Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico Dois: Tendências atuais, principais desafios e direitos humanos

 

Este tópico analisa as tendências contemporâneas e os principais desafios associados à crescente sobrelotação prisional, analisando os principais problemas e os desafios de viver e de trabalhar na prisão. Posteriormente, serão analisados a evolução de normas e princípios internacionais relevantes, dedicando especial atenção às Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos (Regras Nelson Mandela) (2015), que refletem um compromisso global de melhoria das condições das prisões. As perguntas centrais a ponderar nesta secção incluem: Até que ponto estão as prisões sobrelotadas? O que pode ser feito para resolver o problema da sobrelotação? Como é viver dentro das prisões? Quem vive na prisão? Qual o papel do staff prisional na melhoria da qualidade de vida na prisão? Quais os desafios de trabalhar em uma prisão? 

Sobrelotação das prisões

A taxa de condenações à pena de prisão tem estado a aumentar na generalidade dos países do mundo. Em 2018, a World Prison Brief relatou que "mundialmente, mais de 10,74 milhões de pessoas estão presas em instituições penais, quer pela aplicação de prisão preventiva, quer pela respetiva condenação ao cumprimento de pena de prisão" (Walmsley, 2018, p. 2). Note-se que a população prisional total aumentou quase 24% à escala mundial desde o ano 2000, o que - apesar de diferenças consideráveis entre e dentro dos diferentes continentes – aproxima-se ao valor estimado de nascituros, durante o mesmo período (Ibid, p.2, p. 17). 

No contexto regional, são diversos os entendimentos relativos à aplicação da pena de prisão. Entre os anos 2000 e 2015, o total da população prisional na Oceânia aumentou quase 60%, e no continente americano aumentou, no total, mais de 40% - 14% nos EUA, mais de 80% nos países da América Central e 145% nos países da América do Sul. (Reforma Penal Internacional 2018, p. 7). 

O aumento da população prisional mundial resultou em um problema agudo de sobrelotação em muitas prisões, o que corresponde a um dos fatores que mais contribui para a existência de condições prisionais deficitárias e para o tratamento desumano (Reforma Penal Internacional, 2018). 

No Manual de Estratégias para Reduzir a Sobrelotação nas Prisões (Handbook on Strategies to Reduce Overcrowding in Prisons) do UNODC é constatado que, em muitas instituições prisionais, os reclusos não têm o espaço mínimo necessário e que, em vários casos, permanecem nestes espaços apertados e sobrelotados mais de 23 horas por dia. "Em alguns ordenamentos, os problemas de sobrelotação podem ser tão agudos que os reclusos são forçados a dormir por turnos, uns em cima dos outros, e a partilhar a cama, ou mesmo atarem-se às janelas das celas para poderem dormir em pé” (2013, p. 11). Segundo os dados de 2018 da World Prison Brief, 121 dos 223 países independentes e territórios dependentes, em todo o mundo, lidam com o facto de as administrações prisionais nacionais operarem para além da sua capacidade, sendo que 25 operam para além dos 200% da sua capacidade efetiva, havendo 26 que operam entre os 150% e os 200% de tal capacidade (World Prison Brief). 

Em sua análise crítica sobre a sobrelotação prisional, a Reforma Penal Internacional ainda nota que: 

  • Em alguns países, apenas amnistias e perdões periódicos conseguem diminuir a sobrelotação prisional. Embora a aplicação destas medidas possibilite a diminuição da população prisional, a curto prazo, esses institutos não representam uma solução sustentável e viável e podem corroer a confiança da sociedade no sistema de justiça criminal. Em outros países, são levados a cabo programas dispendiosos, com vista à construção de prisões, de modo a dar resposta à necessidade de garantir uma maior capacidade dentro das prisões (Reforma Penal Internacional, 2012).
  • Alguns grupos especialmente vulneráveis são particularmente afetadas pela sobrelotação e condições das instituições prisionais. Por exemplo: as necessidades das mulheres e das crianças presas - a que normalmente se dedica pouca atenção - tendem a ser ainda mais negligenciadas em sistemas prisionais sobrelotados e sobrecarregados” (Reforma Penal Internacional, 2012). Ver também Coyle et al., 2014; Conselho Económico e Social das Nações Unidas, 2016; World Prison Brief). 

Embora não se tenha chegado a um acordo internacional sobre quais os princípios mínimos a observar em matéria de espaço físico que deve ser garantido a cada pessoa a viver na prisão, vários organismos internacionais estabeleceram recomendações sobre o espaço mínimo, por pessoa, que deve ser disponibilizado numa cela prisional (Coyle et al., 2014). Por exemplo: o Comité Internacional da Cruz Vermelha (2012) especificou que as prisões devem garantir pelo menos 5,4 m² por pessoa nas celas individuais, e 3,4 m² por pessoa no caso de celas partilhadas. Em 2015, o Comité de Prevenção da Tortura do Conselho da Europa (2015, p. 3) divulgou e atualizou as medidas mínimas necessárias que devem ser disponibilizadas a cada pessoa, no contexto das instituições prisionais, recomendando, relativamente às celas singulares, “6m² para um condenado” (área que não abarca as instalações sanitárias), devendo ainda, “no caso de celas partilhadas, ser disponibilizado 4m² por cela” (excluindo instalações sanitárias). 

Coyle e outros autores (2014, p.771) salientaram que é provável que existam problemas de sobrelotação em qualquer sistema prisional quando "as taxas de ocupação são superiores a 100%, e quanto maior for a taxa, maior será a sobrelotação". O World Prison Brief revela que um total de 121 de 205 países apresenta taxas de ocupação prisional superiores a 100% (2018). O problema da sobrelotação pode conduzir a variadas violações dos direitos humanos, a perigosas condições de vida que importam risco elevado para a saúde dos reclusos, sendo que muitas dessas pessoas estão em prisão preventiva (ver Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, 2015; Walmsley, 2017a). A sobrelotação prisional ameaça a capacidade dos sistemas prisionais de dar resposta às mais básicas necessidades humanas, tas como a qualidade da alimentação, condições sanitárias, de saúde, de alojamento, cuidados com grupos vulneráveis e atividades oferecidas aos reclusos (ver especialmente UNODC, 2013a; Coyle et al., 2018; para uma análise do impacto da sobrelotação na saúde, cf. García-Guerrero e Marco, 2012). A sobrelotação das prisões também pode conduzir ao aumento da tensão, do caos, da violência, ao surgimento de doenças infeciosas e a problemas de saúde sérios, automutilação e suicídio nas prisões, e ainda a grandes desafios na gestão prisional (Huey e McNulty, 2005; UNODC, 2013a; Coyle et al., 2018). Para além disso, a escassez de recursos e a ausência de espaço adequado para viver comprometem o conteúdo e efetividade dos programas de reabilitação, bem como o acesso dos reclusos ao mundo exterior e bem assim à educação e formação profissional (UNODC, 2013a; ver também The Huffington Post, 2012). Os docentes poderão explorar e analisar o desenvolvimento do trabalho do UNODC relativo à Reabilitação e Reintegração Social dos Prisioneiros, realizado no âmbito do Programa Global para a Implementação da Declaração de Doha. 

Presume-se muitas vezes que o aumento do número de pessoas reclusas está diretamente relacionado com o aumento da taxa de criminalidade. Todavia, a investigação que se tem vindo a realizar demonstra que não é exatamente assim, e que o aumento do crime não é a principal causa para as elevadas taxas de cominação da pena de prisão (Lappi-Seppälä, 2010; citado no UNODC, 2013a, p. 19). O Manual de Estratégias para Reduzir a Sobrelotação nas Prisões do UNODC (2013a) refere que, para além das taxas de criminalidade, outros fatores devem ser analisadas como sendo as causas subjacentes à sobrelotação das prisões, nomeadamente: 

  • o recurso excessivo à aplicação de pena de prisão preventiva;
  • o enrijecimento de políticas penais punitivas e o uso excessivo da pena de prisão;
  • leis de controle às drogas ancoradas na pena de prisão;
  • a falta de investimento financeiro na reabilitação e na prevenção da reincidência; e
  • o recurso à pena de prisão como resposta a crimes cometidos por pessoas com necessidades especiais, ou como forma de punição automática por incumprimento do pagamento de multas e de dívidas, ou por violações da liberdade condicional (UNODC, 2013a, p.35-37). 

