Este módulo é um recurso para professores 

 

Questões chave

 

A sociedade necessita de ética? Podemos vislumbrar uma sociedade sem ética? Estas perguntas abordam a importante relação entre ética e sociedade, e são influenciadas por outras questões fundamentais como: 

  • Será a ética inerente aos seres humanos e, portanto, incorporada na sociedade (o que implicaria que as leis da natureza são universais e eternas, e podem ser descobertas pela razão)?
  • Será a ética uma construção humana e, portanto, dependente dos seus criadores (e, consequentemente, estará sujeita ao contexto social e constantes mudanças)?
  • Será o estudo da ética e do seu papel na sociedade, importante para os seres humanos? 

O conceito de “sociedade” é um dos mais difundidos de todos, e este Módulo investiga diferentes definições de sociedade. Uma das muitas definições no dicionário considera a sociedade“ uma comunidade, nação ou amplo grupo de pessoas com tradições, instituições, atividades e interesses coletivos comuns” (Merriam-Webster).

Muito embora às vezes façamos referência à sociedade global, existem muitas sociedades distintas que são definidas de maneiras diferentes (às vezes de forma controversa) com base em fronteiras geográficas, culturais e outras.

Uma das maneiras mais populares de dissecar conceitualmente sociedade é fazer a distinção entre três setores: o setor público (governo), o setor privado (empresas comerciais) e a sociedade civil (organizações sem fins lucrativos).

Apesar de o conceito de ética também poder ser questionado, o ponto de partida neste Módulo é reconhecer e recapitular as principais teorias éticas sem perguntar a meta-questão: existe a ética? 

Este Módulo foca principalmente os conceitos ocidentais de sociedade e ética, mas também reconhece a relevância de perspectivas não ocidentais, como as filosofias oriental, africana ou latino-americana. Os professores que desejem explorar a filosofia oriental com mais detalhe são encaminhados para um debate introdutório de James Fieser (2017). Em oposição à abordagem mais secular da filosofia ocidental, o hinduísmo, o budismo, o confucionismo e o taoísmo oferecem abordagens alternativas e explicações para o conceito de sociedade. Embora seja difícil generalizar, estas abordagens tendem a estar mais intimamente associadas às tradições religiosas.

Além disso, de forma semelhante à filosofia grega antiga, frequentemente não fazem distinções claras entre os elementos pessoais, sociais e políticos. A Stanford Encyclopedia of Philosophy descreve a tradição do pensamento ético chinês da seguinte maneira:

[Ele] está centralmente preocupado com questões sobre como se deve viver: o que acontece em uma vida que valha a pena, como pesar deveres para com a família e deveres para com estranhos, se a natureza humana está predisposta a ser moralmente boa ou má, como devemos nos relacionar com o mundo não humano, até que ponto alguém deve se envolver na reforma das estruturas sociais e políticas mais amplas de sua sociedade, e como alguém deve se conduzir quando está em uma posição de influência ou poder. (Wong, 2017) 

Como é usual com a perspectiva Ocidental, a Grécia é um bom ponto de partida para a discussão sobre o conceito de sociedade (Frisby and Sayer, 1986). Os gregos não tinham uma palavra separada para sociedade, mas referiam-se a sociedade em combinação com alusões a comunidade e associação (koinonia). Esta palavra era utilizada tanto no contexto político como no doméstico e já continha uma dimensão ética já que a relação com o conceito de justiça está implícita. Certamente, o fato de que apenas aqueles que não eram escravos serem considerados qualificados para discutir esses assuntos também ilustra algumas dimensões éticas interessantes sobre a liberdade que não eram aparentes na época. 

Avançando alguns séculos e principalmente devido à influência do Cristianismo, o conceito unificado de sociedade dos gregos foi descontinuado. A obra de Tomás de Aquino, por exemplo, faz uma distinção entre o que pertence à terra (civitas terrena) e o que pertence a Deus (civitas Dei), com responsabilidades concomitantes de obedecer às leis seculares e também às divinas (Frisby e Sayer, 1986, p. 16). 

