O acesso à Justiça em Tempos de Confinamento Judicial

Juíz José Igreja Matos

O juíz José Igreja Matos é o primeiro Vice-Presidente da União Internacional de Juízes, Presidente da Associação Europeia de Juízes e membro do Conselho Consultivo da Rede Global de Integridade Judicial. Adverte-se para que todas as opiniões expressas nesta série constituem tão-somente a opinião daqueles que as assinam, todos peritos externos, e que não refletem necessariamente a posição oficial da Oficina das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. 

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 "O que é verdadeiro sobre todos os males do mundo, vale também para as pestes. Eles ajudam os homens a elevarem-se acima de si mesmos."

 - Albert Camus, A Peste.

Os tempos terríveis em que vivemos, trazidos pela pandemia do coronavírus, colocam desafios difíceis para todos quantos trabalham no sistema judicial. A propagação à escala mundial da crise da COVID-19 levou-nos, uma vez mais na nossa história, a olhar de frente a perpétua fragilidade da humanidade.

A União Internacional de Magistrados (UIM-IAJ) representa associações de 92 países, oriundos de 5 continentes. A dimensão global da nossa associação traz consigo uma obrigação especial em reiterar os deveres mais profundos dos juízes perante uma pandemia como esta.

Em nível estrutural, a aplicação das leis de emergência aprovadas pelas autoridades nacionais devem ser cuidadosamente supervisionadas pelo judiciário. Estas respostas de emergência entrarão em conflito com os princípios de governação democrática, os direitos humanos e o Estado de Direito. O risco de enfraquecimento do papel do judiciário em todos os países que decidirem implementar restrições de ordem constitucional irá emergir, inevitavelmente.

"O preço da liberdade é uma vigilância perpétua". A famosa frase atribuída a Thomas Jefferson ganhou nas nossas vidas uma importância renovada.

Os governos nacionais não devem, por isso, ser tentados a ver na presente crise uma oportunidade de passar por cima dos tribunais independentes, enquanto estes cumprem o seu papel de protetores dos direitos humanos e das liberdades civis.

Deve igualmente ser levado em conta como a quarentena imposta pelo COVID-19 teve repercussões danosas na atividade dos tribunais. Em todos os países do mundo, os esforços para desacelerar a propagação do COVID-19 afetaram profundamente o funcionamento do sistema judicial. A maioria dos casos judiciais foram, ou virão a ser, inevitavelmente prorrogados, se não mesmo suspensos.

Os Princípios de Bangalore de Conduta Judicial determinam que "um juiz deve aceitar as restrições pessoais que podem parecer limitações para os cidadãos comuns e deve fazê-lo de modo livre e com disposição." [1] Isto aplica-se ao momento atual, e o dever de estar prontamente disponível para servir os seus concidadãos deve ser bem acolhido por cada juíz, num espírito de prestação de serviço público. Independentemente daquilo que suceda, os juízes continuarão ao serviço de cada cidadão sempre que caiba decidir sobre uma matéria urgente, sempre que uma sentença tenha que ser proferida. Isto aplica-se, em especial, nos casos que envolvam direitos fundamentais ou a proteção dos membros mais frágeis das nossas comunidades, particularmente os idosos, mas também, por exemplo, as vítimas de violência doméstica, que no atual contexto de confinamento familiar sofrem uma pressão adicional, e, em geral, todos os que necessitarem de apoio.

Escreveu o poeta John Donne: "Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme." [2] A União Internacional de Juízes, uma organização totalmente apolítica, foi construída sobre o pilar fundamental da solidariedade, tanto entre juízes como para com os nossos concidadãos.

É esta a mensagem certa para o tempos conturbados em que vivemos.



[1]    Ver o Princípio 4.2: "Como objeto de constante observação por parte do público, um juiz deve aceitar as restrições pessoais que podem parecer limitações para os cidadãos comuns e deve fazê-lo de modo livre e com disposição. Em particular, um juiz deve conduzir-se de maneira consistente com a dignidade do ofício judicial.". "Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial", Escritório Contra Drogas e Crime, tradução de Marlon da Silva Malha, Ariane Emílio Kloth. - Brasília : Conselho da Justiça Federal, 2008, p. 94.

[2]    Ver Augusto de Campos (trad.) "John Donne: o Dom e a Danação", Rio de Janeiro: Noa Noa, 1978.