Este módulo é um recurso para professores 

 

Abordagens para a análise do nexo entre corrupção e direitos-humanos

 

Correlação versus causalidade

Apesar de os atos de corrupção poderem ter efeitos nefastos para os direitos humanos a curto ou a longo prazo, pode ser pouco rigoroso concluir que todos os atos de corrupção conduzem sempre a violações identificáveis de direitos humanos (Davis, 2019; ICHRP, 2009, p. 24). De facto, os estudos de economistas do desenvolvimento nem sempre concluem que a corrupção causa violações de direitos humanos, mas antes que a corrupção se encontra correlacionada negativamente com a despesa pública na educação e no setor da saúde (Mauro 1998). Além disso, mesmo que exista uma correlação negativa entre corrupção e direitos humanos, a mesma pode não se verificar em todas as sociedades (Peirone, 2019) e pode depender de fatores como o ambiente económico, a independência do judiciário, bem como a trajetória histórica do país e o seu regime específico (vide Módulo 3 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção). Por exemplo, referindo-se a um caso de peculato de receitas da exploração de petróleo, Rose (2016, pp. 415-416) questiona o nexo causal entre específicos atos de corrupção e a violação das obrigações estaduais em matéria de direitos humanos:

Se um governo falha, desde logo, na alocação de receitas provenientes do petróleo para programas sociais, então o peculato desses fundos constitui, embora de forma discutível, apenas um de vários fatores que podem contribuir para o seu fracasso na realização progressiva dos direitos económicos, sociais e culturais. O modo como as decisões económico-financeiras são tomadas por ser um fator bem mais significativo. Mesmo quando as receitas provenientes da exploração petrolífera se mantêm nos cofres estaduais, a salvo de eventuais corruptos, eles podem não ser direcionados para programas sociais, como acontece em muitos dos países ricos em recursos naturais. Noutras palavras, o peculato pode não ser o fator decisivo pelo qual as receitas provenientes da exploração petrolífera não são direcionadas para a realização progressiva dos direitos à saúde e à educação.

Davis (2019, p. 1291) avança com uma crítica similar:

Suponha-se que o sistema nacional de saúde se encontra tão subfinanciado que o Estado claramente falhou em satisfazer as suas obrigações no campo do direito à saúde. Tal não significa necessariamente que a corrupção é causa de violações de direitos humanos. Por exemplo, é possível que, se os recursos não tivessem sido desviados, eles fossem alocados para o exército ou para o ensino superior. Neste caso, não se pode afirmar que a corrupção foi causa do fracasso na realização do direito. Em geral, o desvio corrupto de fundos tem efeitos indeterminados no gozo dos direitos humanos. As únicas exceções ocorrem quando os fundos já tiverem sido alocados, ou quando seja praticamente certo de que o seriam, para garantir o cumprimento do Estado com as suas obrigações em matéria de direitos humanos.

Assim sendo, a relação causal entre corrupção e direitos humanos deve ser analisada e avaliada de forma casuística e contextualizada. Tais avaliações podem consubstanciar fundamentos para uma ação judicial ou para a ação política e podem ajudar-nos a compreender com maior detalhe as diversas formas pelas quais a corrupção facilita ou causa a violação de direitos humanos. Algumas destas abordagens são discutidas nos próximos parágrafos.

 

A abordagem do nexo causal do Conselho Internacional sobre Políticas de Direitos Humanos («International Council on Human Rights Policies»)

Em 2009, o ICHRP publicou um artigo propondo um enquadramento operacional para nos ajudar a responder à questão de saber quando os atos de corrupção violam ou conduzem a violações de direitos humanos. O propósito da publicação foi o de “fornecer uma técnica para analisar a corrupção á luz dos direitos humanos” e que sirva como “ferramenta analítica apta a auxiliar na determinação de quando e como as violações de direitos humanos e os atos de corrupção podem ser associados (ICHRP, 2009, pp. 24 e 30). O enquadramento proposto foca-se na cadeia causal de eventos desde o ato de corrupção à violação de direitos humanos. O mesmo distingue entre (a) violações diretas; (b) violações indiretas e (c) violações remotas.

As violações diretas ocorrem quando o ato corrupto pode ser diretamente associado à violação de direitos humanos, mormente quando a corrupção é “deliberadamente utilizada como um meio para violar o direito”. Por exemplo, quando os juízes, procuradores ou advogados são subornados, o direito a um processo justo e equitativo é diretamente violado. Uma violação direta pode ter igualmente lugar quando uma violação de direitos humanos é previsível, mas o Estado não atuou com a diligência devida para a prevenir.

