Discurso do UNODC em terceira audiência do Senado sobre regulamentação do uso da cannabis no Brasil

Nara Santos, Vladimir de Andrade, Cristovam Buarque e Renato Malcher

Brasília, 25 de Agosto de 2014 - Leia a seguir a íntegra do discurso da Oficial de Programa de HIV/AIDS do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), Nara Santos, durante a terceira audiência pública sobre regulamentação do uso da cannabis no Brasil, realizada no dia 25 de agosto pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado:

Bom dia!

Em nome do Escritório da ONU sobre Drogas e Crime, o UNODC, quero agradecer por mais esta oportunidade de participar no debate sobre a Sugestão n. 8/2014, que trata da regulamentação do uso recreativo, medicinal ou industrial da maconha.

Esta minha apresentação de hoje acontece na sequência de duas outras apresentações nas audiências públicas anteriores.

Na primeira audiência, o representante do UNODC no Brasil, o sr. Rafael Franzini, falou sobre o tema através da perspectiva política, ressaltando a importância de uma abordagem baseada em evidências e no respeito aos direitos humanos. Na segunda audiência, meu colega Nívio Nascimento destacou as implicações da regulamentação no campo da segurança pública.

Como já ressaltado nessas ocasiões, nosso papel como representantes da ONU neste debate não é o de defender ou atacar a sugestão de projeto, mas sim de colaborar com o debate a partir de uma perspectiva internacional.

Minha proposta hoje é abordar o tema pela lógica da saúde, trazendo as contribuições dos instrumentos internacionais para o debate sobre o uso medicinal e sobre as questões associadas à saúde das pessoas que fazem o uso da maconha.

Neste sentido, é importante destacar que debates como o que estamos fazendo hoje aqui podem contribuir muito ao cenário internacional atual em que ocorre a preparação para a Sessão Especial da Assembléia Geral da ONU (UNGASS) sobre Drogas, que será realizada em 2016.

Esta será a segunda UNGASS voltada à questão das drogas. A primeira foi realizada em 1998 e representou um marco em relação à mudança de paradigma do enfoque no controle das substâncias, conforme proposto nas três Convenções sobre drogas vigentes, ampliando a abordagem para uma perspectiva do impacto na saúde das pessoas.

Em 1998, os Estados Membros da ONU elaboraram uma Declaração Política que inclui  princípios orientadores das ações no campo da prevenção, do tratamento e da redução dos efeitos adversos à saúde das pessoas que fazem uso de drogas.

A Declaração de 98  faz referência à necessidade de que sejam observados os princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos nas ações de redução da demanda de drogas.

Entretanto, as orientações e diretrizes propostas em 98, não evitaram que práticas de violações de direitos fossem adotadas em nome de uma abordagem de saúde. Este fato que  ganhou grande visibilidade no momento de se fazer a revisão dos avanços realizados desde a UNGASS sobre drogas. 

Em 2009, durante a reunião anual da Comissão de Narcóticos em Viena, a CND, ocorreu uma reunião de alto nível dos Estados Membros, que resultou em um plano de ação.

O plano reflete o aprofundamento das questões relacionadas à proteção e à promoção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais, incluindo a demanda de que também seja observado o respeito à dignidade inerente a todas as pessoas nas ações de redução de demanda.

Na sequência, em 2010, o UNODC lança o documento "Da Coerção à Coesão", indicando que a abordagem no tratamento da dependência de drogas precisa sair da lógica punitiva para uma lógica do acolhimento e do cuidado.

Em 2011, a Junta de Fiscalização de Entorpecentes (JIFE) lança seu relatório anual com o primeiro capítulo dedicado a realizar uma análise da questão das drogas na perspectiva da coesão social. Neste capítulo há uma reflexão sobre a associação entre os vínculos que unem as pessoas em uma comunidade o estado de saúde destas coletividades e como os problemas associados às drogas podem ser sintomas de uma sociedade fraturada, sem coesão.

Este ano, novamente os Estados Membros se reuniram para elaborar uma declaração conjunta, na qual reconhecem que as respostas nacionais aos problemas relacionados com as drogas devem ser consistentes com as obrigações internacionais em relação aos direitos humanos, e também reconhecem o importante papel da sociedade civil no processo de formulação de revisão de políticas nesta área.

Assim, considerando as disposições dos instrumentos internacionais mencionados, em relação ao uso medicinal da maconha, acho importante destacar que segundo a Convenção de 61 "o uso medicinal de narcóticos continua a ser indispensável para o alívio da dor e do sofrimento e que sua provisão adequada deve ser feita para garantir a disponibilidade de narcóticos para estes fins".