Todas as principais teorias éticas podem ser aplicadas a diferentes ações internas ou dimensões da sociedade. Algumas das teorias normativas mais populares e conhecidas são o utilitarismo, onde as decisões éticas são feitas com base em uma avaliação das prováveis consequências de uma ação; deontologia, onde as decisões são tomadas com base em direitos e deveres; ética do cuidado, em que a moralidade depende do cuidado para o bem-estar dos outros; e a ética da virtude, onde o foco não é avaliar a ação, mas sim o indivíduo envolvido. Essas teorias são discutidas em mais detalhes no Módulo 1 e no Módulo 9 da presente série de módulos. 

Dentro da tradição secular, a ideia de um contrato social é crítica para a compreensão do conceito de sociedade. Em essência, um contrato social compreende o acordo voluntário dos indivíduos para que a sociedade seja regulamentada de uma forma que beneficie tanto a sociedade como os indivíduos, com base nas dimensões éticas da justiça e da equidade. O contrato social foi definido da seguinte forma: “pessoas que vivem em sociedade nos termos de um acordo que estabelece regras de comportamento morais e políticas. Algumas pessoas acreditam que se vivermos de acordo com um contrato social podemos viver moralmente por nossa própria escolha, e não porque uma entidade divina assim o exige” (Ethics Unwrapped, 2018). 

A Stanford Encyclopedia of Philosophy oferece um breve resumo do conceito de contrato social: ela traça a história do termo, iniciando com os filósofos gregos até Hobbes, Locke, Rousseau, Kant e Rawls (D´Agostino, 2017). A tabela abaixo apresenta excertos da discussão da Stanford Encyclopedia desses filósofos.

Thomas Hobbes

O filósofo inglês do século XVII Thomas Hobbes é considerado um dos genuinamente grandes filósofos políticos, cuja obra-prima Leviatã rivaliza em importância com os escritos políticos de Platão, Aristóteles, Locke, Rousseau e Rawls. Hobbes é conhecido pelo desenvolvimento inicial e elaborado daquilo que viria ser conhecido como a “teoria do contrato social”, o método de justificar princípios ou acordos políticos recorrendo ao compromisso que seria feito entre pessoas racionais, livres e iguais. Ele é considerado infame por ter usado o método do contrato social para chegar à surpreendente conclusão de que devemos nos submeter à autoridade de um poder soberano absoluto, indiviso e ilimitado (Lloyd, 2014).

John Locke

John Locke (1632–1704) está entre os filósofos políticos mais influentes do período moderno. Nos dois Tratados sobre o Governo, defendeu a alegação de que os homens são por natureza livres e iguais, em oposição à afirmação de que Deus tinha feito todas as pessoas naturalmente sujeitas a um monarca. Locke argumentou que as pessoas têm direitos, como o direito à vida, à liberdade e à propriedade, que possuem um alicerce independente das leis de qualquer sociedade em particular. Locke usou a afirmação de que os homens são naturalmente livres e iguais como parte da justificativa para entender o governo político legítimo como resultado de um contrato social onde as pessoas no estado natural transferem condicionalmente alguns de seus direitos ao governo a fim de melhor garantir o gozo estável e confortável de suas vidas, liberdade e propriedade. Uma vez que os governos existem com o consentimento do povo para proteger os direitos do povo e promover o bem comum, os governos que não o fazem podem ser combatidos e substituídos por novos governos. Locke, portanto, também é importante por sua defesa do direito de resistência (Tuckness, 2016).

Jean-Jacques Rousseau

Jean-Jacques Rousseau continua sendo uma figura importante na história da filosofia, tanto por causa de suas contribuições para a filosofia política e psicologia moral, quanto por sua influência em pensadores posteriores. A visão do próprio Rousseau sobre a filosofia e os filósofos era firmemente negativa, vendo os filósofos como os racionalizadores post-hoc do interesse próprio, como apologistas de várias formas de tirania e como desempenhando um papel na alienação do indivíduo moderno do impulso natural da humanidade à compaixão. A preocupação que domina o trabalho de Rousseau é encontrar uma forma de preservar a liberdade humana em um mundo onde os seres humanos são cada vez mais dependentes uns dos outros para a satisfação de suas necessidades (Bertram, 2017).

