II Conferência Latino-americana sobre Políticas de Drogas

"O usuário de drogas na agenda dos organismos multilaterais"

Bo Mathiasen

Boa tarde a todos. Primeiro, quero agradecer o convite para participar deste evento em nome do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, o UNODC. Achei muito interessante o tema deste painel: "Os usuários de drogas na agenda dos organismos multilaterais".

É evidente que o tema das drogas vem assumindo maior importância no mundo inteiro. Não é por acaso que desde a década de 60 os países membros das Nações Unidas já assinaram três convenções sobre o tema.

Mas a preocupação com o abuso de drogas é antiga. Há cem anos, pela primeira vez a comunidade internacional se reuniu para buscar soluções conjuntas para o problema do uso de drogas em Xangai, na China. Em 1906, um quarto dos homens adultos no país era dependente de ópio - trata-se da maior epidemia já enfrentada por uma nação em toda a história.

Hoje, praticamente todos os países já aderiram às convenções que têm apenas um objetivo primordial: o de prevenir o uso de drogas para proteger as pessoas das conseqüências negativas de substâncias que podem ser prejudiciais à saúde. É o usuário quem deve ser o foco da discussão sobre políticas públicas de drogas.

As políticas sobre drogas devem necessariamente considerar a prevenção e as necessidades de assistência, tratamento e apoio integral à saúde do usuário problemático, bem como a segurança pública, por meio do combate ao crime organizado associado ao tráfico de drogas.

É evidente que não cabe às Nações Unidas determinar a forma como os países devem controlar o comércio e o uso dessas substâncias. Cada país é soberano para implantar e alinhar esses instrumentos à legislação nacional.

O papel das Nações Unidas é apoiar e monitorar os governos na implementação de políticas públicas alinhadas a convenções internacionais para minimizar os danos que o uso e a comercialização dessas substâncias pode provocar nos cidadãos, na sociedade e nos estados.

Mas antes de falar mais sobre o usuário, considero importante abordar alguns aspectos fundamentais para compreender o contexto em que as drogas se inserem no nosso cotidiano.

É inegável que a globalização trouxe inúmeros benefícios, com mudanças radicais na vida das pessoas. Mas a globalização facilitou também diversas atividades ilícitas.

Nesse sentido, as mudanças nas dinâmicas do crime organizado transnacional são evidentes, inclusive nas novas rotas e mercados. O tráfico de drogas também passou a representar o desafio de encontrar soluções compartilhadas, já que a atuação do crime organizado em um país também atinge outros ao seu redor.

Do ponto de vista "empresarial", o crime organizado sempre busca por oportunidades mais rentáveis, tais como o sequestro, o tráfico de armas e de pessoas, o jogo ilícito, a falsificação de medicamentos, o contrabando, a extorsão, a lavagem de dinheiro. Todas essas atividades financiam o crime organizado, que engloba o tráfico de drogas como uma de suas principais atividades, mas não pode ser visto apenas como conseqüência dele.

Por isso, o UNODC também é guardião da Convenção contra o Crime Organizado Transnacional e seus três protocolos, bem como da Convenção contra a Corrupção. Isso porque, em geral, o tráfico de Drogas, o Crime Organizado e a Corrupção são três temas que estão intrinsecamente relacionados.

A questão das drogas é um desafio global. No entanto, as formas de controlar os diferentes tipos de danos aos usuários, às famílias, às sociedades e aos governos têm que considerar características nacionais e regionais. Pensemos aqui na América Latina, que é o foco desta conferência.

A dimensão territorial da América Latina, que conta hoje com cerca de 550 milhões de habitantes, representa um desafio especial em termos de criação de políticas públicas articuladas sobre drogas. Na última década, vários países, tanto no Cone Sul como na América Central, foram atingidos pelo narcotráfico.

O fortalecimento do crime organizado relacionado ao tráfico de drogas, por sua vez, implica numa série de ameaças à segurança e á saúde pública - elevando os níveis de violência, enfraquecendo instituições e até colocando em risco a Democracia e o Estado de Direito, em alguns países.

Como disse antes, não se pode combater o crime organizado isoladamente. Um maior controle requer cooperação internacional e articulações multilaterais que incluam os países envolvidos. Para problemas comuns, a responsabilidade e as soluções devem ser compartilhadas.

Daí a importância de conferências como esta, assim como de ações conjuntas de intercâmbio de experiências, que os países da região realizam constantemente.

Hoje, a América Latina vive um momento importante de reflexão e de mudança de paradigma.

Durante muito tempo, a discussão girou principalmente em torno da repressão ao tráfico de drogas e negligenciou aspectos importantes como determinantes sociais de vulnerabilidade e de saúde. Milhares de usuários e pequenos vendedores têm sido enviados para a prisão a um custo muito alto para os governos e com baixa capacidade de reinserção na sociedade. Nas prisões, o usuário de drogas se depara com uma situação de extrema vulnerabilidade - enfrenta a superlotação, não recebe tratamento digno, utiliza drogas em situação de risco.

Comprovadamente, a melhor alternativa para o usuário problemático de drogas não é a pena privativa de liberdade. E os governos, incluindo todas as esferas - o Executivo, o Legislativo e o Judiciário - não devem medir esforços para garantir o respeito integral aos Direitos Humanos do usuário de drogas.

É preciso conciliar o combate ao crime organizado com programas de prevenção e promoção da cidadania.

