Este módulo é um recurso para professores 

 

A ação coletiva e as parcerias público-privadas contra a corrupção

 

Este Módulo abordou, até agora, a implementação de um regime global com base na aplicação da relação mandante-mandatário. Por outras palavras, a empresa principal (mandante) é responsável pelos atos das suas sucursais e filiais, intermediários e terceiros (mandatárias). Esta estratégia é útil na redução dos subornos nas transações internacionais e na cadeia de produção global. A mesma aumenta consideravelmente a probabilidade de as empresas multinacionais sancionadas por atos de corrupção num determinado país perderem oportunidades de negócio noutros países, devido à sua inclusão em listas negras ou à sua inelegibilidade em concursos públicos.

No entanto, esta estratégia pode ser insuficiente quando a corrupção é sistémica, por exemplo, porque a mesma se espalhou e se encontra profundamente imbricada em redes público-privadas, ou porque é apoiada ou mesmo organizada pelo governo. Em contextos de corrupção sistémica, as empresas podem ser deixadas sem mais alternativas além de retirar-se de um mercado específico, com a consequência política não intencional de deixarem esse mercado nas mãos de agentes sem escrúpulos. Além disso, quando a corrupção é generalizada, uma intervenção jurídica baseada na responsabilidade das pessoas coletivas pode gerar transições custosas. Na América Latina, por exemplo, o Caso Odebrecht envolveu centenas de empresas, a maioria das quais faliu ou foi colocada à beira da falência. Só no Brasil, mais de 100.000 trabalhadores perderam os seus empregos. Evitar tais transições abruptas – que muitas vezes geram contratempos que fazem perpetuar a corrupção – requer estratégias diferenciadas.

Em mercados dominados pela corrupção sistémica, as empresas deparam-se com o “dilema do prisioneiro”, no qual receiam as desvantagens competitivas, como a perda de contratos, derivadas da recusa de se envolverem em práticas corruptas. Tal foi descrito como “o problema da ação coletiva”, discutido em detalhe no Módulo 4 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção. O sentimento prevalecente é o de que se uma empresa não subornar, as concorrentes irão fazê-lo. Noutros casos, a falta de confiança é minimizada através da formação de cartéis – por vezes, mesmo encorajados pelo Estado. Em ambos os casos, o resultado será um aumento exponencial dos custos coletivos.

A resposta a estes problemas requer um acordo, semelhante a um contrato multilateral: um acordo em que as diferentes partes interessadas se comprometem com um novo equilíbrio normativo. Para esta abordagem funcionar, a maioria delas deve ter expetativas de que os seus companheiros cumprirão e farão cumprir as regras adotadas.

Estas abordagens coletivas e coordenadas são apelidadas de iniciativas de “ação coletiva”, e foram definidas da seguinte forma (Banco Mundial, 2008, p. 4):

A “ação coletiva” é um processo colaborativo e sustentado de cooperação entre partes interessadas. Aumenta o impacto e a credibilidade da ação individual, leva os intervenientes individuais vulneráveis a aliarem-se a organizações semelhantes e promove o equilíbrio no campo de ação entre os concorrentes. A ação coletiva pode complementar ou substituir temporariamente, bem como fortalecer leis locais e práticas anticorrupção mais fracas.

As iniciativas de ação coletiva podem assumir várias formas, desde acordos a curto-prazo a iniciativas a longo prazo com execução externa. As empresas que participam em tais iniciativas podem perseguir os seus objetivos de forma mais eficaz através de um esforço conjunto e concentrado do que individualmente. As iniciativas de ação coletiva podem ser formadas tanto exclusivamente no setor privado (p.e. PME a pedir normas harmonizadas de fornecedores para empresas maiores) ou envolver parcerias público-privadas (p.e. abordar coletivamente desafios únicos, como pagamentos de facilitação, ou reclamar por um melhor ambiente regulatório e comercial). Um exemplo deste último tipo de abordagem de ação coletiva é a iniciativa Jornada Íntegra, a qual foi lançada em 2019 pela plataforma internacional de negócios Aliança pela Integridade. Esta iniciativa destina-se a auxiliar as pequenas e médias empresas (PME) brasileiras a criar um ambiente empresarial mais ético e sustentável.