Immanuel Kant

Immanuel Kant (1724-1804) é a figura central da filosofia moderna. Ele sintetizou o primeiro racionalismo moderno e empirismo, definiu os termos para grande parte da filosofia dos séculos XIX e XX e continua a exercer uma influência significativa hoje em metafísica, epistemologia, ética, filosofia política, estética e outros campos. A ideia fundamental da "filosofia crítica" de Kant - especialmente em suas três Críticas: a Crítica da Razão Pura (1781, 1787), a Crítica da Razão Prática (1788) e a Crítica da Faculdade do Juízo (1790) - é a autonomia humana. Ele argumenta que a compreensão humana é a fonte das leis gerais da natureza que estruturam toda a nossa experiência; e que da razão humana se dá a lei moral, que é a nossa base para a crença em Deus, liberdade e imortalidade (Rohlf, 2016).

Tabela 1: Trechos da Stanford Encyclopedia of Philosophy

John Rawls (1921 – 2002) foi um filósofo político americano cuja contribuição mais famosa foi sua teoria da justiça como equidade (Wenar, 2017). O trabalho de Rawls é tratado no Exercício 3 deste Módulo. Na citação a seguir, ele discute uma das características éticas mais críticas da sociedade - a tensão entre o interesse comum e o interesse do indivíduo:

A sociedade ... é tipicamente assinalada por um conflito e também por uma identidade de interesse. Existe uma identidade de interesse, uma vez que a cooperação social torna possível uma vida melhor para todos do que qualquer um teria caso vivesse apenas por seus próprios esforços. Existe um conflito de interesses, dado que as pessoas não são indiferentes sobre como os maiores benefícios produzidos por sua colaboração são distribuídos, pois para buscar seus fins cada um prefere uma parte maior a uma menor. (Rawls, 1971, p. 4)

Certamente, a filosofia não oferece o único ponto de entrada para debates sobre a sociedade. Aliás, toda uma disciplina acadêmica – a sociologia – concentra-se no estudo científico das estruturas, processos e relações dentro da sociedade. A sociologia pode estar ligada aos conceitos de integridade e ética de diferentes maneiras. Ainda que o propósito da sociologia seja definido estritamente como um estudo “objetivo” de aspectos da sociedade, muitos desses aspectos (por exemplo, estrutura de classe ou desvio social) possuem fortes dimensões éticas. Além disso, a definição menos neutra de sociologia implicaria uma dimensão normativa, ou seja, que o objetivo da sociologia é aprimorar a sociedade por meio do estudo científico. 

Uma das figuras mais influentes na instituição da tradição sociológica é Max Weber (1864 – 1920). Weber foi um sociólogo e economista político alemão que escreveu extensivamente sobre o capitalismo e seu trabalho sempre foi justaposto ao trabalho de Karl Marx (Kim, 2017). A seguinte visão sobre o capitalismo vem de sua introdução à A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo

O impulso de aquisição, busca de proveito, de dinheiro, da maior quantidade possível de dinheiro, em si nada tem a ver com o capitalismo. Esse impulso existe e existiu entre empregados de mesa, médicos, cocheiros, artistas, prostitutas, funcionários desonestos, soldados, nobres, cruzados, jogadores e mendigos. Pode-se dizer que tem sido comum a todos os tipos e condições de homens, em todos os tempos e em todos os países da terra, onde quer que seja ou tenha existido a possibilidade objetiva. Deveria ser ensinado no jardim de infância da história cultural, que essa ideia ingênua de capitalismo deve ser abandonada de uma vez por todas. A ganância ilimitada de ganho está longe de ser idêntica ao capitalismo e menos ainda ao seu espírito. O capitalismo pode até ser idêntico à moderação ou, pelo menos, a um controle racional desse impulso irracional. Mas o capitalismo é idêntico à busca de lucro, um lucro sempre renovado por meio de uma empresa capitalista, racional e contínua. Então, assim deve ser: em uma ordem da sociedade totalmente capitalista, uma empresa capitalista individual que não aproveitasse suas oportunidades de lucro estaria condenada à extinção. (Weber, 2001, pp. xxxi-xxxii)

