Este módulo é um recurso para professores 

 

Direito internacional dos direitos humanos e direito penal informático

 

Disposições materiais de certas leis sobre crimes cibernéticos, particularmente aquelas relacionadas ao conteúdo da Internet (consulte o Módulo 2 sobre as espécies gerais de crimes cibernéticos para obter mais informações sobre essa categoria e os cibercrimes nela incluídos), como desacato, difamação, injúria, calúnia, crimes contra a honra de chefes de Estado, ato obsceno e pornografia podem restringir indevidamente o exercício de certos direitos humanos (UNODC, 2013, p. xxi e 114-115). Disposições processuais sobre crimes cibernéticos que permitem o emprego de ferramentas e técnicas para a investigação de crimes cibernéticos que facilitam a interceptação de comunicações e a vigilância eletrônica também podem restringir injustificadamente o exercício de direitos humanos, como a privacidade (UNODC, 2013, p. 121) (consulte Módulo 10 sobre privacidade e proteção de dados). É necessário buscar um equilíbrio entre a repressão aos cibercrimes e o respeito aos direitos humanos. 

O direito internacional de direitos humanos permite restrições de certos direitos humanos, desde que por lei e sob circunstâncias específicas, embora alguns outros direitos não possam ser limitados. Essas restrições são autorizadas quando buscam um objetivo legítimo, de com base na lei existente, e são necessárias e proporcionais à ameaça que justificou sua implementação. A determinação desses fins legítimos depende dos direitos humanos em questão e pode incluir os interesses de segurança pública, segurança nacional, segurança econômica, segurança sanitária, proteção da moral pública e proteção dos direitos de terceiros. Além da necessidade de a restrição servir a um dos objetivos legítimos acima mencionados, a restrição deve tem fundamento em lei. Essa regra deve ser acessível aos cidadãos (pública) de modo a permitir que orientem seu agir e possam prever razoavelmente os poderes das autoridades competentes e as consequências do seu não cumprimento. A lei deve ser clara, precisa e não deve conceder às autoridades estatais um poder ilimitado para impor tais restrições (ver o Comentário Geral nº 34 do Comitê de Direitos Humanos da ONU, de 2011). Justificativas vagas e gerais, como referências inespecíficas a “segurança nacional”, “extremismo” ou “terrorismo”, não atendem o requisito de legalidade. O requisito da “necessidade” exige que a restrição seja algo mais do que “útil”, “razoável” ou “desejável” (TEDH, Caso The Sunday Times v. Reino Unido, sentença de 26 de abril de 1979, parágrafo 59). Além disso, deve haver uma relação adequada entre o objetivo legítimo perseguido por um Estado e as ações estatais para alcançá-lo. Em outras palavras, as ações devem ser proporcionais ao interesse a ser protegido. Isso implica que a restrição deve corresponder à ingerência menos invasiva entre as que poderiam alcançar o mesmo resultado. Os Estados têm certa latitude na maneira como cumprem suas obrigações no campo do direito internacional dos direitos humanos. Trata-se da margem de apreciação.

Margem de apreciação

A margem de apreciação é uma doutrina difícil e complexa. Para uma análise detalhada desta doutrina e seu significado, consulte Conselho da Europa

Além disso, mesmo o exercício de certos direitos pode interferir na liberdade de expressão ou opinião, como o direito de não ser submetido a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes; o direito à privacidade (discutido em detalhes no Módulo 10 sobre privacidade e proteção de dados); o direito de não ser discriminado; e o direito de crianças e adolescentes a proteção especial ou integral.

Liberdade de expressão (ou de opinião)

  • Artigo 19.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948
  • Artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de 1950
  • Artigo 19.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966
  • Artigo 13.º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969
  • Artigo 9.º (2) da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de 1981
 

Proibição contra tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes

  • Artigo 5.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948
  • Artigo 3.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de 1950
  • Artigo 7.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966
  • Artigo 5.º (2) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969
  • Artigo 5.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de 1981
 

Direito à privacidade

  • Artigo 12.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948
  • Artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de 1950
  • Artigo 17.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966
  • Artigo 11.º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969
 

Direito à não discriminação

  • Artigos 2.º e 7.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948
  • Artigo 14.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de 1950
  • Artigos 2.º (1) e 26 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966
  • Artigo 2.º (2) do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966
  • Artigos 1.º e 24.º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969
  • Artigo 2.º e 18.º (3) da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, de 1981
  • Artigo 5.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2006 

A aplicação não discriminatória de direitos e o gozo desses direitos por todos é expressamente prevista pela Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1966, e pela Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 1963.