Atualmente, as empresas estão, cada vez mais, a adotar abordagens anticorrupção em colaboração com o setor público e a sociedade civil, bem como a academia. Estas abordagens de ação coletiva têm um grande potencial na redução da corrupção na sociedade no seu sentido mais amplo, por várias razões. Primeiro, a corrupção é tão complexa que não pode ser resolvida pelos governos ou empresas atuando individualmente. Portanto, embora o setor privado seja parte do problema, também faz parte da solução no combate à corrupção nas sociedades. Segundo, embora as empresas sejam uma fonte comum de fundos corruptos, elas também são vítimas da corrupção e, portanto, devem ter um papel a desenvolver na reforma. Terceiro, os governos podem beneficiar da experiência e dos recursos que as empresas éticas podem proporcionar no combate à corrupção. Com a ação coletiva, as empresas de todas as dimensões podem tornar-se agentes de mudança no que respeita a políticas e procedimentos anticorrupção, estimulando esforços nos setores público e privado para diminuir a corrupção e envolvendo-se em reformas eficazes.

A ação coletiva pode envolver atores privados ou governamentais – uma colaboração normalmente designada de parceria público-privada. Um exemplo recente de uma ação coletiva baseada numa parceria público-privada é a intervenção liderada pela Maritime Anti-Corruption Network (MACN) na Argentina juntamente com várias associações empresariais que operam no setor dos transportes marítimos. A intervenção teve como principal objetivo reduzir a corrupção durante as inspeções dos porões e tanques dos navios graneleiros conduzidas pelo Serviço Nacional de Saúde e Qualidade Agroalimentar da Argentina. As inspeções deveriam garantir que os meios de transporte estavam em condições adequadas para evitar a contaminação dos produtos agrícolas. No entanto, um negócio ilícito que rendia cerca de 30 milhões USD por ano veio a desenvolver-se graças a um conjunto de fatores, nomeadamente: a falta de supervisão no exercício de poderes discricionários pelos inspetores, os custos derivados dos atrasos causados pela reprovação do armazém, e a falta de transparência e de regulamentação em todo o processo de inspeção. Tais condições estimularam e facilitaram o suborno, pago pelas embarcações em piores condições para obterem o benefício indevido da aprovação, e extorsão comercial de embarcações em boas condições que pagaram para evitar atrasos dispendiosos e injustificados. Com o tempo, a extensão da corrupção sistémica em tais inspeções afetou não apenas as empresas individuais que tiveram que adicionar o custo dos subornos aos seus custos de negócio, mas também o comércio internacional de produtos agrícolas da argentina no seu todo, ao ponto de os elevados custos e os riscos jurídicos desencorajarem empresas estrangeiras de realizar negócios no país. 

Para combater o problema da corrupção, os membros da MACN envolveram-se com as várias partes interessadas, incluindo o governo, num processo que levou mais de três anos para reformular o processo de inspeção. As discussões avaliaram as vantagens e desvantagens comerciais, jurídicas e financeiras enfrentadas por cada parte interessada e como as condições de concorrência as afetariam. Em acordo com todas as partes interessadas, o governo reformou a plataforma regulatória em novembro de 2017. A ação coletiva continuou ao longo da implementação da reforma, por meio de reuniões com as partes interessadas e de formações do pessoal operacional, tanto no setor público, como no privado. Os subornos diminuíram para quase zero e, nalguns casos em que se verificou corrupção, os incidentes foram reportados e sancionados.

Discussões interessantes e exemplos de abordagens de ação coletiva são incluídos neste artigo B20 de 2014. O artigo propõe formas de incrementar o papel do setor privado na luta contra a corrupção, incluindo através da melhoria da colaboração com governos e instituições internacionais. Além disso, contém inúmeros casos práticos que ilustram diferentes abordagens para se alcançar tais colaborações.

Mais informações sobre a ação coletiva e parcerias público-privadas estão disponíveis no Guia Prático sobre Programas de Ética Anticorrupção e Compliance Empresarial da UNODC. O Instituto de Governança de Basel disponibiliza uma base de dados sobre iniciativas de ação coletiva contra a corrupção. Os supramencionados Pacto Global das Nações Unidas, Aliança pela Integridade, PACI e B20 são outros exemplos conhecidos de iniciativas globais de ação coletiva.

 
Seguinte: Conclusão
Regressar ao início