As violações indiretas ocorrem quando a corrupção é um fator essencial que contribui para a cadeia de eventos que, de forma eventual, conduz à violação de direitos humanos. O suborno de funcionários públicos para permitir a importação ilegal de resíduos tóxicos, os quais serão depois depositados junto a uma área residencial, é apenas um exemplo de violação indireta de direitos humanos. Neste caso, os direitos à saúde e a um ambiente sadio e equilibrado das pessoas que aí vivem não foram o alvo do ato corrupto, mas este acabou por viabilizar a violação dos mesmos. Outro exemplo de violação indireta, relacionado com o direito à alimentação, é fornecido por Bacio-Terracino (2008, p. 20):

Sabe-se que determinados atos de corrupção tiveram lugar quando um produtor consegue obter uma licença de produção alimentar por via do pagamento de um suborno à respetiva agência de segurança alimentar. Tal pode resultar no fornecimento de alimentos impróprios para consumo a uma quantidade vastíssima de indivíduos. Portanto, quando um suborno no plano da regulamentação alimentar abre as portas à possibilidade de comercialização de alimentos contaminados, a segurança alimentar e as necessidades dietéticas dos indivíduos, hoje reconhecidas como dimensões fundamentais do direito à alimentação, não são respeitadas. Nesse caso, a corrupção pode ser culpada pela violação indireta do direito à alimentação.

As violações remotas têm lugar quando os atos corruptos são apenas um de vários fatores que conduzem à violação de direitos humanos. Por exemplo, a corrupção no processo eleitoral pode levantar dúvidas quanto à exatidão e justiça dos resultados eleitorais, o que pode, por sua vez, conduzir a protestos que serão violentamente reprimidos pelo Estado. Ora, a corrupção pode desencadear uma sequência de eventos que conduz à repressão violenta dos protestos pelas forças policiais – a uma violação de direitos humanos eventual ou remota (Figueiredo, 2017).

Boersma (2012, p. 196) criticou este enquadramento operacional do ICHRP e considerou que a terminologia – i.e. direta, indireta e remota – é juridicamente imprecisa e pode conduzir a confusões concetuais e a uma semântica jurídica incerta. A autora considera que algumas violações indiretas são, de facto, violações diretas, e avança com exemplos disso mesmo:

Foi defendido [pelo ICHRP] que existe uma violação indireta do direito à saúde quando o suborno de um funcionário público conduz ao depósito de resíduos tóxicos numa área residencial. No entanto, ao abrigo do direito à saúde, existe uma obrigação estadual “de proteger” os indivíduos contra violação de direitos por parte de terceiros. Assim, ao permitir o depósito desses resíduos, os Estados violam a sua obrigação de proteger, a qual constitui uma violação direta do direito à saúde...

Enquanto o enquadramento do ICHRP se concentra na análise do caráter da relação entre o ato de corrupção e o impacto que o mesmo tem ao nível dos direitos humanos (i.e., direto, indireto ou remoto), a análise de Boersma concentra-se em saber se, em termos jurídicos, ocorreu ou não uma violação de direitos humanos. Por outras palavras, o direito internacional dos direitos humanos não concebe violações diretas ou indiretas a direitos humanos. Boersma desenvolveu, pois, um quadro alternativo de análise das ligações entre corrupção e direitos humanos, o qual é discutido mais adiante.

 

Os três níveis de obrigações de direitos humanos: respeitar, proteger e concretizar

Uma forma de avaliar o impacto da corrupção nos direitos humanos consiste em considerar o seu impacto nos três diferentes níveis de obrigações estaduais em matéria de direitos humanos, mormente das obrigações de os (i) respeitar; (ii) proteger e (iii) concretizar. Apesar desses três níveis não serem explicitamente mencionados nos tratados de direitos humanos, eles são vastamente utilizados pelos órgãos dos tratados de direitos humanos encarregues de avaliar o grau de conformidade da ação estadual com as suas obrigações em matéria de direitos humanos (vide, por exemplo, o Comentário Geral n.º 12 do CESR, para. 15; o Comentário Geral n.º 13 do CESCR, para. 46; o Comentário Geral n.º 14 do CESCR, para. 33; o Comentário Geral n.º 24 do CESCR, paras. 10-24). A obrigação de respeito consiste, no essencial, na obrigação de os Estados se absterem de interferir com o gozo de direitos humanos. É, por isso, qualificada como uma obrigação “negativa”. Por sua vez, a obrigação de concretizar é considerada uma obrigação “positiva”, ao requerer que o Estado facilite e promova, de forma proativa, os direitos humanos, mormente ao adotar medidas jurídicas, institucionais, económico-financeiras e de outras naturezas para garantir a plena realização dos mesmos. O terceiro “nível” corresponde à obrigação de proteger, a qual se destina à proteção de indivíduos dos atos de outros sujeitos ou entidades que possam interferir com o gozo desses mesmos direitos humanos. Tal exige do Estado a tomada de medidas adequadas para prevenir, investigar, punir e reparar os abusos por parte de terceiros.

