social está agora num novo mínimo. "Não podemos ter um ambiente em que os nossos consumidores não confiem no que veem online", disse o chefe de marketing da Unilever, Keith Weed. Afirmou que era do interesse das empresas de comunicação social digital agir antes que "os publicitários deixem de fazer publicidade". Keith Weed declarou que as empresas não podiam continuar a apoiar uma indústria de publicidade online onde material extremista, notícias falsas, exploração infantil, manipulação política, racismo e sexismo eram abundantes. "É extremamente claro, tendo em conta as vozes dos consumidores nos últimos meses, que as pessoas estão cada vez mais preocupadas com o impacto do digital no bem-estar, na democracia - e na própria verdade", disse Keith Weed. "Isto não é algo que possa ser deixado de lado ou ignorado. A Unilever comprometeu-se a:

  • Não investir em plataformas que não protejam as crianças ou criem divisões na sociedade
  • Investir apenas em plataformas que deem um contributo positivo à sociedade
  • Combater os estereótipos de género na publicidade
  • Fazer parcerias apenas com empresas que criam uma infraestrutura digital responsável

Segundo a empresa de pesquisa Pivotal, o Facebook e a Google representavam 73% de toda a publicidade digital nos EUA em 2017. Durante 2017, a Google fez 4,4 mil milhões de libras em receitas de publicidade online, enquanto o Facebook arrecadou 1,8 mil milhões, de acordo com a eMarketer. Especialistas em media digital dizem que mais compradores de publicidade terão de se juntar à Unilever para estimular a mudança. "O ecossistema publicitário contém tantos jogadores que, para que os lucros do Facebook e da Google sofram alguma mossa, será necessário que haja muitas empresas que não só se envolvam, mas também ponham realmente em prática estas ameaças", disse Sam Barker, uma analista sénior da Juniper Research à BBC. No entanto, apesar do seu poder considerável, Sam não sentiu que empresas como o Facebook e a Google pudessem dar-se ao luxo de irritar organizações comerciais enormes com orçamentos publicitários de vários biliões de libras. "Tendo em conta a situação atual, os publicitários perderiam", disse ela. "Pode ser que estejamos a atingir um ponto de viragem -as empresas de bens de consumo de circulação elevada não podem ignorar a erosão da confiança dos consumidores nas suas marcas ". Um porta-voz do Facebook disse à BBC: "Apoiamos plenamente os compromissos da Unilever e estamos a trabalhar em estreita colaboração com eles.

BBC News, 12 de fevereiro de 2018

 

O papel dos media e da sociedade civil

A sensibilização do público relativamente às causas e efeitos do tráfico ilícito de migrantes é essencial na abordagem do fenómeno. Todos os elementos da sociedade civil podem contribuir a este respeito, desde as ONG até às organizações religiosas e aos meios de comunicação social. Estes intervenientes podem ser um recurso significativo na identificação de tendências preocupantes de atividades que podem envolver o tráfico ilícito de migrantes e os abusos associados, assim como no encaminhamento desses sinais de risco para as autoridades estatais (sejam elas administrativas ou órgãos de aplicação da lei).

Os meios de comunicação social desempenham um papel importante no aumento da consciencialização do público, bem como na influência das opiniões e atitudes do público em relação às questões relacionadas com o tráfico ilícito de migrantes. Consequentemente, devem ser reconhecidas as responsabilidades dos meios de comunicação social e as dimensões éticas da criação, fornecimento e consumo dos mesmos, bem como as obrigações éticas que os fornecedores de meios de comunicação social têm para com a sociedade (ver o Módulo 10 sobre Integridade e Ética dos Meios de Comunicação Social da Série de Módulos Universitários sobre Integridade e Ética).

A Caixa 6 abaixo mostra um exemplo do impacto negativo que os media podem ter na criação de uma atmosfera de hostilidade para com os migrantes.

Caixa 6

Lacuna de Proteção - Meios de comunicação

As equipas observaram que alguns segmentos dos meios de comunicação social contribuíam para uma atmosfera de hostilidade contra os migrantes, bem como para com os defensores dos direitos humanos e organizações de migrantes, inclusivamente fazendo falsas acusações contra eles. Em alguns países, isto dizia respeito principalmente aos meios de comunicação social de tipo tabloide. Noutros países, as opiniões contra os migrantes e o incitamento ao ódio eram vistos num largo espectro dos meios de comunicação social.

EACDH: Em Busca da Dignidade-Relatório sobre os Direitos Humanos dos Migrantes nas Fronteiras da Europa (2017)

Para além do papel da sociedade civil na sensibilização e monitorização, bem como no encaminhamento de incidentes suspeitos para as autoridades competentes, a sociedade civil organizou-se espontaneamente, em alguns casos, a fim de prestar assistência e proteção aos migrantes traficados (ver abaixo Caixa 7, bem como o vídeo e o exemplo fornecidos no Exercício 2).

