Este módulo é um recurso para professores 

 

Sistemas de denúncia e proteção de denunciantes

 

A necessidade de sistemas de denúncia eficazes

Uma denúncia não pode ser sobrevalorizada. Um estudo na Austrália demonstrou que a denúncia de funcionários era “o modo mais significativo pelo qual irregularidades foram reveladas em organizações do setor público” (UNODC, 2015). Portanto, não existem dúvidas de que não só é necessário que os legisladores vão mais longe, mas também que as entidades públicas e privadas incentivem as denúncias de corrupção; procurem gerir, de forma adequada, as denúncias de alegada corrupção, de comportamentos ilícitos e de riscos indevidos; forneçam níveis apropriados de proteção aos denunciantes. Vanderkerckhove e outros (2016, p. 4) sugerem que os sistemas de denúncia podem ser mais bem sucedidos se fornecerem uma combinação de canais de denúncia (v.g. diretamente a pessoas específicas e confiáveis, através de uma linha telefónica, ou de um canal online); se as autoridades fizerem questão de manter contacto ao longo de todo o processo de investigação para manter a confiança (falhas na comunicação podem dar origem à perceção de que o erro está a ser encoberto ou de que a investigação não é séria); e se as informações das denúncias estiverem ligadas às informações de outras fontes (como questionários ou auditorias).

 

Métodos e canais para as denúncias

Como integrantes de uma organização, os denunciantes têm conhecimentos, acessos e experiências específicas que lhes permitem detetar a corrupção e outras preocupações que poderiam, de outro modo, manter-se ocultas. No entanto, estes encontram-se, geralmente, numa situação difícil, devido à sua possível lealdade para com colegas e supervisores, obrigações contratuais de confidencialidade ou pelo medo de retaliação. É possível fazer-se uma distinção entre formas de denúncia aberta, confidencial e anónima (UNODC, 2015, p. 48):

  • Denúncia aberta: quando os indivíduos denunciam ou divulgam informações, não encetando esforços de modo a garantir ou exigir que a sua identidade seja mantida em segredo.
  • Denúncia confidencial: quando o nome e a identidade do indivíduo que divulgou a informação é conhecida pelo recetor da mesma, mas não é divulgado sem o seu consentimento, a menos que tal seja exigido por lei.
  • Denúncia anónima: quando a denúncia é realizada, mas ninguém conhece a sua origem ou fonte.

Além destas formas de denúncia, existem diferentes canais que podem ser utilizados para denunciar. Os três principais canais de denúncia são: 1) denúncia interna; 2) denúncia externa a um regulador, órgão aplicador da lei ou outra autoridade específica (veja o exemplo coreano); e 3) denúncia externa aos meios de comunicação social ou noutras plataformas públicas (como foi o caso dos Mossack Fonseca Papers). Canais alternativos de denúncia devem, em princípio, estar disponíveis para qualquer pessoa que labore numa organização pública ou privada, embora possam existir setores, como as forças de segurança, que requerem processos especializados. Alguns países têm disposições especiais para denúncia a Ministros ou assessores especialmente designados para essa finalidade. A tecnologia promoveu, igualmente, o desenvolvimento de canais de denúncia online. Alguns destes permitem a comunicação anónima (em ambos os sentidos) e encriptada entre o denunciante e o recetor da denúncia.

 

A proteção dos denunciantes

Diferentes jurisdições definem as denúncias de forma distinta. Uma clara diferença reside no critério de elegibilidade para proteção. Por exemplo, alguns países, como a Argentina, a Bósnia Herzegovina e os Estados Unidos fornecem proteção independentemente de o denunciante ser um funcionário do setor público ou do setor privado, enquanto outros países adotam âmbitos de proteção mais limitados. Alguns países protegem apenas os funcionários no sentido formal, enquanto que outros incluem contratantes, consultores e voluntários.

A proteção de denunciantes é crucial para o sucesso da deteção e repressão da corrupção e deve ser um aspeto chave em qualquer sistema de denúncias. Devido aos benefícios substanciais para as partes envolvidas na corrupção, e a ameaça séria de punição criminal ou de outra natureza a que tais partes estão expostas, os denunciantes de tais atividades corruptas podem colocar-se a si, a membros da família ou a colegas em risco. Em vez de admitirem o erro e mudarem as suas formas de atuar, as pessoas implicadas na corrupção podem optar por atacar ou retaliar.

Um estudo das experiências de bullying no local de trabalho de 72 denunciantes externos coreanos, que incluiu uma revisão da literatura relevante, concluiu que o bullying é frequente e significativo, sendo levado a cabo por supervisores e colegas de trabalho, contribuindo para a criação de um ambiente laboral hostil (Park, Bjørkelo e Blenkinsopp, 2018). Os investigadores retiraram duas importantes conclusões de tal estudo: primeiro, “o bullying por superiores está intimamente relacionado com o bullying pelos colegas”, segundo, “os colegas que compreendem as razões dos denunciantes para terem atuado tiveram um efeito significativo na diminuição da frequência de bullying pelos demais colegas”. As denunciantes femininas podem, igualmente, sofrer mais retaliações do que os denunciantes masculinos. Um estudo de 2008 numa Base da Força Aérea norte-americana com 9.000 trabalhadores, 238 dos quais foram identificados como denunciantes, revelou que um maior número de mulheres foi sujeito a fracas avaliações de desempenho, assédio verbal, intimidação, e a escrutínios bem mais minuciosos das suas atividades diárias após as denúncias, especialmente quando comparadas com colegas do sexo masculino que se encontravam em situações análogas (Rehg e outros, 2008). Mesmo que as mulheres tenham um certo nível de poder ou autoridade, tal não as protege da retaliação. Embora este estudo tenha sido levado a cabo num contexto muito particular e em que domina o sexo masculino, e os resultados não tenham sido replicados em outros setores, fornece importantes elementos de reflexão sobre como o género pode desempenhar um papel no tratamento dos denunciantes e nas retaliações. Para uma discussão sobre o nexo corrupção e género, consulte o Módulo 8 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção; e para uma discussão sobre género e ética em geral, vide o Módulo 9 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Integridade e Ética.