Atualmente, é possível observar um movimento em direção a políticas que diferenciam os usuários dos traficantes e que conciliam estratégias de repressão ao crime organizado com ações de atenção integral aos usuários. E é justamente essa a estratégia que precisa avançar.

O estigma e o preconceito em relação ao usuário de drogas representam verdadeiras barreiras ao acesso a serviços de saúde e a informação de qualidade.

A falta de informação qualificada, por sua vez, coloca o usuário numa situação de maior vulnerabilidade em relação a infecções como o HIV, as hepatites e a tuberculose, além dos riscos associados a uma overdose.

Outro dado preocupante é que o uso de drogas sintéticas como o êcstasy e as anfetaminas está crescendo. Já representam a terceira droga em ascensão e a tendência é que sejam cada vez mais utilizadas.

É importante considerar que geralmente estas substâncias são consumidas em contextos nos quais o usuário não percebe vulnerabilidade. Portanto, devemos pensar estratégias de proteção que incluam um trabalho de conscientização sobre o uso de drogas.

Diante de uma realidade tão complexa, na qual temos que lidar com tantos desafios ao mesmo tempo, é preciso que estejamos preparados para compartilhar responsabilidades e trabalhar em diversas frentes.

Na prevenção junto aos nossos jovens. Sei que existem diversos aspectos que devem ser considerados ao pensar políticas de prevenção junto aos nossos jovens. Entre eles, quero destacar a importância do empoderamento individual, capaz de estimular o jovem a tomar decisões de forma consciente.

É importante não só que os nossos jovens saibam quais são as conseqüências do uso de drogas, mas também de como fazer um uso seguro, se for o caso.

Para se ter uma idéia da importância da prevenção junto aos jovens, quero lembrar aqui que a Holanda, por exemplo, frequentemente mencionada por sua política sobre o uso de drogas, é também o país da União Européia que mais investe em programas abrangentes de prevenção.

Sabemos que a maioria dos países hoje não tem, nos sistemas de saúde pública, capacidade para atender à demanda por tratamento ou por serviços de saúde relacionados ao uso problemático de drogas. É fundamental para as políticas de drogas que os governos sejam capazes de oferecer respostas efetivas àquelas pessoas que procuram tratamento.

Nesse sentido, o UNODC desenvolveu, em parceria com a Organização Mundial da Saúde, um programa voltado à humanização do tratamento. A idéia é cuidar do uso problemático de drogas da mesma forma como outra questão de saúde, com uma abordagem de direitos humanos.

Mas para que o tratamento seja de fato integral é preciso, em primeiro lugar, promover o acesso. Isso não quer dizer apenas disponibilizar um serviço na rede, mas significa pensar sob vários aspectos que incluem as condições de acolhimento.

Quero aqui destacar que, muitas vezes, a forma como uma pessoa é recebida na rede de saúde pública pode ser determinante para sua adesão.

Também é preciso garantir a eficácia na atenção ao usuário de drogas. Para isso é necessário que os países conheçam o perfil do uso de drogas por faixa etária, econômica e geográfica, quais são as relações sociais nas quais o uso ocorre, o tipo de substancia utilizada, entre outras informações fundamentais para se pensar estratégias de atenção integral.

A qualificação da rede de atenção também é fundamental. É necessário capacitar constantemente os profissionais da rede e investir na produção contínua de conhecimento. Pois somente a partir das pesquisas é possível garantir estratégias de tratamento desenvolvidas com base em evidências científicas e não em suposições ou hipóteses.

Finalmente, a estratégia de atenção ao usuário problemático não pode ser pensada e estruturada do ponto de vista de quem ministra o tratamento, mas deve ser pensada do ponto de vista de quem o recebe e suas demandas.

O usuário problemático deve ser visto como alguém que precisa de um atendimento especializado. Por isso é importante desenvolver alianças com os diversos instrumentos disponíveis na comunidade e garantir a participação voluntária do usuário em oposição ao tratamento compulsório.

É importante a participação de escolas, famílias e mesmo comunidades religiosas promovendo um novo olhar sobre a relação dos indivíduos com as substâncias, considerando as desigualdades, situações econômicas, gênero, crenças, territórios, orientações sexuais. Esta participação não deve ser proposta apenas para o cuidado, mas para o desenvolvimento conjunto de uma resposta local.

Além disso, quero destacar que em março de 2009, durante a reunião de alto nível que ocorreu por ocasião da Comissão de Narcóticos em Viena, foi adotada a "Declaração Política e Plano de Ação sobre Cooperação Internacional para uma Estratégia Integrada e Equilibrada de Enfrentamento do Problema Mundial de Drogas".

Nesta ocasião, foi reafirmado o compromisso de trabalhar para alcançar a meta do acesso universal a programas abrangentes de prevenção e serviços relacionados de tratamento, atenção e apoio. Estes programas abrangentes também podem incluir ações de redução de danos, mais especificamente programas de troca de seringas.

Quero ressaltar ainda que o respeito aos Direitos Humanos do indivíduo como à cidadania e à dignidade deve estar presente em todas as etapas da atenção ao usuário de drogas.

Hoje, é inadmissível pensar numa sociedade que prende, estigmatiza ou discrimina o usuário de drogas, assim como é impossível pensar que os países atuem de forma isolada, seja no combate ao crime organizado, seja na promoção do desenvolvimento. Muito obrigado.

Brasília, 26 de agosto de 2010