Embora muitos fatores expliquem o aumento significativo da aplicação da pena de prisão, alguns autores têm argumentado que as políticas de "populismo penal" (penal populism)e "duras com o crime" (though on crime) conduziram a uma era de decisões judiciais duras, com cominação de penas de prisão elevadas e com o uso excessivo de penas de prisão ou também a dita “prisão em massa” (mass incarceration)(ver, por exemplo: Zimring, 2001; Roberts et al., 2003; Pratt, 2007). A investigação sobre o uso da pena de prisão perpétua – a forma mais grave de pena de prisão - demonstrou que o número total de pessoas a cumprir penas de prisão perpétua aumentou em todo o mundo de modo significativo nos últimos anos, de cerca de 261000 em 2000 para 479000 em 2014 (van Zyl Smit e Appleton, 2019, p. 97), um aumento de quase 84% em 14 anos. Em 2016, uma em cada sete pessoas nas prisões dos Estados Unidos estava a cumprir pena de prisão perpétua, muitas das quais condenadas por crimes não violentos, como crimes relacionados com drogas (Mauer e Ashely, 2018). O uso excessivo da pena de prisão perpétua foi descrito como a "causa distintiva da sobrelotação prisional" (ibid, p.5), o que também fez com que grupos que pugnam pela reforma prisional e investigadores de todo o mundo contestassem a aplicação e o alargamento da aplicação de penas de prisão perpétua (Reforma Penal Internacional et al., 2018; Appleton e van Zyl Smit, 2018; van Zyl Smit e Appleton, 2019), e defendessem a sua total abolição (Mauer e Ashley, 2018; ver também van Zyl Smit e Appleton, 2019). 

A prisão em massa e os elevados níveis de encarceramento podem pressionar os governos à reforma prisional devido à preocupação da opinião pública com as terríveis consequências da sobrelotação prisional. As preocupações centram-se nas taxas de mortalidade em ambiente prisional e nos abusos dos direitos humanos (por exemplo: Hutton, 2018); nos motins e episódios de violência nas prisões (por exemplo: Apolinario, 2018; James, 2019); no aumento dos problemas de saúde e na propagação de doenças infeciosas (por exemplo: Ayala et al., 2016), bem como os custos substanciais que derivam do encarceramento (por exemplo: Wagner e Rabuy, 2017). 

Nas últimas décadas, alguns governos, confrontados com problemas de sobrelotação, optaram pela privatização da gestão prisional, seja por meio da contratação de prestação de serviços, da entrega da administração de prisões já existentes a privados ou através da construção e gestão de novas prisões igualmente por privados. Embora o recurso a serviços privados nas prisões tenha uma longa história (por exemplo, quando os guardas prisionais cobravam honorários aos condenados para que estes tivessem acesso a provisões básicas, no século XIX), a verdade é que até finais dos anos 80 havia pouco interesse na privatização deste setor, mas os governos da Nova Direita (New Right) dos Estados Unidos, do Reino Unido e da Austrália reintroduziram-na, devido à convicção de que "a privatização e a melhor gestão podem resolver a crise das prisões, particularmente no que respeita à sobrelotação ” (Scott e Flynn, 2014, p. 114; ver também McDonald, 1994). Contudo, a privatização das prisões tem sido fortemente criticada, por razões morais e empíricas. Preponderante entre os argumentos é o de que se afigura imoral lucrar com a punição dos outros (ver Joy, 2018). Como afirmou Mohammed (2017): "Se as prisões privadas obtêm lucro da sociedade criminógena, será contrário ao interesse do negócio reduzir a criminalidade” e não haverá nenhum real incentivo para transformar ou reabilitar os presos. Os críticos também argumentaram que as prisões privatizadas são menos responsabilizáveis do que as prisões públicas, mais focadas na eficiência do que nas necessidades humanas e que só obterão lucro se o seu staff for menor em número e com pouca formação. Em vez de resolver o problema da “crise nas prisões”, os sistemas de punição conduzidos pelo lucro criam maior pressão para a expansão das prisões (Scott e Flynn, 2014; ver também Trilling, 2017; US Department of Justice, 2016; Rynne e Harding, 2016; Howard League for Penal Reform, 2014). 

Durante a década de 1980, os problemas de sobrelotação, de protestos dos presos e de aumento da violência nos Estados Unidos, levaram à construção e desenvolvimento das denominadas prisões “supermax”, uma jogada que se adequava bem à atitude “duro com o crime” (ou pró-prisão) e “a nova punitividade” (Pratt et al., 2005; ver também Ward e Werlich, 2003; Scharff-Smith, 2006). Nas novas prisões “supermax”, os indivíduos muitas vezes considerados “os piores dos piores”, eram submetidos a um rigoroso regime de isolamento, afastados dos outros presos e mantidos em celas fechadas durante 22 a 24 horas por dia, sob constante vigilância (ver, por exemplo, Human Rights Watch, 2000; Shalev, 2009; Gottschalk, 2015). Todavia, são cada vez maiores as provas que confirmam que o isolamento extremo de um regime de solitária tem um impacto significativo na saúde mental e nas competências sociais dos condenados, onde se incluem o aumento dos níveis de depressão, a automutilação, as tendências suicidas e violentas, em vez de reduzir os comportamentos problemáticos ou violentos (ver, por exemplo: Haney e Lynch, 1997; Kurki e Morris, 2001; Haney, 2003; Shalev, 2014; Casella et al., 2016). Os críticos também argumentaram que as prisões supermax representam uma violação dos direitos e proteção dos presos contra a tortura e outros tratamentos e penas cruéis, desumanos ou degradantes (ver, por exemplo: Cole, 1972; Lobel). 

O incumprimento das normas internacionais pelos sistemas prisionais e as críticas oriundas de organismos independentes ou internacionais também podem pressionar os governos a resolver o problema da sobrelotação das prisões, ou mesmo assim a pressão do próprio pessoal prisional, devido às condições de trabalho inaceitáveis e inseguras (por exemplo: Mayibongwe, 2018; ver também Centro Internacional de Estudos Prisionais – Centre for Prison Studies, 2004). Por exemplo, muitos países ratificaram o Protocolo Facultativo da Convenção contra a Tortura (OPCAT) (A/RES/57/199), que confere a organismos de controlo independentes, como o Subcomité das Nações Unidas para a Prevenção da Tortura (SPT), o direito de visitar locais de detenção, incluindo prisões e de prestar apoio na criação de “Mecanismos Nacionais de Prevenção” ou de organismos nacionais independentes. Também existem formas  de inspeção no plano regional: Por exemplo, em África, em 1996, a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos nomeou um Relator Especial para as Prisões para acompanhar as condições prisionais e assegurar a proteção dos presos ao abrigo da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. Do mesmo modo, os Estados-Membros do Conselho da Europa encontram-se sujeitos à inspeção do Comité Europeu para a Prevenção da Tortura – CPT. 

Muitos grupos de reforma prisional e organizações internacionais desenvolveram estratégias centrais para apoiar os decisores políticos e os profissionais com vista à redução da sobrelotação prisional e ao cumprimento das normas internacionais (ver, por exemplo: UNODC, 2013a; 2017a; Reforma Penal Internacional, 2012; Cruz Vermelha Internacional, 2012; Centro Internacional para o Estudo da Prisão - International Centre for Prison Studies, 2004). As principais “estratégias para reduzir a sobrelotação prisional” do UNODC (2013a, p. 44-59) incluem, inter alia, o desenvolvimento de políticas de condenação (sentencing) justas, como por exemplo: 

  • Descriminalização e despenalização;
  • Prisão para crianças como medida de ultima ratio;
  • Eliminar a previsão de obrigatoriedade de condenar sempre em um mínimo de pena;
  • Restringir o uso da pena de prisão perpétua;
  • Aplicar outras sanções;
  • Introduzir alternativas à prisão;
  • Ter em conta a capacidade das prisões para efeitos de aplicação da prisão preventiva ou de cominação de pena de prisão;
  • Rever a legislação e as políticas relacionadas com drogas;
  • Reduzir a prisão de pessoas com problemas de saúde mental;
  • Libertação por razões de humanidade e mecanismos nacionais de perdão; e,
  • Amnistias. 