Existem muitos exemplos, mormente de indivíduos que não têm recursos para sobreviver sem o seu salário ou a capacidade de mudar de trabalho ou de carreira. A retaliação contra os denunciantes é uma séria ameaça à eficácia dos programas anticorrupção, causando danos a indivíduos e aos seus meios de subsistência. Em alguns casos, p.e. quando os denunciantes são injustificadamente despedidos ou discriminados com base no género ou na orientação sexual, a retaliação pode representar uma violação de direitos humanos. Portanto, uma componente vital de qualquer plano para lidar com as denúncias de corrupção é o desenvolvimento de protocolos que mantenham a confidencialidade e protejam as pessoas que denunciam a corrupção. Para mais informações sobre a relação entre anticorrupção e direitos humanos, vide o Módulo 7 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção. Tenha-se igualmente em conta as discussões do Módulo 10 sobre as barreiras à participação democrática nos esforços e iniciativas anticorrupção.

A retaliação contra os denunciantes pode acontecer independentemente dos canais utilizados para denunciar a corrupção, pelo que a organização em questão deve fornecer-lhes proteção. No entanto, existem casos em que a concessão de proteção é controversa. Por exemplo, denúncias, em primeira linha, aos meios de comunicação social não permitem à organização corrigir por si o problema e podem ser verdadeiramente problemáticas. Assim, as organizações podem não querer fornecer proteção em tais circunstâncias e tal pode estimular as denúncias externas. Além disso, a proteção em caso de denúncias aos meios de comunicação social é, normalmente, garantida apenas em caso de verificação de um conjunto de requisitos legais. Tais requisitos legais variam de país para país, podendo depender de: a seriedade da matéria em questão; que a denúncia tenha sido feita de determinada maneira; que se tenha previamente realizado uma denúncia interna ou a um regulador (vide, por exemplo, a secção 10 do Protected Disclosure Act, da Irlanda (2014); a secção 43 do Public Interest Disclosure Act, do Reino Unido; o artigo 19.º da Lei de Proteção de Denunciantes – Lei n.º 128/2014, da Sérvia). Se a divulgação e subsequente retaliação forem trazidas a tribunal, o juiz deverá avaliar a questão de forma casuística e tentar harmonizar os direitos e interesses das diferentes partes em questão. As normas de direito internacional dos direitos humanos, como as consagradas no artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) e o art. 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), bem com o interesse público terão um importante papel nesta sede. Para uma discussão sobre a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) em torno do art. 10.º da CEDH e as denúncias de corrupção, vide Nad (2018).

 

Incentivos financeiros

Outra questão controversa, que vai além da proteção dos denunciantes, é a de saber se estes devem receber recompensas financeiras. As recompensas financeiras são utilizadas nos Estados Unidos e na Coreia do Sul, enquanto que a maioria dos países europeus se abstém de encetar tal prática. Um exemplo é o de Bradley Birkenfeld, o primeiro banqueiro internacional a denunciar contas ilegais offshore de cidadãos norte-americanos na Suíça. A sua denúncia permitiu recuperar cerca de 780 milhões de dólares em multas e contraordenações pagas pelo UBS, e mais de 5 milhões de dólares em cobranças a contribuintes dos Estados Unidos. O governo Suíço foi igualmente “forçado a alterar as convenções de natureza fiscal com os Estados Unidos de forma a entregar os nomes de mais de 4.900 contribuintes norte-americanos que aí tinham contas ilegais offshore” (National Whistleblower Center, n.y.). O Sr. Birkenfeld recebeu uma recompensa de 104 milhões de dólares. Este incentivo financeiro contribuiu para a denúncia de atividades ilegais generalizadas, mas a enxurrada de denúncias veio colocar questões sobre a conveniência de se pagar pela informação. As vantagens e desvantagens dos incentivos financeiros devem ser avaliadas com base no contexto específico de cada jurisdição.

 

A (ir)relevância da motivação

As motivações dos denunciantes geram discussões interessantes. Os denunciantes são frequentemente difamados e atacados por funcionários descontentes, pessoas com rancor contra as empresas ou por oportunistas que procuram alguma recompensa monetária ou fama. No entanto, os estudos demonstram que a maioria dos denunciantes tem motivos para a realização das denúncias, como a integridade, o altruísmo, a preocupação pela segurança pública, a justiça e a autopreservação (Kesselheim, Studdert e Mello, 2010). Em qualquer caso, dada a importância das denúncias, deve a motivação dos denunciantes ser relevante? Deverá ser relevante se o funcionário que denuncia um supervisor está satisfeito ou não? Deverá importar se o funcionário se dá com o seu supervisor ou não? Parece que, em primeiro lugar, devemos concentrar-nos no objeto da denúncia, e não na sua natureza ou nos motivos do denunciante. De facto, esta abordagem foi adotada em várias jurisdições, sendo a Irlanda o primeiro país a reconhecer a irrelevância dos motivos associados às denúncias na sua lei (secção 5, subsecção 7 do Protected Disclosure Act de 2014). Para mais informações sobre a importância das motivações dos denunciantes, vide a Ted Talk How whistle-blowers shape history, por Kelly Richmond Pope, e o documentário Whistleblowers, realizado pela Brave New Films. Vide, igualmente, este questionário da Universidade de Greenwich.

 
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