 

Direito de crianças e adolescentes a proteção integral ou especial

  • Artigo 24.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966
  • Artigo 10.º (3) do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966
  • Artigo 19.º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969
  • Artigo 3.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989 

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos estendeu essa obrigação positiva de proteger pessoas vulneráveis ​​(crianças e adolescentes) nos ambientes online, afirmando que os países são obrigados a implementar leis e outras medidas que os protejam de violações (ver Mouvement raelien Suisse v. Suíça, 2012; MC v. Bulgária, 2003; Perrin v. Reino Unido, 2003; KU v. Finlândia, 2008, entre outros).

O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas tem continuamente ressaltado que “os direitos que as pessoas têm offline também devem ser protegidos on-line, em particular a liberdade de expressão, que pode ser exercido independentemente das fronteiras e em qualquer mídia de sua escolha” (vide A/HRC/RES/20/8; A/HRC/RES/38/7; ver também a resolução A/RES/68/167, da Assembleia Geral com assertiva semelhante sobre o direito à privacidade). A liberdade de expressão é um direito que permite e facilita o gozo de outros direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos essenciais, inclusive o direito à liberdade de reunião e de associação pacífica, o direito à educação e o direito de participar da vida cultural. A Assembleia Geral das Nações Unidas também reconhece “que o exercício do direito à privacidade é [também] importante para o exercício do direito à liberdade de expressão e para a liberdade de opinião sem interferências, e é um dos fundamentos de uma sociedade democrática” (Resolução A/RES/68/167 da AG/ONU).

Liberdade de associação e de reunião

  • Artigo 20.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
  • Artigo 11.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos de 1950
  • Artigos 21.º e 22.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966
  • Artigo 15.º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969
  • Artigos 10.º (1) e 11.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos de 1981
 

Direito à educação

  • Artigo 26.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948
  • Artigo 2.º do Protocolo n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos de 1950
  • Artigo 13.º do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966
  • Artigos 23.º e 28.º da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 1989
  • Artigo 14.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia de 2000 

* O direito à educação também é reconhecido pela Convenção da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) contra a Discriminação na Educação, de 1960. Esse direito é reafirmado em tratados internacionais que cuidam de direitos de grupos específicos (mulheres, crianças, pessoas com deficiências, refugiados, migrantes e povos autóctones), como a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), de 1979; a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança; a Convenção das Nações Unidas para os Refugiados de 1951; aConvenção das Nações Unidas sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e Membros de suas Famílias, de 1990; e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 1970.

 

Direito de participar da vida cultural

  • Artigo 27.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948
  • Artigo 15.º (1) (a) do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966

Nota: O direito à privacidade é explorado em detalhes no Módulo 10 sobre privacidade e proteção de dados.

Além disso, em 2016, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas aprovou uma resolução condenando a prática de impedir ou interromper o acesso de indivíduos à Internet (A/HRC/RES/32/13). Embora o acesso universal à Internet não seja reconhecido como um direito fundamental pelo direito internacional dos direitos humanos, os Estados devem promover a conectividade à Internet, como consequência de vários direitos humanos, como a liberdade de expressão (A/HRC/17/27). O acesso à Internet também é essencial para o exercício de muitos outros direitos, inclusive a liberdade de associação, a liberdade de reunião, os direitos à educação e à saúde, o direito de participação plena na vida social, cultural e política, o direito ao desenvolvimento social e econômico (A/HRC/17/27). Essas obrigações compreendem o dever de "adotar políticas e estratégias eficazes e concretas – desenvolvidas em consulta com representantes de todos os segmentos da sociedade, inclusive o setor privado e os órgãos governamentais relevantes – para tornar a Internet amplamente disponível, acessível e barata para todos" (A/HRC/17/27, parágrafo 66). Neste passo, uma perspectiva abrangente baseada em direitos humanos na disponibilização e na expansão do acesso à Internet deve ser perseguida e os Estados devem empenhar-se “para reduzir as muitas formas a exclusão digital” (A/HRC/32/L.20, parágrafo 5). Mais especificamente, o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas afirma que “os Estados partes devem levar em consideração até que ponto o desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação, como a Internet e os sistemas de distribuição de informações eletrônicas baseados em dispositivos móveis, mudaram substancialmente as práticas de comunicação em todo o mundo. Há agora uma rede global de troca de ideias e opiniões que não depende necessariamente dos intermediários tradicionais dos meios de comunicação de massa. Os Estados partes devem adotar todas as medidas necessárias para promover a independência dessas novas mídias e garantir o acesso das pessoas a elas” (Comentário Geral nº. 34, parágrafo 15). Essa obrigação foi consagrada pelo direito interno de certos países, como a Grécia, que emendou sua Constituição da seguinte forma: “(…) todas as pessoas têm o direito de participar da Sociedade da Informação. A facilitação do acesso às informações transmitidas eletronicamente, bem como à sua produção, troca e difusão, constitui uma obrigação do Estado.”