O UNODC (2013a) defende ainda que, embora a criação de capacidade extra nas prisões possa ser uma solução de curto prazo para o problema da sobrelotação prisional, quaisquer esforços de longo prazo para reduzir a sobrelotação prisional devem incorporar alternativas à prisão e ser levadas a cabo no contexto de uma abordagem alargada ao sistema. O Centro Internacional de Estudos Penitenciários - Centre for Prison Studies (2004, p.1) confirma: "O aumento da capacidade do sistema prisional raramente é bem sucedido, enquanto estratégia a longo prazo. Modificar o processo penal e as políticas de condenação é um mecanismo mais eficaz”. Para uma reflexão mais aprofundada sobre esta questão, os alunos devem consultar o Módulo 7 intitulado “Alternativas à Prisão”. 

Viver na prisão

Uma característica universalmente reconhecida à prisão é o modo como sonega a vida diária de quem a integra e coloca as pessoas em um ambiente anormal, divorciados das rotinas diárias e expostos a pressões e imperativos bem diferentes. A prisão é um mundo de pernas para o ar, um ambiente composto por pessoas apenas de um sexo e com uma estrutura social invertida. A sua população reflete as desigualdades e injustiças da sociedade em geral, e as relações com o mundo exterior são mediadas por censores e bisbilhoteiros. Tornam-se mais difíceis as reações humanas e os comportamentos construtivos. O confinamento e a segurança impõem um conjunto de indignidades e de absurdos àqueles que estão confinados e aos que os confinam (Stern, 1998, p.105). 

A investigação que tenta abordar a questão de “como é viver na prisão?” e abriu a “caixa preta” (black box) da vida dentro da prisão, tem uma longa trajetória na sociologia. Durante o século XX, vários sociólogos pioneiros trouxeram à luz a experiência da vida na prisão, e evidenciaram até que ponto as prisões são poderosas instituições, capazes de ter uma forte influência sobre as pessoas confinadas (ver Clemmer, 1958; Sykes, 1958; Goffman, 1961; Mathiesen, 1965; Cohen e Taylor, 1972). A etnografia clássica de Gresham Sykes’s sobre A Sociedade dos Cativos (The Society of Captives), publicada em 1958, defendia que o ambiente prisional representava "um sistema social em que se tentava criar ou manter um controlo social total ou quase total" (Sykes, 1958, p. xiv). Este controlo total do recluso está no cerne do que Sykes (1958) definiu como os cinco "males da prisão", concretamente:

  • a perda da liberdade - a restrição drástica à circulação, e o afastamento das famílias, dos amigos e do mundo exterior;
  • a privação de bens e de serviços - a redução da posse de bens materiais, bem como do acesso a comodidades e serviços que possam ser considerados normais;
  • a privação de relações interpessoais- a negação de relações sexuais na prisão;
  • a privação de autonomia - a restrição maciça da capacidade de fazer escolhas em muitas, se não na maior parte, das coisas; e,
  • a privação da segurança - ser lançado em situações que provocam ansiedade e intimidade prolongada com outros, muitos dos quais têm um historial de comportamento violento. 

O maior estudo de Erving Goffman, Asilos (Asylums), publicado em 1961, descreve o regime prisional e outras instituições semelhantes como abrangentes ou " instituições totais" (total institutions). O trabalho de Goffman destacou os efeitos problemáticos e institucionalizantes da prisão. Definiu a instituição total como "um local de residência e de trabalho onde um grande número de indivíduos, isolados da sociedade por um período de tempo apreciável, levam, em conjunto com outros, uma vida fechada e formalmente administrada" (Goffman, 1961, p. xiii). Nas instituições totais, todas as atividades são rigorosamente programadas e executadas pelo pessoal da instituição. Como Goffman declarou, "segmentos ínfimos da linha de atuação de uma pessoa podem ser objeto de regulamentos e de decisões do staff prisional" (ibid, p. 38). O resultado é um processo de automortificação, que provoca "stress psicológico agudo", especialmente nos casos de prisão prolongada. 

Outros estudos salientaram a complexidade do impacto do confinamento e destacaram respostas diferentes entre os reclusos em função das suas circunstâncias pessoais e recursos psicossociais, bem como diferenças significativas entre contextos e instituições (ver, por exemplo: Porporino, 1990; Liebling e Maruna, 2005). Abriram-se novas linhas de investigação, introduzindo discursos de legitimação e de ordem nas prisões (Sparks, Bottoms e Hay, 1996); sobre a qualidade dos regimes prisionais (Liebling e Arnold, 2004); sobre o impacto, peso e rigidez da prisão (Crewe, 2011); sobre o impacto das instituições terapêuticas (Stevens, 2012); quanto às dores provocadas na prisão, decorrentes do género (Carlen, 1983; Walker e Worrall, 2000; Crewe et al, 2017); os males provocadas pelo espaço físico prisional (Hancock e Jewkes, 2011); o mal de ter de cumprir pena de prisão perpétua (van Zyl Smit e Appleton, 2019) e sobre os efeitos da prisão nas famílias dos presos e na comunidade em geral (Comfort, 2007; Condry e Scharff Smith, 2018). Todavia, é entre biografias de presos e coleções publicadas que se podem encontrar as descrições mais vívidas do impacto da vida prisional (ver, por exemplo: Boyle, 1984; Mandela, 1994; George, 2010; Hartman, 2013). 

Há evidências que sugerem que, embora os efeitos da prisão variem de indivíduo para indivíduo, para muitas pessoas as prisões podem produzir transformações negativas que permanecem por muito tempo, e que certas condições podem agravar (ou melhorar) essas transformações. Como Irwin e Owen afirmam, embora os fins oficiais da prisão não incluam fazer mal aos reclusos, “invariavelmente, a prisão faz-lhes mal”. Além do que vai dito, quanto mais duro ou extremo o tipo de ambiente prisional, maior o sofrimento e mais profundos os estragos provocados nas pessoas encarceradas. Condições espartanas, maus tratos, o uso da solitária e a sobrelotação podem seguramente exacerbar os efeitos negativos da prisão, bem como minar os esforços dos reclusos de adaptação e sobrevivência à vida na prisão, ou mesmo de transformação individual. Diversamente, ambientes reabilitadores e solidários terão maior probabilidade de dar resposta aos riscos e necessidades dos reclusos, de estimular os esforços tendentes à transformação e de aumentar as possibilidades de diminuir a reincidência e incrementar a segurança pública (ver Van Zyl Smit e Snacken, 2009). 

Há estudos que também demonstram que ambientes prisionais positivos, que encorajam o respeito, a humanidade e a justiça, reduzem o risco de violência, de abuso sexual e de tortura nas prisões (Modvig, 2014). Indubitavelmente, uma grande preocupação dos indivíduos a viver nas prisões é a segurança pessoal. Violência, motins e abusos de poder podem ser comuns neste contexto (ver Reforma Penal Internacional, 2018; Subcomissão para a Prevenção da Tortura, 2012). Por exemplo nos Estados Unidos, "as taxas de agressões físicas a reclusos do sexo masculino são 18 vezes superiores às taxas equivalentes registadas nos homens entre a população em geral" e, para as mulheres, as taxas são "mais de 27 vezes superiores" (Modvig, 2014, p.19). A violência sexual na prisão é difícil de avaliar devido ao estigma associado à violação e ao abuso sexual. Wolff e Shi (2011) examinaram padrões de vitimização sexual e registaram 6.974 abusos entre presos do sexo masculino e 564 entre o sexo feminino. Descobriram que 4% dos presos do sexo masculino e 22% do sexo feminino afirmaram ter sido submetidos a vitimização sexual por outros reclusos, nos seis meses anteriores. Além disso, aproximadamente 7% dos presos do sexo masculino e 8% do sexo feminino afirmaram ter sido vítimas de vitimização sexual pelo staff prisional (ver também Wolff e colegas, 2007). Apesar da proibição absoluta de tortura, ao abrigo do direito internacional (ver especialmente a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéris, Desumanos ou Degradantes), Modvig e Jaranson revelaram que “é praticada em cerca de 130 países, está espalhada e é sistematicamente aplicada em 80 a 100 países” (Modvig e Jaranson, 2004, citado por Modvig, 2014, p. 21). Outros tipos de violência na prisão incluem o suicídio, tentativas de suicídio e de automutilação, que em muitos países tendem a ser muito mais comuns na prisão do que na comunidade em geral (OMS, 2007), o que muitas vezes reflete vulnerabilidades específicas e problemas de saúde mental de muitos dos indivíduos presos, metade dos quais podem ter os efeitos exacerbados pelos efeitos da vida na prisão. 