A obrigação de proteger é especialmente relevante no contexto desta discussão em torno do nexo entre corrupção e direitos humanos, desde logo porque exige do Estado que proteja os indivíduos de atos abusivos de outras pessoas ou entidades privadas, mas também porque reduz os riscos estruturais para os direitos humanos nos quais estejam envolvidos funcionários do Estado. Como explicado por Peters (2019, p. 1260), tal poderá ser ilustrado através do exemplo da violência policial que surge como fonte de violações de direitos humanos. Em tais casos, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (ECtHR) tem exigido que os Estados investiguem e julguem tais incidentes. A corrupção sistémica pode, no entanto, constituir um impedimento estrutural a tais investigações e julgamentos. Assim sendo, quando esteja em causa uma total inação do Estado ou insuficiência evidente na adoção de medidas anticorrupção, poderá considerar-se que o Estado fracassou em prevenir abusos e, seguidamente, o mesmo poderá ser responsabilizado ao abrigo do direito internacional por violar as suas obrigações em matéria de direitos humanos. Por outras palavras, as medidas anticorrupção podem favorecer a conformidade do Estado com a sua obrigação de proteger os direitos humanos. Além disso, a obrigação de proteger exige que o Estado proteja os seus cidadãos de abusos de todo o tipo de entidades privadas, mormente de empresas transnacionais. Especial relevância assume, neste domínio, os Princípios-Guia das Nações Unidas sobre Negócios e Direitos Humanos, os quais definem as obrigações dos Estados de proteção dos indivíduos face a atividades empresariais lesivas e no que respeita ao estabelecimento de meios de reparação efetivos face a abusos de direitos humanos relacionados com a atividade empresarial (vide a discussão abaixo).

Um caso que diz respeito à obrigação estadual de proteger os direitos humanos de danos causados pelas empresas é o caso Oganiland (Social and Economic Rights Action Center & Center for Economic and Social Rights c. Nigeria, African Commission on Human and Peoples’ Rights, 2001).Neste caso, a Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos concluiu que a Nigéria violou diversos preceitos da Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos ao permitir a empresas petrolíferas operar em Ogoniland de um determinado modo, o qual resultou na contaminação do ambiente e em efeitos devastadores para a saúde e bem-estar dos Ogonis. O Comentário Geral n.º 24 do CESCR (2017) discute, de forma detalhada, a obrigação dos Estados de proteção dos direitos humanos em contexto de abusos empresariais (para. 18), bem como de forma mais geral (para. 20).

A obrigação positiva de proteção não impõe ao Estado um dever de produzir determinados resultados, mas apenas requer que o mesmo implemente todas as medidas necessárias para se alcançarem determinados resultados desejados (vide, por exemplo, X and Y v. Netherlands, ECtHR, 1985; Caso Velàsquez Rodríguez, Tribunal Interamericano de Direitos Humanos, 1988). Isto é, por outras palavras, trata-se de uma obrigação de meios e não de uma obrigação de resultados. No que respeita à corrupção, um Estado estará em conformidade com as suas obrigações em matéria de direitos humanos se tomar todas as medidas necessárias para combater práticas corruptas que possam ter um impacto negativo nos direitos humanos, mesmo que as mesmas não logrem erradicar totalmente a corrupção (vide, por exemplo, Budayeva and Others v. Russia, ECtHR, 2008; Öneryıldız v. Turkey, ECtHR, 2004).