Nota importante

A desigualdade é exacerbada pela baixa qualidade do acesso à Internet ou pela sua intermitência ou descontinuidade.

Além disso, o acesso a conteúdo on-line pode ser e tem sido restringido para proteger os direitos de terceiros. Na opinião do “Relator Especial das Nações Unidas para a promoção e proteção da liberdade de opinião e expressão”, certas “formas de expressão” devem ser “proibidas pelo direito internacional”, entre elas a “promoção de xenofobia, ódio racial ou preconceito religioso que constitua incitamento à discriminação, hostilidade ou violência” e o “incitamento direto e público ao cometimento de genocídio” (UNODC, 2013, p. 111). Essa proibição também é consagrada pelo Artigo 20 (2) do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, que proíbe "qualquer apologia do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou a violência" e ao Artigo III (c) da Convenção para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio de 1948 proíbe a incitação direta e pública à prática de genocídio. O “Plano de Ação de Rabat sobre a proibição de defesa do ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, hostilidade ou violência” (A/HRC/22/17/Add. 4) distingue claramente entre as várias formas de expressão: “opiniões que constitui um crime; opiniões que não são puníveis criminalmente, mas pode justificar uma ação civil ou sanções administrativas; opiniões que não geram sanções criminais, civis ou administrativas, mas ainda suscitam preocupação em termos de tolerância, civilidade e respeito pelos direitos dos outros” (parágrafo 20). 

Os Estados podem restringir discursos xenofóbicos e racistas para preservar a ordem pública e proteger os direitos daqueles que dele são alvo. Na Tanzânia, a Lei de Crimes Cibernéticos, de 2015, proíbe a produção, a oferta, a disponibilização e a distribuição de material racista e xenofóbico (Artigo 17) e ofensas por motivação racista ou xenofóbica (Artigo 18) (para uma revisão crítica dessa legislação em todos os seus aspectos, consulte o relatório da Artigo 19, uma organização britânica de direitos humanos). O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) decidiu que opiniões que proclamam que todos os muçulmanos são terroristas ou que negam o Holocausto (Norwood vs. Reino Unido, 2003; Garaudy v. França, 2003) não são protegidas pelo Artigo 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos. No Reino Unido, a Lei do Ódio Racial e Religioso, de 2006, criminaliza as opiniões que incitam o ódio racial ou religioso.

Você sabia?

O Artigo 17.º da Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH) proíbe o abuso de direitos, estabelecendo que “Nenhuma das disposições da presente Convenção se pode interpretar no  sentido de implicar para um Estado, grupo ou indivíduo qualquer direito de se dedicar a  atividade ou praticar atos em ordem à destruição dos direitos ou liberdades reconhecidos na  presente Convenção ou a maiores limitações de tais direitos e liberdades do que as previstas na Convenção.”

A propaganda de ódio destina-se a difamar um grupo-alvo (os outros) e polarizar os membros da sociedade em dois grupos, entre aqueles que apoiam o discurso de ódio ou têm ideologias semelhantes a sua propaganda (ou seja, o grupo "nós") e aqueles que estão no grupo-alvo (os outros) ou que com ele simpatizam ou que o apoiam. Esse tipo de propaganda procura diferenciar e às vezes desumanizar o grupo-alvo, equiparando-o a insetos, animais, doenças e demônios. É um tipo de discurso associado ao incitamento à violência e o genocídio, que foi observado no genocídio de Ruanda, por exemplo. 