Para compreender o impacto da cominação de uma pena de prisão, também é importante considerar o perfil e as características dos indivíduos que vivem nas prisões. Em 2018, viviam na prisão mais de 10,74 milhões de indivíduos (Walmsley, 2018). Desses, pelo menos 2,5 milhões de pessoas encontravam-se em prisão preventiva, onde também se contam os que aguardam julgamento (Walmsley, 2017a) e mais de 714 000 (6,9%) eram mulheres e meninas (Walmsley, 2017b). Embora a população prisional seja composta por indivíduos com perfis demográficos, sociais e pessoais diferentes, é possível identificar elementos comuns na população prisional no plano transnacional. A prisão é frequentemente justificada com base na proteção da sociedade de criminosos perigosos, mas as prisões estão muitas vezes repletas de pessoas pobres, vulneráveis, estigmatizadas e impotentes, que têm uma "maior probabilidade de serem indivíduos vitimizados do que representarem um perigo sério para a sociedade" (Scott e Flynn, 2014, p. 140). Como salientou Stern (1998, p. 114): "A prisão é o espelho de aumentar, que reflete e amplia os problemas sociais não resolvidos da sociedade que serve". 

A investigação tem demonstrado, de modo consistente, que as prisões de todo o mundo são compostas por indivíduos que são desproporcionalmente afetados por problemas de saúde sérios. Entre as várias jurisdições nota-se que as taxas de problema da saúde mental, dentro da prisão, são muito superiores às que ocorrem na população em geral, e que, em muitos locais, o suicídio é a principal causa de morte nas prisões (ver, por exemplo: Fazel e Baillargeon, 2011; Fazel e Seewald, 2012; Kumar e Daria, 2012; Andreoli e colegas, 2014). Como Fuller e colegas (2017, p.1) afirmaram em 2017: "prender indiciados e condenados pela prática de crimes com problemas mentais sérios é tão comum nos dias que correm que as prisões são muitas vezes denominadas "novos Asilos" (new Asylums) (ver também Chertoff et al., 2017). Além disso, um relatório do Relator Especial das Nações Unidas sobre o direito à saúde notou que: 

A própria prisão torna-se um fator determinante para a debilidade da saúde, em virtude das deficientes condições de vida, da prestação de cuidados de saúde sob vigilância e/ou da falta de acesso a cuidados de saúde, da enorme dor psicossocial e desespero associados à privação da liberdade, e da falta de tratamento de problemas de saúde pré-existentes atribuíveis às condições de vida na pobreza (Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, 2018, parágrafo 19d).

Dados do projeto “Saúde nas Prisões” (Health in Prisons) da Organização Mundial de Saúde (OMS - WHO), que recolhe dados sobre a saúde dos condenados, na grande maioria dos países europeus há mais de 20 anos, resumem alguns dos principais problemas:

  • Até cerca de 40% dos presos sofrem de um problema de saúde mental e até 15% sofrem de doenças mentais graves e persistentes, tais como esquizofrenia, bipolaridade e autismo. Mais da metade dos jovens presos tem problemas de comportamento e cerca de um terço das mulheres jovens na prisão sofrem de depressão grave.
  • As taxas de tuberculose nas prisões são 84 vezes superiores às da população em geral.
  • Muitos dos condenados que entram no ambiente prisional têm graves problemas de toxicodependência.
  • As taxas de infeção por HIV e hepatite C são muito mais elevadas no contexto prisional do que entre aqueles que vivem em sociedade.
  • Os reclusos têm sete vezes mais probabilidade de cometer suicídio do que as pessoas em liberdade.
  • Os jovens na prisão são sujeitos especialmente vulneráveis e têm 18 vezes mais probabilidades de cometer suicídio do que os que vivem em sociedade.
  • Entre 64% e 90% dos presos fumam tabaco, enquanto a taxa média de tabagismo da população em geral na Europa é de 28%.
  • As mulheres presas têm uma probabilidade muito maior comparativamente com os homens presos de ter vivido experiências traumáticas na infância, tais como abusos sexuais, mentais e físicos. Metade terá também experienciado situações de violência doméstica. Muitas mulheres na prisão são mães e geralmente as principais ou únicas cuidadoras dos seus filhos. Estima-se que cerca de 10.000 bebés e crianças na Europa sejam afetados pela condenação da mãe a uma pena de prisão (como resumido por Coyle e Fair, 2018, p.113-114; ver também OMS, 2014).

Em todo o mundo, encontram-se nas prisões números desproporcionados de pessoas pertencentes a minorias, o que muitas vezes reflete elevados níveis de exclusão social desses grupos, o legado colonial em certas regiões e legislação e práticas discriminatórias nos sistemas de justiça criminal (Reforma Penal Internacional, 2018; ver também Stern, 1998). As estatísticas dos países da América do Norte, Oceânia e da Europa demonstram claramente o que se acaba de descrever. Nos Estados Unidos, em 2014, 35% dos presos eram brancos, 38% negros e 21% hispânicos, enquanto na população em geral há 62% de brancos, 13% de negros e 17% de hispânicos (Nellis, 2016, p.4). No Canadá existem impressivas e semelhantes disparidades, onde, durante 2015/2016, adultos indígenas, que apenas representam 3% da população, representavam 26% dos presos (Reitano, 2016, p. 5). Na Austrália, em 2015, o povo Aborígene e da Ilha do Estreito de Torres correspondiam a 27% da população prisional, mas representavam apenas 2% da população adulta (Coyle et al., 2018, p. 775). Na Nova Zelândia, em 2014, os Maori representavam 15% da população, mas eram quase 51% da população prisional (ibid). Nos países europeus, uma marca distintiva é o significativo equilíbrio entre presos nacionais e estrangeiros. Em um relatório de 2007, Re sublinhava o facto de a percentagem média de presos estrangeiros ou de origem estrangeira na Europa exceder em 30% a população prisional, que compreende cerca de 7% da população europeia (Re, 2007). 

Também existem provas evidentes que apontam para enormes níveis de exclusão social e económica entre a população reclusa. Um relatório publicado em 2002 pela Social Exclusion Unit (SEU) no Reino Unido, descreveu níveis alarmantes de exclusão social e educacional entre a população prisional na Inglaterra e no País de Gales. Comparativamente com a população nacional, os presos adultos tinham:

  • 13 vezes maior probabilidade de ter estado ao cuidado do Estado quando criança;
  • 10 vezes maior probabilidade de absentismo escolar;
  • 13 vezes maior probabilidade de ter estado desempregado;
  • 2.5 vezes maior probabilidade de ter um membro da família condenado pela prática de crime(s);
  • 6 vezes maior probabilidade de ter sido pai ainda jovem; e,
  • 15 vezes maior probabilidade de ser portador de HIV (SEU, 2002, p. 6). 