Weber introduziu a distinção entre a ética da convicção e a ética da responsabilidade em uma famosa palestra, Política como Vocação, que deu a estudantes radicais na Alemanha em 1918. Nessa palestra, Weber descreve duas perspetivas diferentes do mundo. A ética da convicção apresenta o mundo das boas intenções, às vezes exemplificado por pessoas que agem com base em crenças religiosas. Por exemplo, um cristão faz o que é certo e deixa os resultados para Deus. Mas a ética da responsabilidade vai além da convicção e da intenção, e leva em consideração as consequências da ação (ou inação). De acordo com Weber, os humanos devem resistir ao mal com força, caso contrário, serão responsáveis pela sua falta de controle. Embora o quadro de referência de Weber fosse a tradição cristã, pode-se sustentar que a mesma tensão entre convicção e responsabilidade também se aplica a outras tradições religiosas. 

É a segunda abordagem (ética da responsabilidade), que implica responsabilidades éticas na forma como entendemos nossa posição na sociedade. As discussões sobre ética e sociedade incluem muitas aplicações especializadas da ética: ética nos negócios e responsabilidade corporativa, ética na nos meios de comunicação e ética médica, para citar algumas. Questões sobre como responder a notícias falsas, desigualdade social, guerra dos drones, inteligência artificial, refugiados políticos, intolerância religiosa ou mudanças climáticas têm ligações substanciais com a sociedade. Este Módulo não aborda qualquer das áreas apresentadas em detalhe, mas foca a questão no nível superior da relação entre ética e sociedade, com referência específica aos conceitos de justiça, equidade e confiança. Fukuyama afirma que "o bem-estar de uma nação, bem como a sua capacidade de competir, é condicionado por uma característica cultural, difusa e única: o nível de confiança inerente à sociedade" (1996, p. 7). Alguns desses tópicos serão abordados em maior detalhe em outros módulos da Série do Módulo de Integridade e Ética E4J, por exemplo, intolerância religiosa no Módulo 5 (Ética, Diversidade e Pluralismo) e notícias falsas no Módulo 10 (Ética na Mídia).

 

Referências

  • Bertram, Christopher (2017). Jean Jacques Rousseau. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Edward N. Zalta, ed.
  • D'Agostino, Fred and others (2017). Contemporary approaches to the Social Contract. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Edward N. Zalta, ed.
  • Ethics Unwrapped - McCombs School of Business (2018). Social contract theory.
  • Fieser, James (2017). Classical Eastern Philosophy. 1 September.
  • Frisby, David and Derek Sayer (1986). Society. Chichester: Ellis Horwood.
  • Fukuyama, Francis (1996). Trust: The Social Virtues and Creation of Prosperity. New York: Free Press.
  • Kim, Sung Ho (2017). Max Weber. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Edward N. Zalta, ed.
  • Lloyd, Sharon A. and Susanne Sreedhar (2014). Hobbes's moral and political philosophy. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Edward N. Zalta, ed.
  • Rawls, John (1971). A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press.
  • Rohlf, Michael (2016). Immanuel Kant. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Edward N. Zalta, ed.
  • Society. Merriam-Webster.com. Merriam-Webster.
  • Tuckness, Alex (2016). Locke's political philosophy. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Edward N. Zalta, ed.
  • Weber, Max (2001). The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism. London: Routledge Classics.
  • Wenar, Leif (2017). John Rawls. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Edward N. Zalta, ed.
  • Wong, David (2017). Chinese ethics. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Edward N. Zalta, ed.
 
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