Em princípio, as obrigações de proteção são impostas a todos os ramos do Estado. Elas obrigam o poder legislativo a emanar leis eficazes; o poder executivo a levar a cabo medidas administrativas eficazes; e o poder judicial a garantir um processo justo e equitativo. Se a prossecução de alguma destas ações for obstruída pela corrupção, então a inação daí resultante poderá conduzir à violação do direito a um processo justo e equitativo e do direito à existência de meios de reparação. De forma mais discutível, poderá igualmente considerar-se que tal facto consubstancia uma violação do direito primário (i.e. do específico direito humano) que devia ser protegido pelo respetivo processo legislativo, judicial ou administrativo (embora a casuística em matéria de direitos humanos não seja clara quanto a este aspeto – vide Peters, 2016, pp. 267-269).

Abaixo são apresentados vários exemplos de como a corrupção pode afetar a conformidade do Estado com as obrigações de direitos humanos em cada um destes três níveis:

(1)  Obrigação de respeitar (o direito à manifestação pacífica): Um partido político informou as autoridades locais de que pretende organizar uma manifestação pacífica numa avenida pública como forma de protesto contra uma proposta de lei que permitiria a venda de uma companhia telefónica do Estado a uma empresa privada. Porque a empresa privada receava que uma tal manifestação, ao despoletar críticas públicas, impedisse o parlamento de aprovar essa mesma lei, decidiu subornar a polícia de modo a que a manifestação fosse impedida. No dia em questão, as forças policiais encerraram a referida avenida e pediram aos manifestantes que regressassem para as suas casas. Neste caso, o Estado violou a sua obrigação de respeito (i.e. de abstenção de interferir com) o direito à manifestação pacífica, tendo tal sido causado pela corrupção.

(2)  Obrigação de concretizar (o direito à educação): O Ministro da Educação concedeu fundos públicos a um município para a construção de uma nova escola. No entanto, os agentes públicos locais apropriaram-se ilicitamente desses mesmos fundos e, em resultado, a escola não foi construída. Neste exemplo, a corrupção causou uma violação da obrigação estadual de concretizar o direito à educação.

(3) Obrigação de proteger (direito à saúde): um repórter dedicado ao jornalismo de investigação divulgou que uma empresa de produtos químicos ignorou as normas ambientais e depositou resíduos tóxicos num rio próximo, contaminando a maior reserva de água para abastecimento da região em que está sediada. Demonstrou-se ainda que o Ministro da Saúde estava ciente de tal perigo e, apesar disso, não adotou medidas para o evitar, por ter recebido um conjunto de subornos por parte dessa mesma empresa. Neste caso, a corrupção causou uma violação da obrigação do Estado de proteger o direito à saúde (i.e. de proteger os indivíduos de danos à sua saúde causados por abusos de terceiros). Uma outra violação poderá vir a ocorrer se o Estado não disponibilizar às vítimas meios aptos a reparação dos danos que lhe foram causados. Por exemplo, se uma pessoa que ficou doente em consequência do consumo de água contaminada apresentar uma queixa e o magistrado do ministério público se recusasse em dar início à investigação em razão do recebimento de um suborno por parte da referida empresa de produtos químicos, tal consistiria numa violação adicional a direitos humanos da pessoa em causa.

 

Os quatro “As”: disponibilidade (availability), acessibilidade (accessibility), aceitabilidade (acceptability) e adaptabilidade (adaptability)

Outro tipo de enquadramento analítico que pode ser utilizado para demonstrar, em concreto, o impacto da corrupção nos direitos humanos é o dos quatro “As”, o qual foi desenvolvido pelo Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais. Os quatro “As” referem-se à disponibilidade (availability), acessibilidade, aceitabilidade e adaptabilidade, e visam clarificar o âmbito das obrigações estaduais na garantia do acesso a serviços e bens sociais. De acordo com o Comentário Geral n.º 13 do CESCR sobre o direito à educação, a disponibilidade refere-se à obrigação do Estado de tornar o bem ou serviço social disponível, em quantidade suficiente, na sua jurisdição; a acessibilidade refere-se à obrigação de tornar o bem ou serviço fisicamente e economicamente acessível a todos os indivíduos dentro da sua jurisdição, sem discriminação; a aceitabilidade determina que o bem ou serviço deve ser de boa qualidade e respeitar standards mínimos; a adaptabilidade implica que o Estado se adapte às necessidades das comunidades e dê resposta às distintas e complexas particularidades sociais e culturais de todos os grupos sociais (De Schutter, 2018). Analisar como a corrupção interfere como cada uma destas dimensões ajuda a clarificar o vínculo entre corrupção e direitos humanos e as distintas formas como a corrupção pode conduzir à violação de direitos humanos.