Os níveis de educação básica dos presos também revelaram-se significativamente diferentes dos da população em geral. A SEU (2002, p. 6) reportou que: 80% dos reclusos tinham a capacidade de escrita de uma criança de onze anos; 65% dos reclusos tinham conhecimentos de matemática ao nível de uma criança de onze anos; e 50% dos reclusos tinham a capacidade de leitura de uma criança de onze anos. Cerca de 60-70% por cento dos presos condenados consumiam drogas antes de entrarem no sistema prisional. Mais de 70% sofriam de pelo menos dois transtornos mentais. Além disso, 20% dos presos masculinos e 37% das reclusas tinham tentado cometer suicídio no passado (ibid). Para pessoas com idades entre os 18-20 anos, a situação era ainda pior - as competências básicas, a taxa de desemprego e o contexto de exclusão escolar deste grupo mais jovem eram todas "piores do que a de um terço da população prisional mais velha" (ibid). Estes números revelam que muitos presos tiveram uma vida de privações e de exclusão social (ver também Anderson e Cairns, 2011). Estudos de outros países sugerem que a situação em Inglaterra e no País de Gales, tal como descrito no SEU, está longe de ser única. É um padrão que pode ser encontrado entre a população prisional à escala mundial (ver, por exemplo, Conselho das Nações Unidas para os Direitos Humanos, 2009; Guthrie et al., 2013; Gottschalk, 2015; Jacobson et al., 2017). 

As mulheres representam menos de 7% do total da população prisional mundial, mas a proporção de mulheres e meninas detidas em todo o mundo aumentou 53% entre 2000 e 2017, ao mesmo tempo que a população mundial masculina aumentou cerca de 20% (Walmsley, 2017b). Em certas regiões, o aumento significativo da população prisional feminina deve-se, em grande medida, a legislações duras em matéria de crimes relacionados com drogas. Um relatório da Comissão dos Direitos Humanos (2017, p. 128) observou que "uma elevada percentagem de mulheres [presas] no continente Americano foram encarceradas pela prática de crimes não violentos relacionados com droga e que uma elevada percentagem delas se encontrava em prisão preventiva" (ver também Comissão Interamericana das Mulheres – Inter-American Comission of Women, 2014; Consórcio Internacional para a Droga - International Drug Policy Consortium, 2013). É também importante notar que a maioria das mulheres presas são "primárias ou acusadas pela prática de crimes leves e não violentos, não representando qualquer perigo para a sociedade e, provavelmente, nem sequer deveriam estar na prisão" (Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, 2018, parágrafo 70). Além disso, o Manual sobre Mulheres e Prisões do UNODC (2014) revela que muitas mulheres que acabam na prisão foram física ou sexualmente abusadas e que, na maioria dos casos, as suas necessidades são muito diferentes daquelas que são evidenciadas pelos presos do sexo masculino. Além disso, a maioria delas são as únicas cuidadoras dos filhos. O relatório assinala que as mulheres condenadas estão frequentemente presas "devido à sua pobreza e incapacidade para pagar multas. Uma grande percentagem dessas mulheres necessita de tratamento para transtornos mentais ou para a dependência química, ao invés de estarem isoladas da sociedade. Muitas são elas próprias vítimas, mas estão presas devido a legislação e práticas discriminatórias" (UNODC, 2014, p.4). Para mais informações sobre as mulheres no sistema de justiça penal, ver o Módulo 9 desta série de módulos universitários da E4J. Para informações sobre as crianças no sistema de justiça criminal, ver o Módulo 13 nesta Série de Módulos Universitários da E4J.

Tendências globais quanto a prisão de mulheres

As mulheres e as meninas representam cerca de 7% da população prisional global... A população prisional feminina mundial aumentou cerca de 53% desde 2000. Isto representa um aumento significativo em comparação com a população masculina que aumentou 20% no mesmo período.

As taxas de prisão femininas aumentaram acentuadamente nos últimos anos no Brasil, Indonésia, Filipinas e Turquia, ao passo que no México, Rússia, Tailândia e Vietname foram registadas diminuições substanciais. A África continua a registar o menor aumento de população prisional feminina, ao passo que as Américas, a Ásia e a Oceânia registaram, em geral, aumentos acentuados. (Reforma Penal Internacional 2018, p. 16).

Devido a leis duras em matéria de condenação e às políticas "duras contra o crime" (tough on crime), o aumento do número de presos condenados a penas longas de prisão e à prisão perpétua em todo o mundo fez com que muitas prisões se tornassem a casa de um número crescente de pessoas idosas e de doentes que pouco risco apresentam para a segurança pública. O número de presos idosos tornou-se um problema de monta nos Estados Unidos, onde se encontra o maior número de pessoas condenadas à pena de morte à escala global (van Zyl Smit e Appleton, 2019; Appleton e van Zyl Smit, 2018). Segundo um relatório da American Civil Liberties Union (ACLU), de 2012, entre 1995 e 2010, o número de presos com 55 anos ou mais quadruplicou e estima-se que, em 2030, um terço dos presos terá mais de 55 anos de idade. Para além disso, os reclusos envelhecem a um ritmo significativamente mais rápido do que o da população em geral, pelo que a sua idade física é superior à idade média da população em liberdade. Isto deve-se a problemas de saúde preexistentes ou a problemas de saúde que se desenvolvem como resultado da falta de cuidados de saúde adequados na prisão e bem assim devido ao elevado stress de viver atrás das grades (ACLU, 2012, p. v). Chen (2017) salienta que, em algumas prisões, "é menos provável que se encontre algum condenado perigoso do que ver alguém que poderia ser seu avô". Mas mesmo que mal consigam andar, muito menos cometer outro crime, os presos idosos muitas vezes permanecem presos toda a vida" (Chen, 2017). 

Em vez de albergar os indivíduos mais perigosos, as prisões estão ocupadas sobretudo pelos homens e mulheres mais vulneráveis e estigmatizados da sociedade, com infâncias difíceis, baixos níveis de escolaridade, elevadas taxas de desemprego, poucas redes sociais positivas, tudo isto agravado por complicados problemas de droga e de saúde. Sem dúvida que estas vulnerabilidades comprometerão a capacidade do indivíduo para fazer face às tensões, exigências e, por vezes, aos perigos da prisão, o que também representa um desafio para os sistemas prisionais conseguirem trabalhar eficazmente para dar resposta a esses problemas, facultar sistemas de saúde adequados e apoiar o processo de reabilitação e de reintegração. Mais informações sobre reclusos com necessidades especiais são fornecidas no Módulo 10 sobre Género no Sistema de Justiça Penal e no Módulo 1 sobre Padrões e Normas das Nações Unidas em matéria de Prevenção do Crime e Justiça Penal.

Trabalhar nas prisões

Em todo o mundo, o staff prisional está em permanente contacto com os presos e desempenham um papel fundamental na qualidade de vida das prisões, na aplicação da legislação nacional e das normas internacionais e na realização dos objetivos gerais da justiça penal. O staff prisional enfrenta o desafio de ter de atuar de modo a articular os três grandes objetivos da sua função, concretamente, proporcionar aos presos ao seu cuidado uma privação de liberdade a salvo, segura e humana. Por um lado, têm obrigação de manter a segurança e o controlo, por outro, é-lhes exigido que auxiliem os presos a enfrentar o seu comportamento criminoso e a preparar a sua libertação (Liebling and Price, 2001). No seu Manual de staff prisional de 2018, Coyle and Fair (2018, p.17) observaram que o papel do agente prisional é: 

  • "tratar os presos de uma forma digna, humana e justa
  • garantir a segurança de todos os presos
  • garantir que os presos perigosos não se evadam
  • garantir a ordem e o controlo nas prisões
  • dar aos presos a oportunidade de utilizar positivamente o seu tempo na prisão, de modo a poderem reintegrar-se na sociedade quando forem libertados". 

Pôr isto em prática de maneira profissional exige do staff prisional integridade, para além de um conjunto de competências e qualidades específicas. Com efeito, podemos afirmar que o trabalho do staff prisional está entre os mais complexos e exigentes no âmbito do sistema de justiça penal. Os padrões internacionais exigem que os agentes prisionais sejam funcionários públicos e que recebam remuneração adequada e formação específica ,antes de iniciar a atividade profissional e ao longo da sua carreira (ver Regras 74 e 75 das Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento dos Reclusos (Regras de Nelson Mandela, 2015 – no quadro infra). Os agentes prisionais que estão na linha de frente e em contacto diário com os presos devem ser recrutados com especial cuidado. Para assegurar elevados padrões na prisão e incentivar candidatos adequados, a administração prisional deve desenvolver "políticas de recrutamento ativas", tornando claras a importância e a natureza do trabalho nas prisões, bem como os padrões de educação e as qualidades pessoais que são essenciais para a função (Coyle and Fair, 2018, p. 24).