Apesar disso, na declaração conjunta deste ano, os países reconheceram  que ainda há uma lacuna importante na disponibilidade de drogas sob controle internacional para uso medicinal e científico, em especial aquelas que podem representar um alívio para a dor ou serem utilizadas em cuidados paliativos, e recomendam que sejam tomadas as devidas providências para garantir a sua disponibilidade e acessibilidade.

A partir de uma revisão de literatura internacional, o UNODC levantou que medicamentos derivados da maconha têm sido utilizados com eficácia medicinal comprovada, especialmente para o alívio da dor neuropática nos casos de câncer e para a espasticidade relacionada à esclerose múltipla. Há ainda estudos promissores sobre os componentes da maconha relacionados ao tratamento da dor de uma forma geral, da esclerose múltipla, do glaucoma e da náusea em pacientes em quimioterapia.

Portanto, tendo em vista tais possibilidades de uso medicinal de derivados da maconha, o investimento em pesquisas ainda se faz necessário e é de grande relevância, já que nosso conhecimento nestas áreas ainda é limitado.

Sabemos que o THC constitui o principal componente psicoativo dos extratos da maconha, que podem conter pelo menos outros 489 componentes químicos, dos quais 70 são canabinóides.

Quando a maconha é fumada, seu padrão de uso mais comum, os efeitos da absorção do THC pelo organismo já são bem conhecidos na literatura nacional e internacional.

Igualmente são conhecidos os problemas, especialmente respiratórios que podem estar associados ao uso crônico da maconha.

Em geral há uma preocupação de que o uso continuado possa interferir nas capacidades cognitivas, com reflexos na atenção, no desempenho e coordenação motora e no processamento de informações.

Em função dos efeitos no organismo, surgem questionamentos em relação à capacidade de pessoas que fazem o uso da maconha de executar atividades que demandam atenção. Mas será que decisões no campo legislativo ou mesmo de políticas públicas podem ser tomadas com base apenas neste tipo de informação?

É importante destacar o caráter dinâmico do uso de drogas, que pode variar em função dos locais, das pessoas que fazem o uso, do objetivo com que se faz este uso e do tempo. Apesar das evidências que demonstram alguns impactos sobre a saúde física e mental das pessoas que podem estar associados ao uso da maconha, é essencial conhecer as práticas associadas ao uso e o contexto no qual o uso ocorre, e não apenas da maconha, mas de qualquer outra droga. Dessa maneira, poderemos entender melhor a verdadeira extensão dos problemas associados.

Aproveito para destacar aqui uma experiência recente que tivemos no Brasil com relação ao uso de crack. Os principais conhecimentos disponíveis sobre os efeitos do uso do crack apontavam para um padrão que poderia levar à dependência muito mais rapidamente que o uso da cocaína por outras vias, além de complicações mais severas à saúde. 

Com base apenas nas informações sobre os efeitos do crack no organismo, se iniciou um amplo debate nacional com enfoque em propostas de tratamento por meio de internações involuntárias, apesar da não efetividade desta prática, conforme preconizado pelo documento do UNODC "Da Coerção à Coesão".

Entretanto, no estudo publicado pela Fiocruz no ano passado sobre o perfil dos usuários de crack e/ou similares no Brasil, quase 80% dos usuários afirmaram desejar se tratar para o uso de drogas, demonstrando o quanto seria desnecessário investir de forma prioritária na estruturação de mecanismos de internação involuntária.

Portanto, tendo em mente este exemplo do crack, uma recomendação que o UNODC deixa para este debate é que precisamos obter mais dados, buscar um melhor entendimento sobre padrões, tendências e contexto do uso na população em geral e em grupos específicos.

Resgato aqui mais uma vez o relatório da JIFE de 2011, pois se estamos falando de problemas associados às drogas é preciso olhar mais adiante, para os condicionantes sociais destes problemas. É preciso olhar para aqueles fatores que podem ameaçar a coesão social nas comunidades, como o individualismo, o consumismo, conflitos de diversas naturezas, colapso no respeito e cumprimento da lei em diferentes níveis, sistema educacional precário, entre outros.

Para finalizar, não posso deixar de mencionar que o estigma hoje representa uma das maiores barreiras ao acesso de pessoas que fazem uso de qualquer droga ilícita a serviços de saúde, ou a qualquer outro serviço na rede que venha a ser procurado por estas pessoas. Idéias equivocadas associadas a "desvio de caráter", estereótipos com relação a falta de força de vontade e julgamentos morais ainda são um grande obstáculo a implementação de políticas na ponta. Por isso, ações voltadas ao enfrentamento do estigma e ao preconceito também são fundamentais.

Todas as notícias