 

As classificações do Conselho de Direitos Humanos

Em 2013, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas pediu ao seu comité consultivo a elaboração de um relatório sobre violações de direitos humanos causadas pela corrupção e recomendação sobre como o Conselho e outros órgãos das Nações Unidas podiam abordar o problema. Dois anos mais tarde, o comité consultivo submeteu ao Conselho o seu relatório final sobre o impacto negativo da corrupção no gozo de direitos humanos. O relatório categoriza, de forma breve, as possíveis violações de direitos humanos como tendo impactos negativos “individuais”, “coletivos” e “gerais”, de acordo com as “diferentes obrigações impostas aos Estados (Wouters, Ryngaert e Cloots, 2013, p. 35):

  • O impacto negativo individual relaciona-se com a corrupção que direta ou indiretamente afeta os direitos dos indivíduos. Um exemplo é quando um professor pede a um estudante favores sexuais em troca de melhores notas (vide a discussão abaixo sobre corrupção sexual).
  • O impacto negativo coletivo refere-se à corrupção que afeta grupos específicos, como as minorias. Um exemplo é quando os funcionários públicos pedem subornos para prestar serviços públicos, estabelecendo valores que determinados grupos vulneráveis ou marginalizados não conseguem suportar, com a consequência de que tais grupos são, assim, excluídos do acesso face a esse serviço.
  • O impacto negativo geral refere-se ao efeito que a corrupção tem na sociedade no seu todo, tanto a nível nacional, como internacional. Exemplos são a redução dos recursos financeiros e económicos causada por atos de corrupção, como o peculato, e a desestabilização das instituições democráticas e do Estado de Direito causada, por exemplo, pela corrupção sistémica ou pela corrupção nos níveis mais elevados do poder governamental (i.e. envolvendo o chefe de governo ou o chefe de Estado).

A categorização das violações de direitos humanos como tendo impactos negativos individuais, coletivos ou gerais coloca em destaque o quão nefasto e amplo o impacto da corrupção nos direitos humanos pode vir a revelar-se. O relatório do comité consultivo do Conselho dos Direitos Humanos fornece recomendações úteis que podem ajudar o Conselho e outros órgãos de direitos humanos a dar resposta à corrupção. Este reclama, em particular, por maior integração entre as perspetivas de direitos humanos e as estratégias anticorrupção. 

O comité consultivo do Conselho de Direitos Humanos parece ter subscrito a supramencionada distinção entre violações “diretas” e “indiretas” desenvolvida pelo Conselho Internacional sobre Políticas de Direitos Humanos (ICHRP). No entanto, o comité consultivo não se foca na identificação do nexo causal entre corrupção e violações de direitos humanos. Em vez disso, ele reforça o nosso entendimento em diferentes conexões entre corrupção e direitos humanos ao classificá-las com base no tipo e gravidade do dano sofrido pelas vítimas.

 

As cinco dimensões de Martine Boersma

Apesar de Boersma não oferecer um método sistemático para se descrever e analisar o vínculo entre atos de corrupção e violações de direitos humanos, coloca em destaque algumas formas pelas quais a corrupção se relaciona com os direitos humanos. Boersma contribui, desta forma, para o reconhecimento e conceptualização de um amplo espetro de vínculos entre corrupção e direitos humanos, indo além da análise da corrupção como uma mera causa de violações de direitos humanos. Especificamente, Boersma (2012, p. 199) identifica as seguintes cinco dimensões do nexo corrupção-direitos humanos:

  • A primeira e mais ampla destas dimensões é o “ambiente partilhado pela corrupção e as violações de direitos humanos”, significando que tanto a corrupção como a violação de direitos humanos são consequências do mesmo comportamento deficitário na prática e política estadual. Pode existir uma relação forte entre níveis elevados de corrupção e uma proteção frágil de direitos humanos e ambos os fenómenos podem ter a mesma origem (por exemplo, conflito armado, instituições democráticas frágeis, etc.).
  • A segunda dimensão diz respeito aos “direitos humanos necessários para combater a corrupção” e enfatiza que certos direitos humanos são cruciais para o combate contra a corrupção, como a liberdade de expressão, o direito à informação, o direito de manifestação e a liberdade de reunião (vide também UNHRC, 2019).
  • A terceira dimensão refere-se aos “direitos humanos das pessoas acusadas de corrupção” e pressupõe a consideração de que as medidas anticorrupção podem violar os direitos humanos daqueles que são acusados de corrupção – apesar de o direito internacional exigir que as medidas anticorrupção sejam conformes aos direitos humanos. Este ponto é discutido com mais detalhe abaixo.
  • A quarta dimensão refere-se “às reformas anticorrupção que impactam negativamente os direitos humanos de grupos vulneráveis”. Esta dimensão refere-se ao facto de as reformas anticorrupção normalmente priorizarem o desenvolvimento económico e os direitos dos investidores estrangeiros, desconsiderando os direitos dos grupos mais vulneráveis e marginalizados.
  • A quinta e última dimensão refere-se “à corrupção como violação de direitos humanos” e estabelece que este fenómeno constitui, em si mesmo, uma violação de direitos humanos, com efeitos diretos, indiretos ou remotos sobre estes (vide também Gebeye, 2012; Rose, 2016, p. 457; Rothstein e Varraich, 2017; Spalding, 2019). Este ponto é discutido com maior desenvolvimento mais adiante.
 

Possível tensão entre políticas anticorrupção e direitos humanos

As medidas anticorrupção podem, per se, violar os direitos humanos das pessoas acusadas de práticas corruptas. Em alguns casos, as acusações por corrupção podem, por exemplo, ameaçar os direitos a um due process, como o direito à presunção de inocência ou o direito à não incriminação. O crime de enriquecimento ilícito é um exemplo proeminente de uma conduta ilícita típica de corrupção que muitos Estados encaram como geradora de preocupações no âmbito dos direitos humanos. O art. 20.º da UNCAC incumbe os Estado de considerar a criminalização do enriquecimento ilícito, o qual é definido como “o aumento significativo do património de um agente público para o qual ele não consegue apresentar uma justificação razoável face ao seu rendimento legítimo”. Porque o art. 20.º da UNCAC apenas exige aos Estados Partes que considerem tal criminalização, estes não estão obrigados a fazê-lo e, em muitos casos, optaram mesmo por não o fazer. A criminalização do enriquecimento ilícito não tem necessariamente de violar o direito a um julgamento justo e equitativo, desde que se assegure um conjunto de garantias processuais aptas a salvaguardar o respeito pelos direitos a um due process. Por exemplo, a acusação deve estar incumbida de levar a cabo uma demonstração prima facie (v.g. demonstrar a discrepância significativa entre o salário da autoridade, agente ou funcionário público e o seu património atual) antes de se verificar a inversão do ónus da prova para o arguido, o qual deve revelar a origem lícita de tal património (vide o relatório de 2012, sobre enriquecimento ilícito, da UNODC e da World Bank Stolen Asset Recovery (StAR) Initiative). Além disso, a estas preocupações em torno dos direitos a um processo justo e equitativo junta-se a possibilidade de que a recuperação estadual de ativos cuja origem legal não foi demonstrada pela autoridade, agente ou funcionário público possa interferir com o direito à propriedade deste, o qual se encontra consagrado, por exemplo, num Protocolo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (Protocolo n.º 1, artigo 1.º). Por consagrar uma restrição ao direito à propriedade, o arresto de tais bens tem de ser justificado pelo Estado, o qual deve demonstrar que a medida anticorrupção é lícita, serve um interesse público e legítimo e é proporcional (Ivory 2014, 2019). 

O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), como guardião da UNCAC, está a trabalhar com os Estados para promover o combate à escala global contra a corrupção, sempre tendo em consideração as suas obrigações no plano dos direitos humanos. Adicionalmente, alguns artigos da UNCAC promovem diretamente os direitos humanos, como aqueles que se relacionam com a proteção de testemunhas e de reforço do poder judicial, bem como aquelas que se referem à recuperação de ativos com natureza reparatória (arts. 11.º, 32.º, 51.º a 59.º da UNCAC). Mais informações sobre a abordagem da UNODC para a proteção e promoção de direitos humanos está disponível no UNODC Human Rights Position Paper (2012). Além disso, a realidade é que as campanhas anticorrupção podem, em alguns casos, ser usadas como meios de repressão. Para uma discussão relacionada, vide o Módulo 3 da Série de Módulos Universitários da Educação para a Justiça («E4J») sobre Anticorrupção, e este relatório, publicado pelo Conselho Internacional sobre Políticas de Direitos Humanos e pela Transparência Internacional.

 
Seguinte: Uma abordagem baseada nos direitos humanos
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