Regras Nelson Mandela (2015), Regra 74

1. A administração prisional deve selecionar cuidadosamente o pessoal de todas as categorias, dado que é da sua integridade, humanidade, aptidões pessoais e capacidades profissionais que depende a boa gestão dos estabelecimentos prisionais.

2. A administração prisional deve esforçar-se, permanentemente, por suscitar e manter no espírito do pessoal e da opinião pública a convicção de que esta missão representa um serviço social de grande importância; para o efeito, devem ser utilizados todos os meios adequados para esclarecer o público.

3. Para a realização daqueles fins, os membros do pessoal devem desempenhar funções a tempo inteiro na qualidade de profissionais do sistema prisional, devem ter o estatuto de funcionários do Estado e ser-lhes garantida, por conseguinte, segurança no emprego dependente apenas de boa conduta, eficácia no trabalho e aptidão física. A remuneração deve ser suficiente para permitir recrutar e manter ao serviço homens e mulheres com- petentes; as regalias e as condições de emprego devem ser determinadas tendo em conta a natureza penosa do trabalho.  

Regras Nelson Mandela (2015), Regra 75

1. Os funcionários devem possuir um nível de educação adequado e deve ser-lhes proporcionadas condições e meios para poderem exercer as suas funções de forma profissional.

2. Devem frequentar, antes de entrar em funções, um curso de formação geral e específico, que deve refletir as melhores e mais modernas práticas, baseadas em dados empíricos, das ciências penais. Apenas os candidatos que ficarem aprovados nas provas teóricas e práticas devem ser admitidos no serviço prisional.

3. Após a entrada em funções e ao longo da sua carreira, o pessoal deve conservar e melhorar os seus conhecimentos e competências profissionais, seguindo cursos de aperfeiçoamento, organizados periodicamente.

Embora o trabalho na prisão seja um serviço público importante e crucial para o ideal reformador, em muitas partes do mundo ele é notoriamente subvalorizado. O staff prisional tende a receber apoio, formação, salários e condições de trabalho inadequados em comparação com outras funções públicas, tais como as polícias ou os profissionais da saúde. Os dados sugerem que, em todo o mundo, há variações significativas no recrutamento e na formação do staff prisional, desde, por exemplo, um curso de sete semanas em Victoria, na Austrália, a um curso de formação básica de doze meses no Estado indiano de Maharashtra, até um curso superior de dois anos na Noruega (Reforma Penal Internacional, 2016). Do mesmo modo, há uma grande variação nos níveis de remuneração e nos padrões de trabalho dos agentes prisionais, que podem muitas vezes ser muito inferiores aos de outras profissões públicas. O UNODC (2010, p. 58) declarou: 

Infelizmente ... o estatuto social do pessoal dos estabelecimentos prisionais é muito baixo em muitos países. É dedicada pouca atenção ao seu recrutamento e formação. A larga maioria não terá escolhido a carreira nos serviços prisionais, i.e., podem ter sido militares, pessoas que não conseguiram encontrar outro emprego, etc. Os seus salários são muitas vezes inadequados, o que contribui para a insatisfação e práticas de corrupção. 

As prisões podem muitas vezes ser locais de trabalho stressantes e por vezes perigosos. Por exemplo, de acordo com o Bureau of Labour Statistics dos Estados Unidos, o staff prisional tem uma das mais elevadas taxas de violência no local de trabalho. Em 2011, para cada 10.000 agentes prisionais a trabalhar em tempo inteiro, foram registadas 254 agressões e lesões graves, o que significa 36 vezes a taxa de todos os trabalhadores americanos (Konda et al., 2013). Um estudo canadiano concluiu que, em média, um agente prisional está exposto a 28 "incidentes críticos" ou eventos traumáticos no decurso da carreira, incluindo suicídios, sequestros, assassinatos ou agressões, e que "o stress no trabalho conduz a níveis excessivamente elevados de stress pós-traumático entre os guardas prisionais canadianos" (Purdon, 2015). E, no Reino Unido, foi evidenciado que o número de agressões graves ao pessoal prisional aumentou 45% em dois anos, de um total de 374 em 2010, para 543 em 2012 (BBC News, 2014). 

Há estudos que revelam que prisões mais seguras e menores taxas de agressão não estão associadas a regimes de controlo mais rigorosos e severos, mas antes com relações positivas e de colaboração entre o staff prisional e os presos. Os dados indicam que "prisões mais seguras exigem um elevado nível de competências por parte do pessoal, que permita a construção de relações positivas e colaborativas com o maior número possível de presos e que permita também estar a par das preocupações que influenciam os seus comportamentos diários " (McGuire, 2018, p. 7). O Manual de Gestão de Incidentes Prisionais das Nações Unidas (2013, p. 21-22) afirma: 

Os agentes prisionais precisam compreender que a interação com os presos, de maneira humana e equitativa, aumenta a segurança e a ordem nas prisões.(...) Independentemente da ratio de pessoal, cada contacto entre o staff e os reclusos reforça a relação entre ambos, que deve ser positiva, baseada na dignidade e no respeito mútuo no que respeita à forma como as pessoas se tratam,  em cumprimento aos princípios internacionais em matéria de direitos humanos e ao processo justo. 

Isto está muitas vezes associado ao conceito de segurança dinâmica (dynamic security). Enquanto a segurança física (physical security) se reporta à infraestrutura e aos equipamentos das instalações prisionais (e.g., muros, barreiras e fechaduras) e a segurança processual (procedural security) se relaciona com procedimentos normalizados e consistentemente aplicados (e.g., sobre como efetuar buscas, contar os presos, etc.), estes dois elementos são, por si só, insuficientes para garantir a segurança prisional. Na verdade, "a segurança também depende da existência de um grupo de alerta do staff prisional que promova relações positivas entre esse staff e os presos; um pessoal que tenha consciência do que se passa na prisão; que garanta tratamento justo e sensação de "bem-estar" entre os presos; e pessoal que assegure que os presos se mantenham ocupados na execução de atividades construtivas e com propósito, que contribuam para a sua futura reintegração na sociedade" (UNODC 2015, Manual sobre Segurança Dinâmica e Inteligência Prisional, p. 29). Neste sentido, a segurança dinâmica também é descrita como um "conceito de staff prisional que observa e interage, ativa e frequentemente, com os presos, para melhor compreender os, e se conscientizar acerca dos, presos e analisar os riscos que representam (Nações Unidas, 2013, p.10). O elemento central para a segurança dinâmica é uma boa relação profissional entre o staff e os reclusos. Trata-se uma abordagem de segurança que visa assegurar que o equilíbrio de poder entre staff e reclusos não seja percebida como uma provocação ou forma de punição. Através do desenvolvimento de relações respeitosas entre staff e reclusos, e uma compreensão das relações entre os presos, e entre presos e o staff prisional, o dito staff pode mais facilmente antecipar problemas, diminuir os riscos para a segurança e repor a ordem através do diálogo e da negociação. O contacto e a interação regulares com os reclusos permitem ao staff reagir a situações diferentes da norma e reconhecer uma ameaça à segurança em fases muito precoces. 

Tem havido um amplo reconhecimento do significado e da essencialidade da existência de boas relações entre o staff e os reclusos para manter a ordem, a justiça e regimes construtivos (ver Liebling and Price, 2001). Um equilíbrio adequado entre as seguranças física, processual e dinâmica são essenciais para manter um tratamento incólume, seguro e humano nas prisões. Como se afirma no Manual de Gestão de Incidentes Prisionais (2013, p.10): 

Sem infraestruturas de segurança mínimas, os membros do staff ficam limitados na sua capacidade de controlar e gerir eficazmente os presos, especialmente onde exista sobrelotação. Do mesmo modo, a segurança das infraestruturas de segurança tem importância limitada se as capacidades e competência do staff forem inadequadas. Esta interdependência foi frequentemente salientada a propósito de incidentes prisionais graves. É muitas vezes afirmado que a prevenção de evasões e de incidentes é conseguida por meio de staff prisional vigilante e não através de grades e de fechaduras. 