Noutros casos, a sociedade civil colabora voluntariamente com instituições do Estado. Ao fazê-lo, a sociedade civil pode desempenhar funções que são da responsabilidade do Estado, que por sua vez tem obrigação de assegurar os direitos dos indivíduos sob a sua jurisdição (ver o Módulo 2). O facto de a sociedade civil, em tais situações, desempenhar funções em vez do Estado, não significa que o Estado já não seja responsável pela proteção dos direitos dos migrantes traficados. Fundamentalmente, é necessário que o Estado cumpra as suas obrigações de proteger os migrantes traficados e impedir quaisquer atividades que possam pôr em risco a sua segurança (ver o Módulo 2).

Caixa 7

Médicos voluntários (Itália)

As equipas observaram positivamente que certas instalações em Itália tinham acordos de cooperação com médicos voluntários para diminuir a carga de trabalho dos médicos financiados pelo Estado e prestar serviços acrescidos aos migrantes, embora esses médicos ainda notassem a sua incapacidade de assegurar o acesso a todos os que possam ter necessidades.

EACDH: Em Busca da Dignidade-Relatório sobre os Direitos Humanos dos Migrantes nas Fronteiras da Europa (2017)
 

Academia e investigação

A academia e os centros de investigação são parte integrante na difusão do conhecimento. Além disso, possuem conhecimentos únicos que lhes permite analisar e identificar lacunas políticas e legislativas no combate ao tráfico ilícito de migrantes. Podem também sugerir desafios e boas práticas e fazer propostas fundamentadas com o objetivo de melhorar a eficácia das estratégias existentes de combate ao tráfico ilícito.

No entanto, o mais importante é que muitas vezes não dispõem dos recursos necessários para levar a cabo estas tarefas. O patrocínio do Estado, ou privado, é indispensável neste contexto.

Caixa 8

Grupo de Trabalho sobre Tráfico Ilícito de Migrantes da Universidade de Queensland (Austrália)

Em 2011, a Escola de Direito TC Beirne da Universidade de Queensland (UQ), juntamente com a Escola de Ciências Políticas e Estudos Internacionais, criou um grupo de investigação para realizar uma análise abrangente do tráfico ilícito de migrantes. O respetivo website documenta os objetivos, atividades e resultados da investigação do Grupo de Trabalho sobre Tráfico Ilícito de Migrantes da UQ.  Este trabalho complementa a investigação realizada pelo Grupo de Trabalho sobre Tráfico de Pessoas da UQ, criado em 2008.
 

Cooperação entre autoridades de controlo de fronteiras e outros profissionais

Os indivíduos que trabalham no controlo fronteiriço, para além do mandato de aplicação da lei por que se regem, estão numa posição única para alertar outras autoridades (para além das autoridades policiais) para a necessidade de investigações. Por exemplo, podem deparar-se com indivíduos suspeitos que não revelam todas as informações necessárias, que parecem ter medo ou que parecem estar a proteger alguém. A condução imediata de investigações (por exemplo, enquanto ainda a bordo de um navio de contrabando) pode pôr em causa a segurança dos migrantes, uma vez que pode haver traficantes nas proximidades. Alertar outros profissionais que posteriormente venham a encontrar os migrantes (tais como pessoal médico, psicólogos ou ONG que colaborem na prestação da primeira assistência) para a necessidade de acompanhamento pode ser fundamental.. Isto irá reduzir as oportunidades de intimidação ao migrante. Esta abordagem é ainda mais importante dado o facto de os traficantes operarem frequentemente em torno e dentro dos centros de acolhimento.

Esta metodologia exige que os profissionais que lidam com migrantes pouco tempo após a chegada estejam bem preparados, permitindo-lhes detetar incidentes suspeitos e dar-lhes um seguimento rápido e eficaz.

 

Ministérios, embaixadas e consulados

Os países de origem devem dispor de sistemas eficazes de assistência e proteção nos países de destino que possam ajudar os migrantes clandestinos. As embaixadas e consulados dos países de nacionalidade dos migrantes em situação irregular podem desempenhar um papel significativo na prevenção da continuidade dos negócios de tráfico. Podem também contribuir para impedir que os migrantes se tornem vítimas de grupos criminosos organizados nos países de trânsito e de destino. Embora seja pouco provável que as embaixadas e os consulados reduzam a procura de serviços de tráfico ilícito de migrantes, podem desempenhar um papel importante na proteção dos migrantes em situação irregular contra danos imediatos.

