Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico Sete: O Uso da Força Durante Protestos

 

O direito de reunião pacífica, onde se inclui o direito de participar em protestos pacíficos, é um direito humano fundamental, integrante de qualquer democracia, e um componente essencial da prevenção da violência. Uma manifestação é geralmente entendida como uma "reunião intencional e temporária num espaço público ou privado para uma finalidade específica". "Pode assumir a forma de manifestações em sentido estrito, reuniões, greves, procissões, comícios ou manifestações com o objetivo de expressar queixas, aspirações ou celebrações" (Relatório Especial da ONU sobre Reunião Pacífica, 2012, parágrafo 24). 

No contexto do direito internacional dos direitos humanos, encontra-se uma série de direitos que se constroem sob o conceito abrangente de direito de protesto. Esses direitos são, principalmente, os direitos à liberdade de reunião pacífica, de associação e de expressão, e o direito de ter opinião "sem interferências" (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, Resolução 2200A (XXI) da Assembleia Geral art.º 19 ( 1), (2), 21 e 22). Os participantes em protestos gozam sempre, independentemente do estatuto jurídico do protesto em causa à luz da lei interna do seu país, do direito a ser respeitados nos seus direitos fundamentais, entre os quais se conta o direito à vida, ao tratamento digno e à liberdade. Ninguém pode ser arbitrariamente privado da vida ou da liberdade, nem ser sujeito a distinções no que respeita à forma de proteção de direitos, nomeadamente com base na raça, no género ou no estatuto social, já que podem resultar em formas discriminação ilícitas. Qualquer forma de tortura ou outros tratamentos desumanos são sempre proibidos. 

Em março de 2016, em resposta a um relatório sobre esta matéria redigido por dois Relatores Especiais das Nações Unidas, o Conselho de Direitos Humanos lembrou "que todos os Estados têm a responsabilidade de, em quaisquer circunstâncias, inclusive no contexto de protestos pacíficos, promover, respeitar e proteger os direitos humanos e impedir qualquer forma de violação dos direitos humanos, como execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, prisão e detenção arbitrárias, desaparecimentos forçados, tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes e violência sexual, solicitando aos Estados que evitem sempre o abuso de processos criminais e civis e bem assim o recurso à ameaça de instaurar processos dessas naturezas"(Conselho de Direitos Humanos, 2016). 

Ao abordar o uso da força durante as manifestações, os Princípios Básicos de 1990 distinguem três tipos de reuniões: aquelas que são lícitas e pacíficas; aquelas que são ilícitas, mas não violentas; e as que são violentas. 

Manifestações Lícitas e Pacíficas

De acordo com o princípio básico número 12.º, todos podem participar em reuniões lícitas e pacíficas. Por "lícitas", os redatores dos Princípios Básicos de 1990 quiseram significar a legalidade na perspetiva do direito nacional, mesmo que em oposição ao direito internacional. Nestes casos, como as autoridades concederam permissão para um protesto, a tarefa dos aplicadores da lei é supervisionar o protesto, incluindo o protesto pacífico. As autoridades aplicadoras da lei também devem, "na medida do possível, proteger e supervisionar os protestos espontâneos, como fariam com qualquer outro protesto" (Relatório Especial da ONU sobre Protestos Pacíficos e Execuções Sumárias, 2016, parágrafo 23). 

Se um número substancial de participantes de uma determinada reunião ou protesto estiver na posse de armas, quer seja para fins de autodefesa ou por razões formais, é preciso notar que o direito internacional não se pronuncia sobre a pacificidade ou não destes tipos de protestos. Pode argumentar-se que, se essas armas não estiverem visíveis e não incluírem armas de fogo ou facas, o protesto ainda pode ser considerado como pacífico, desde que não se verifique nenhum ato violento. 

Manifestações ilícitas, mas não violentas

O princípio número 13.º dos Princípios Básicos de 1990 rege o uso da força em relação a protestos ilícitos, mas não violentos: "Na dispersão de reuniões ilegais mas não violentas, os funcionários responsáveis pela aplicação da lei deverão evitar a utilização da força ou, caso tal não seja possível, deverão limitar a utilização da força ao mínimo estritamente necessário". Esta categoria é especialmente controversa, dada a incerteza quanto ao escopo e à definição do termo "ilícito". Também sugere que a resposta apropriada dos aplicadores da lei a um protesto desta natureza é sua dispersão. Discutivelmente, a evolução do direito internacional relativo aos direitos humanos desde 1990 torna ilícita a dispersão de uma reunião ou manifestação não violenta, a menos que existam motivos objetivos para a sua dispersão (ou seja, necessidade) e as medidas tomadas também sejam proporcionais. 