Mas para ser eficaz, a segurança dinâmica precisa de ser aceita pela gestão prisional e carece de ser acompanhada de políticas e procedimentos adequados, bem como por recrutamento e formação adequados do pessoal. A evidência sugere que, em algumas prisões, a interação entre o pessoal e os presos é reduzida ao mínimo ou até desencorajada, especialmente em estabelecimentos de alta segurança ou onde existam problemas quanto ao número de staff prisional ou de sobrelotação (ver UNODC, 2015; Reforma Penal Internacional, 2013). 

Note-se que a sobrelotação prisional pode ter um enorme impacto no trabalho do pessoal prisional e afetar negativamente todos aqueles que vivem e trabalham nas prisões. A falta de trabalhadores em número ajustado ao número de presos, pode levar ao aumento dos níveis de tensão entre os presos e entre os presos e o staff prisional, bem como aumentar os riscos de violência, de motins e de outras desordens como forma de protesto contra as condições na prisão (ver Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, 2015). Pode prejudicar a capacidade do staff prisional para manter um ambiente prisional seguro e reabilitador. Coloca o staff prisional em condições extremamente difíceis, por vezes até perigosas, que podem provocar elevados níveis de stress entre os trabalhadores, e bem assim o surgimento de doenças e até mesmo burnout (Reforma Penal Internacional, 2016). Além disso, como referido acima, recursos limitados podem levar a um tratamento falho dos presos e têm sérias implicações nos direitos humanos das pessoas privadas de sua liberdade. 

Princípios e normas internacionais relativos à gestão das prisões e ao tratamento dos presos

Ao longo deste módulo tornou-se claro que, nas últimas décadas, a comunidade internacional fez esforços significativos para enfrentar o desafio de reformar as prisões e desenvolver abordagens eficazes, éticas e humanas, tanto a respeito do recurso à prisão como da gestão prisional. Nesta secção, analisamos mais profusamente essa evolução, com especial enfoque nas normas e padrões internacionais que se têm por relevantes para melhorar os sistemas prisionais e para reduzir os males da prisão. 

Direitos dos reclusos

Os indivíduos são encaminhados à prisão como (em inglês, as)punição, não para (for)punição. Aqueles que pugnam pela reforma prisional e a comunidade internacional há muito que reconheceram que os presos são seres humanos e que, por isso, lhes devem ser reconhecidos os mesmos direitos e liberdades fundamentais. Como afirmaram Coyle e colegas (2016, p.72): 

As pessoas que estão detidas ou presas não deixam de ser seres humanos, independentemente da gravidade do crime de que tenham sido acusadas ou condenadas. O tribunal ou outro órgão judicial competente que tenha tomado contacto com o caso determinou que devem ser privados da liberdade, não que perderam a humanidade. 

Por definição, os direitos humanos são aplicáveis a todos os seres humanos. Como qualquer outro ser humano, os presos têm direito ao reconhecimento dos seus direitos. Embora este entendimento tenha estado na base dos esforços dos grupos de reforma prisional há mais de dois séculos, foi durante o período pós Segunda Guerra Mundial que o reconhecimento dos presos como "detentores de direitos humanos" se tornou cada vez mais proeminente, tanto a nível nacional como internacional (van Zyl Smit, 2010, p. 507). Com efeito, desde o final da Segunda Guerra Mundial, emergiu um conjunto significativo de normas e de padrões internacionais relacionados com a prevenção da criminalidade e a justiça penal (ver UNODC, 2006). Embora os principais tratados internacionais relativos aos direitos humanos, tais como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Resolução GA 61/295), o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (Resolução GA 2200A (XXI)), a Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos e Degradantes (Resolução GA 39/46), e a Convenção sobre os Direitos da Criança (Resolução AG 44/25) contenham referências ao tratamento das pessoas que se encontram privadas de liberdade, há várias normas e padrões internacionais que se centram especificamente na gestão prisional e no tratamento dos reclusos. Algumas dessas normas são enumeradas no quadro infra.

Normas internacionais relativas ao tratamento dos reclusos

Entre as normas e diretrizes que se relacionam diretamente com a melhoria das condições das prisões e o modo de tratamento dos presos, são centrais as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos (SMRs), adotada pela primeira vez em 1955 pelo Congresso para a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Ofensores. Embora não sejam juridicamente vinculativas, as SMRs foram aprovadas pelos Estados-Membros em 1957, e tornaram-se "as normas mínimas universalmente reconhecidas para a gestão das instituições prisionais e o tratamento dos reclusos, e têm tido uma grande importância e influência no desenvolvimento de leis, políticas e práticas prisionais nos Estados-Membros em todo o mundo" (UNODC, 2017a, p.1; ver também Rodley, 2011). Em 2015, o conjunto de normas foi revisto e atualizado com o propósito de incorporar os desenvolvimentos do direito internacional e da ciência prisional. As agora revistas Regras Mínimas da ONU para o Tratamento dos Reclusos são atualmente conhecidas como Regras Nelson Mandela, em honra do legado do falecido Presidente da África do Sul, um empenhado defensor da reforma prisional, que "teve de passar 27 anos na prisão durante a sua luta pelos direitos humanos, pela democracia e pela promoção de uma cultura de paz" (UNODC, 2017a, p.1; ver também Mandela, 1994). 

Regras de Nelson Mandela

As Regras de Nelson Mandela foram aprovadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em Dezembro de 2015. As Observações Preliminares às Regras definiram os objetivos que as Regras visam alcançar e como devem ser interpretadas, reconhecendo a variedade de condições e contextos legais, sociais, económicos e geográficos que existem em todo o mundo.

Observação preliminar 1

As regras que a seguir se enunciam não pretendem descrever em pormenor um modelo de sistema prisional. Procuram, unicamente, com base no consenso geral do pensamento atual e nos elementos essenciais dos sistemas contemporâneos mais adequados, estabelecer o que geralmente se aceita como sendo bons princípios e práticas no tratamento dos reclusos e na gestão dos estabelecimentos prisionais. 

Observação preliminar 2

1. Tendo em conta a grande variedade de condicionalismos legais, sociais, económicos e geográficos em todo o mundo, é evidente que nem todas as regras podem ser aplicadas em todos os locais e em todos os momentos. Devem, contudo, servir para estimular esforços constantes com vista a ultrapassar dificuldades práticas na sua aplicação, na certeza de que representam, no seu conjunto, as condições mínimas aceites como adequadas pela Organização das Nações Unidas.

2. Por outro lado, as regras abrangem uma área relativamente à qual o pensamento evolui constantemente. Não visam impedir experiências e práticas, desde que as mesmas sejam compatíveis com os princípios e tentem incrementar a realização dos objetivos das regras no seu conjunto. Dentro deste espírito, a administração prisional central poderá sempre justificar uma autorização de afastamento das regras.

As Regras (2015) abordam as questões centrais do dia a dia na prisão e constituem um complemento valioso e muito mais pormenorizado dos princípios gerais contidos nas Convenções juridicamente vinculativas. Para impulsionar o recurso às Regras de Nelson Mandela (2015), em todo o mundo, e para auxiliar os países a aplicá-las na prática, o UNODC elaborou uma Estratégia Global para Enfrentar os Desafios das Prisões, centrada (a) na redução do âmbito de aplicação das penas de prisão, (b) na melhoria das condições prisionais e (c) no apoio a programas de reinserção social dos reclusos, incluindo iniciativas pós- libertação. Nas palavras de Yury Fedotov, Diretor Executivo do UNODC: 

Nos nossos esforços para tornar as sociedades mais resilientes ao crime e para promover a coesão social e o Estado de direito, não podemos descurar os que se encontram na prisão. Devemos lembrar-nos que os presos continuam a fazer parte da sociedade e devem ser tratados com o devido respeito à sua dignidade enquanto seres humanos. Convido os países, as organizações internacionais e a sociedade civil a tornarem as Regras de Nelson Mandela uma realidade para os presos em toda a parte (UNODC, 2016, p. 17). 