No genocídio de Ruanda, os tutsis foram rotulados de baratas (inyenzi), e a Rádio Televisão Libre Des Mille Collines (RTLM) pedia o extermínio das “baratas tutsi” (Gourevitch, 1998; Bhavnani, 2006). Radialistas e jornalistas da mídia impressa de Ruanda foram processados e condenados por difundir opiniões e propaganda de ódio e por incitar a violência e o genocídio. Jean-Bosco Barayagwiza e Ferdinand Nahimana, fundadores da  RTLM, e Hassan Ngeze, fundador e editor de jornal local impresso Kanguara, foram condenados por incitação pública ao cometimento de genocídio, entre outros crimes (Promotor vs. Ferdinand Nahimana, Jean-Bosco Barayagwiza, Hassan Ngeze, 2003; Baisley, 2014, 39). Ao proferir a sentença de Ferdinand Nahimana , o juiz  do Tribunal Penal Internacional para Ruanda registrou que o réu “estava plenamente consciente do poder das palavras e usou o rádio – o meio de comunicação de maior alcance público – para disseminar o ódio e a violência. (…) Sem armas de fogo, facões ou qualquer arma física, causou a morte de milhares de civis inocentes” (Mecanismo Residual Internacional das Nações Unidas para Tribunais Penais, 2003; O Promotor vs. Ferdinand Nahimana, Jean-Bosco Barayagwiza, Hassan Ngeze, 2003). 

Além do rádio, as plataformas on-line podem ser e têm sido usadas para difundir discursos e propaganda de ódio e incitar a violência e o genocídio. Considere o papel de uma plataforma de mídia social em atos suspeitos de genocídio em Mianmar. A imprensa relatou que mais de 650.000 muçulmanos rohingya teriam fugido do Estado de Rakhine, em Mianmar, para Bangladesh, desde que ataques de insurgentes provocaram reação dos órgãos de segurança [em agosto de 2017]. Muitas vítimas deram depoimentos angustiantes sobre execuções e estupros praticados pelas forças de segurança de Mianmar” (Miles, 2018). De acordo com Marzuki Darusman, presidente da Missão Internacional Independente das Nações Unidas para a Investigação de Fatos em Mianmar, o Facebook “desempenhou um papel determinante” no país, “contribuindo substancialmente para o nível de acrimônia, dissensão e conflito [contra os muçulmanos rohingya]” (Baynes, 2018) em Mianmar “difundindo propaganda de ódio” (Miles, 2018). Especificamente, a Missão de Investigação assentou: 

(…) não ter dúvida de que a ocorrência de discurso de ódio em Mianmar contribuiu significativamente para o aumento da tensão e para criar um clima no qual indivíduos e grupos podem se tornar mais receptivos ao incitamento e à prática de violência. Isso também se aplica a discursos de ódio no Facebook. A dimensão da disseminação de mensagens e rumores no Facebook aumentou a discriminação e a violência em Mianmar deve ser investigada de forma independente e exaustiva, para que as lições apropriadas possam ser tiradas e cenários semelhantes evitados. Da mesma forma, o impacto das medidas recentemente adotadas pelo Facebook para impedir e reprimir o uso indevido de sua plataforma precisa ser avaliado (A/HRC/39/CRP.2, parágrafo 1354). 

Outra plataforma de mídia social, o YouTube, também tem sido usada para a disseminação de discursos de ódio e para incitar a violência. Fouad Belkacem, líder e porta-voz da antiga organização "Sharia4Belgium", publicou vídeos no YouTube destinados a disseminar o ódio e, finalmente, incitar a violência, referindo-se a não-muçulmanos, entre outras coisas, como animais, e conclamando os espectadores a “subjugar não-muçulmanos, ensinar-lhes uma lição e combatê-los” (Belkacem vs. Bélgica, 2017; Voorhoof, 2017). 

Direitos de propriedade intelectual também podem justificar limitações à liberdade de expressão e ao acesso à informação. Se certos requisitos estiverem presentes, é justificável o bloqueio de sites que disponibilizem ilegalmente conteúdo sob proteção de direitos autorais. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos reconhece que os direitos autorais relativos à propriedade intelectual devem ser protegidos (Neij e Sunde Kolmisoppi vs. Suécia, 2012). No entanto, como medidas de bloqueio são muito delicadas e podem afetar os direitos de terceiros (em particular o direito de transmitir informações, de buscá-las e recebê-las), deve-se buscar cuidadosamente o equilíbrio entre tais direitos e os requisitos para imposição de medidas legítimas de bloqueio para evitar o “overblocking” (ver, por exemplo, CJEU UPC Telekabel Wien GmbH vs. Constantin Film Verleih GmbH e Wega Filmproduktionsgesellschaft mbH, 2014; Cengiz e outros vs. Turquia, 2015; Comitê de Direitos Humanos, Comentário Geral nº 34 sobre o Artigo 19 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos). 