Os países de destino devem desenvolver fortes políticas e mecanismos anticorrupção nas suas embaixadas e consulados nos países de origem. Não é raro encontrar casos em que as embaixadas tenham estado envolvidas na emissão de vistos fraudulentos. As embaixadas também podem ser induzidas em erro na emissão de documentos de imigração. Além disso, os funcionários devem receber formação para detetar casos de abuso.

Os ministérios dos países de destino também têm um papel importante a desempenhar no desenvolvimento de programas destinados a tratar de aspetos específicos do tráfico ilícito de migrantes.

Caixa 9

Finlândia - O Ministério dos Negócios Estrangeiros faz campanhas contra o tráfico ilícito de migrantes

O Ministério dos Negócios Estrangeiros lançou uma campanha contra o tráfico ilícito de migrantes. A campanha é principalmente direcionada para os migrantes que caem nas mãos de grupos organizados de tráfico ilícito e que são potencialmente vitimizados. O objetivo da campanha é alertar para a extensão do fenómeno, os riscos associados e as consequências dramáticas na vida e segurança dos migrantes que podem igualmente tornar-se vítimas de tráfico de pessoas. O Ministério dos Negócios Estrangeiros faz campanhas de sensibilização sobre o tema nos canais dos meios de comunicação social, através da publicação de vídeos e comunicações.

Caixa 10

Processo 294/07

Desde o início de 2005 até 12 de abril de 2006, a G.V. - consciente do elevado número de cidadãos moldavos que desejavam ir trabalhar para Portugal - orquestrou um plano no sentido de facilitar a sua entrada irregular em Portugal. O seu objetivo era obter autorizações de trabalho falsas para os moldavos que estivessem interessados, a troco do pagamento de 2000 euros por pessoa. Este montante aumentou para 2500 euros em novembro de 2005. As autorizações de trabalho foram emitidas na Embaixada de Portugal na Roménia, no contexto de um procedimento iniciado em Portugal e que dependia de ofertas fictícias de trabalho em Portugal. A G.V. reuniu o apoio de várias pessoas da sua confiança que ajudaram na execução do plano criminoso. Este baseou-se em três vetores principais: (i) contacto e recrutamento de migrantes interessados na Moldávia; (ii) obtenção da documentação necessária em Portugal (sob a supervisão direta da G.V.); (iii) supervisão e coordenação dos dois vetores anteriormente mencionados (também sob a supervisão da G.V.). A G.V. acompanhou de perto os diferentes "ficheiros individuais", desde a compilação de todos os dados e documentos relevantes até ao encaminhamento para os serviços consulares. A G.V., juntamente com os seus associados mais próximos, tentou reunir o apoio de outras pessoas necessárias ao sucesso do desenvolvimento do plano criminoso, nomeadamente empresários (especialmente nas áreas da construção e agricultura) que estivessem dispostos a "vender" falsas ofertas de trabalho. Estes homens de negócios estimaram entre 300 e 600 euros por cada oferta de trabalho fictícia. Nunca tiveram a intenção de contratar qualquer imigrante como trabalhador. O arguido - um homem de negócios na área da agricultura - foi uma das pessoas que aceitou emitir falsas ofertas de trabalho, no âmbito do esquema criminoso orquestrado por G.V., com o objetivo de obter lucro. Na realidade, nunca contratou nenhum dos migrantes para os seus serviços. Não foi determinado o montante exato que recebeu pelas ofertas de trabalho que emitiu.  Em setembro de 2005, aproximadamente, a G.V. entregou ao requerente os dados de vários potenciais migrantes moldavos. Agindo em conformidade, o arguido preparou e assinou as ofertas de emprego correspondentes. A G.V. tinha estabelecido ligações criminosas com indivíduos que trabalhavam em vários serviços governamentais, cujo feedback positivo era essencial para obter as autorizações de trabalho para os migrantes moldavos interessados. (...) Vários vistos foram emitidos devido a este esquema criminoso. Este negócio levou à entrada em Portugal de vários migrantes na posse de documentos obtidos ilegalmente.

 A certa altura, a Embaixada de Portugal em Bucareste começou a desconfiar do número de ofertas de trabalho emitidas pelos mesmos indivíduos. Decidiu então suspender os processos consulares relacionados com o mesmo. Tendo em conta o atraso na obtenção das autorizações de trabalho e após ter sido informada pela Embaixada de Portugal de que os processos em questão estavam sob investigação, a G.V. tentou destruir todos os documentos que a ligavam ao plano criminoso.

A G.V. e o arguido acabaram por ser condenados.

SHERLOC Base de dados de Jurisprudência sobre Tráfico Ilícito de Migrantes - Portugal
 
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