Relevantemente, o UNODC publicou uma Checklist de Mecanismos Internos de Controlo das Regras de Nelson Mandela (2017a), que oferece uma ferramenta prática e útil para os países de todo o mundo avaliarem o cumprimento das Regras de Nelson Mandela de uma forma sistemática e mensurável. A checklist,ou lista de controlo, foi estruturada em torno de sete questões principais, 36 resultados esperados e 240 indicadores correspondentes, abrangendo "os aspetos mais importantes das prisões à luz das Regras de Nelson Mandela" (UNODC, 2017a, p.7). As questões principais encontram-se destacadas no quadro infra.

Temáticas abordadas na checklist

Princípios Básicos de tratamento

Regras de particular relevância:

Regra 1

Todos os reclusos devem ser tratados com o respeito inerente ao valor e dignidade do ser humano. Nenhum recluso deverá ser submetido a tortura ou outras penas ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e deverá ser protegido de tais atos, não sendo estes justificáveis em qualquer circunstância. A segurança dos reclusos, do pessoal do sistema prisional, dos prestadores de serviço e dos visitantes deve ser sempre assegurada.

Regra 3

A detenção e quaisquer outras medidas que excluam uma pessoa do contacto com o mundo exterior são penosas pelo facto de, ao ser privada da sua liberdade, lhe ser retirado o direito à autodeterminação. Assim, o sistema prisional não deve agravar o sofrimento inerente a esta situação, exceto em casos pontuais em que a separação seja justificável ou nos casos em que seja necessário manter a disciplina.

Salvaguardas

Regras de particular relevância:

Regra 54

Todo o recluso, no momento da admissão, deve receber informação escrita sobre:

(a) A legislação e os regulamentos do estabelecimento prisional e do sistema prisional;

(b) Os seus direitos, inclusive os meios autorizados para obter informações, acesso a assistência jurídica, incluindo o apoio judiciário, e sobre procedimentos para formular pedidos e reclamações;

(c) As suas obrigações, incluindo as sanções disciplinares aplicáveis; e

(d) Todos os assuntos que podem ser necessários para se adaptar à vida no estabelecimento.

Regra 83

1. Deve haver um sistema duplo de inspeções regulares nos estabelecimentos e serviços prisionais:

(a) Inspeções internas ou administrativas conduzidas pela administração prisional central;

(b) Inspeções externas conduzidas por um órgão independente da administração prisional, que pode incluir órgãos internacionais ou regionais competentes.

2. que os estabelecimentos prisionais sejam administrados de acordo com as leis, regulamentos, políticas e procedimentos vigentes, para a prossecução dos objetivos dos serviços prisionais e correcionais e para a proteção dos direitos dos reclusos.

Condições materiais da reclusão

Regras de particular relevância:

Regra 13

Todos os locais destinados aos reclusos, especialmente os dormitórios, devem satisfazer todas as exigências de higiene e saúde, tomando-se devidamente em consideração as condições climatéricas e, especialmente, a cubicagem de ar disponível, o espaço mínimo, a iluminação, o aquecimento e a ventilação.

Segurança, ordem e disciplina 

Regras de particular relevância:

Regra 43

Em nenhuma circunstância devem as restrições ou sanções disciplinares implicar tortura, punições ou outra forma de tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. (…).

Regra 35

A ordem e a disciplina devem ser mantidas com firmeza, mas sem impor mais restrições do que as necessárias para a manutenção da segurança e da boa organização da vida comunitária.

Regime Prisional

Regras de particular relevância:

Regra 4

1. Os objetivos de uma pena de prisão ou de qualquer outra medida restritiva da liberdade são, prioritariamente, proteger a sociedade contra a criminalidade e reduzir a reincidência. Estes objetivos só podem ser alcançados se o período de detenção for utilizado para assegurar, sempre que possível, a reintegração destas pessoas na sociedade, após a sua libertação, para que possam levar uma vida autossuficiente e de respeito para com as leis.

2. Para esse fim, as administrações prisionais e demais autoridades competentes devem proporcionar educação, formação profissional e trabalho, bem como outras formas de assistência, apropriadas e disponíveis, incluindo aquelas de natureza reparadora, moral, espiritual, social, desportiva e de saúde. Estes programas, atividades e serviços devem ser facultados de acordo com as necessidades individuais de tratamento dos reclusos. 

Cuidados de saúde

Regras de particular relevância:

Regra 24

1. A prestação de serviços médicos aos reclusos é da responsabilidade do Estado. Os reclusos devem poder usufruir dos mesmos padrões de serviços de saúde disponíveis à comunidade e ter acesso gratuito aos serviços de saúde necessários, sem discriminação em razão da sua situação jurídica.

2. (...)

Funcionários das instituições prisionais 

Regras de particular relevância:

Regra 74

1. A administração prisional deve selecionar cuidadosamente o pessoal de todas as categorias, dado que é da sua integridade, humanidade, aptidões pessoais e capacidades profissionais que depende a boa gestão dos estabelecimentos prisionais.

(...) 

Regra 77

Todos os membros do pessoal devem, em todas as circunstâncias, comportar-se e desempenhar as suas funções de maneira a que o seu exemplo tenha boa influência sobre os reclusos e mereça o respeito destes.

Em conformidade com as garantias acima referidas, há uma aceitação crescente em todo o mundo de que os procedimentos a observar nos sistemas prisionais devem estar regulados e devem ser monitorados de modo a mitigar os riscos de abusos, o que pode suceder nomeadamente através de mecanismos formais e independentes. A regra 57 das Regras de Nelson Mandela (2015) estabelece: 

1. Todo o pedido ou reclamação deve ser prontamente apreciado e respondido sem demora. Se o pedido ou a reclamação for rejeitado, ou no caso de atraso indevido, o reclamante deve ter o direito de apresentá-lo à autoridade judicial ou a outra autoridade.

2. Devem ser criados mecanismos de salvaguarda para assegurar que os reclusos possam formular pedidos e reclamações de forma segura e, se solicitado pelo reclamante, de forma confidencial. O recluso (...) não deve ser exposto a qualquer risco de retaliação, intimidação ou outras consequências negativas como resultado de um pedido ou reclamação.

3. Alegações de tortura ou outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes devem ser imediatamente apreciadas e devem originar uma investigação rápida e imparcial, conduzida por uma autoridade nacional independente (...). 

A OPCAT (A/RES/57/199) exige a possibilidade de organismos de controlo independentes visitarem as prisões dos Estados-Membros, com o objetivo de prevenir a tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes. Em muitos países, as inspeções, ombudsmen, tribunais, comissões e outros organismos trabalham para supervisionar o tratamento dos presos, o seu contacto com o mundo exterior, as condições em que são mantidos, a natureza dos procedimentos disciplinares e de apresentação de queixas, a disponibilização de programas de reabilitação, o seu acesso a cuidados de saúde e as condições de trabalho do staff prisional (van Zyl Smit e Appleton, 2019). Além disso, a criação de tratados e normas regionais, bem como o papel das instituições judiciais regionais são úteis para avaliar a aplicação e a previsão dos direitos dos reclusos em diferentes ordenamentos (ver van Zyl Smit e Snacken, 2009; Rodley, 2011; Snacken, 2015).

Tratados e Princípios regionais

 

Órgãos judiciais regionais

Em reconhecimento das necessidades específicas e vulnerabilidades das mulheres e meninas na prisão, em 2010 a Assembleia Geral adotou as Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras (Regras de Banguecoque) (2010). As Regras preveem orientações para reduzir a prisão desnecessária, indicando alternativas à prisão sensíveis às questões de género; e estabelece normas sobre vários aspetos da prisão de mulheres, tais como cuidados de saúde sensíveis às questões de género, medidas a tomar durante buscas pessoais, medidas para proteger as prisioneiras de violência, incluindo violência sexual e de género (VSDG), e a satisfação das necessidades das crianças que estão na prisão com as suas mães. Estas regras são analisadas com maior pormenor no Módulo 9 sobre Género no Sistema de Justiça Criminal.

Note-se que as Regras de Banguecoque (2010) baseiam-se em normas e padrões internacionais existentes que se aplicam a todos os reclusos indiscriminadamente e destinam-se a complementar as Regras de Nelson Mandela (2015). Além disso, algumas das Regras de Banguecoque abordam questões aplicáveis tanto a homens como a mulheres presos, incluindo as questões relacionadas às responsabilidades parentais e alguns serviços médicos.

 
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