O acesso à Internet também tem sido restringido em resposta a convulsões políticas. Em alguns países, o acesso dos cidadãos à Internet e a plataformas de mídia social tem sido limitado, total ou parcialmente, durante protestos e outros eventos nacionais, como se deu em Camarões, no Egito e em Uganda (Odhiambo, 2017). Houve casos em que o acesso à Internet ou a certo conteúdo foi interrompido para alguns indivíduos; noutros casos, o acesso de toda uma população à rede foi suspenso por um período determinado. Em 2017, na Índia o acesso a 22 serviços de mídias sociais (como Twitter, Facebook, Snapchat e YouTube) e a aplicativos de mensagens (WhatsApp, Skype, WeChat etc) foi bloqueado para usuários no vale da Caxemira como consequência de revoltas populares. Muitos outros casos de distúrbios cívicos levaram ao bloqueio da Internet e de serviços de telefonia móvel e fixa naquela área e noutras regiões da Índia (Freedom House, 2017). 

A censura prévia imposta pelos governos – como restrição de conteúdo antes de sua disponibilização ao público ou a grupos privados – e as práticas de bloqueio de conteúdo on-line entram em conflito direto com o direito fundamental de acessar informações. Em Ahmet Yildirim vs. Turquia (2010), uma página web criada por meio de sites da Google publicou, entre outras coisas, textos do seu criador e proprietário. Tal site foi considerado um insulto à memória ou ao legado de Mustafa Kemal Atatürk, conduta proibida pela Lei turca 5816, em particular, que tipifica os crimes contra Atatürk, e pelo Artigo 301 do Código Penal turco, em geral, que reprime ofensas contra a Turquia e suas instituições. Em lugar de bloquear o acesso a esse site específico, o governo turco bloqueou todos os sites. Tal reação da Turquia foi declarada incompatível com o Artigo 10 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Embora interrupções ou bloqueios temporários ou parciais possam ser justificados em circunstâncias específicas, a interrupção de serviços de Internet e o bloqueio do acesso à rede a grupos ou populações inteiras não podem ser legalmente justificados. O relatório do relator especial sobre a promoção e a proteção da liberdade de opinião e expressão assinalou que: “O bloqueio de plataformas da Internet e o desligamento da infraestrutura de telecomunicações são ameaças persistentes e, mesmo que tenham como premissa a segurança nacional ou a ordem pública, tendem a interromper as comunicações de milhões de pessoas'' (A/71/373, parágrafo 22). O relatório também citou uma declaração conjunta de 2015 das “Nações Unidas e especialistas regionais no campo da liberdade de expressão, que tachou o fechamento da Internet (ou “desligamento de interruptores”) de ilegal” (A/71/373, parágrafo 22). 

A Resolução 32/13 do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas “condena terminantemente medidas destinadas a impedir ou a interromper intencionalmente o acesso a informações on-line ou sua disseminação, com violação ao direito internacional dos direitos humanos, e exorta todos os Estados a abster-se de impor tais medidas ou a fazê-las cessar” (A/HRC/RES/32/13). Como o Comitê das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Comentário Geral nº 34, Seção 43, CCPR/C/GC/34) acertadamente ressalta: “Quaisquer restrições à operação de sites, blogs ou qualquer outro meio internético, eletrônico ou sistema de disseminação de informações, incluindo sistemas de apoio a tais comunicações, como provedores de serviços da Internet ou mecanismos de busca, só são permitidas na medida em que sejam compatíveis com o parágrafo 3 [do Artigo 19 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966]. Como regra geral, as restrições permitidas devem ser específicas quanto ao conteúdo; proibições genéricas à operação de determinados sites e sistemas não são compatíveis com o parágrafo 3 [do artigo 19 do referido Pacto]. Quaisquer medidas de bloqueio devem ser direcionadas de maneira restrita e personalizada para alcançar apenas as páginas web que disponibilizem conteúdo ilegal. A interrupção dos serviços da Internet e o bloqueio do acesso à Internet a grupos e populações inteiras não podem ser legalmente justificados.”

Exemplo de restrição à liberdade de expressão

O país K proíbe os meios de comunicação social de promover “estilos de vida ocidentais” e caçoar dos valores do país. Um órgão governamental do país K interrompe o funcionamento de vários canais de notícias on-line por divulgarem o que o governo considera informações incorretas ou ilegais ou por não removerem comentários em seus sites que promovem o que o governo vê como opiniões proibidas. O país K exige que empresas privadas monitorem proativamente seus sites e removam esse conteúdo incorreto ou ilegal.

 
Seguinte: Conclusão
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