O facto de as autoridades não terem o direito de dispersar um determinado protesto, não impede a polícia de prender e deter licitamente suspeitos de crimes entre os participantes e espectadores. Como os Relatores Especiais das Nações Unidas observaram: "A autoridade para prender pode desempenhar uma importante função protetora nos protestos, permitindo que a aplicação da lei retire de um protesto indivíduos que estejam a agir violentamente" (Relatório Especial da ONU sobre Assembleia Pacífica e Execuções Sumárias, 2016, parágrafo 44). Assim, argumentam que "Antes de realizar a dispersão, as entidades policiais devem procurar identificar e isolar os indivíduos violentos, separadamente do protesto principal, e diferenciar indivíduos violentos de um protesto dos demais participantes. Isto pode permitir que o protesto continue" (Relatório Especial da ONU sobre Assembleia Pacífica e Execuções Sumárias, 2016, parágrafo 61).  

O caso Florentina Olmedo vs. Paraguai (Comunicação n.º 1828/2008), perante o Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas, disse respeito a um trabalhador agrícola, Blanco Dominguez, que participou de uma manifestação pacífica no Paraguai, em favor da reforma agrária. Os manifestantes ficaram frente a frente com uma barreira policial e decidiram bloquear a estrada. O Ministério Público ordenou que os líderes da manifestação desbloqueassem a estrada e disse-lhes que, se não o fizessem, a estrada seria desbloqueada à força. Enquanto as negociações estavam em curso, o Ministério Público ordenou que a estrada fosse desbloqueada. O ataque policial foi imediato e violento e envolveu o uso de gás lacrimogéneo, armas de fogo e canhões de água. A polícia agrediu fisicamente muitos manifestantes, disparou indiscriminadamente contra os que estavam em fuga e invadiu violentamente o local, tendo mesmo danificado várias casas nas proximidades, espancando severamente qualquer pessoa que conseguissem apanhar. Para além disso, foram utilizadas balas de metal e de borracha de um modo indiscriminado. 

Dominguez estava à frente da manifestação e, juntamente com outros manifestantes, rendeu-se pacificamente à polícia, ajoelhando-se com as mãos para cima. Enquanto estava nessa posição, um agente da Polícia Nacional, a curta distância, alvejou-o nas costas. Depois de ter caído no chão, Dominguez foi também atingido na cabeça pela polícia. Após duas intervenções cirúrgicas, Blanco Dominguez morreu a 5 de junho de 2003 (Comunicação n.º 1828/2008, parágrafos 2.4-2.7). Ao constatar uma violação do direito à vida, o Comité de Direitos Humanos reiterou a obrigação do Paraguai de proteger a vida dos manifestantes (Comité de Direitos Humanos, 2012, parágrafo 7.5). 

Manifestações Violentas

De acordo com o Princípio Básico número 14, "Na dispersão de protestos violentos, os agentes aplicadores da lei apenas podem usar armas de fogo quando outros meios menos graves não sejam possíveis e apenas na medida estritamente necessária. As forças de autoridade não devem usar armas de fogo, exceto nas condições estipuladas no Princípio 9.º". 

A redação do Princípio Básico número 14.º refere-se a protestos violentos como um todo, e não aos atos de participantes específicos. Isso implica que os indivíduos, dentro de um protesto, possam recorrer à violência sem que o protesto, globalmente considerado, seja classificado como violento. Na sua resolução de 2014, sobre protestos pacíficos, o Conselho dos Direitos Humanos lembrou que os "atos isolados de violência cometidos por outras pessoas durante um protesto, não privam os indivíduos pacíficos dos seus direitos à liberdade de reunião pacífica, de expressão e de associação" (UNHRC, 2014, 22.º paragrafo preambular). Deste modo, o termo “protesto violento” deve ser entendido corretamente no sentido de “tumultos generalizados”. 

O caso Güleç vs. Turquia (54/1997/838/1044) envolveu manifestações espontâneas e não autorizadas, fecho de lojas e ataques a edifícios públicos, na cidade de Idil. O filho do requerente foi atingido e morto por uma bala de ricochete, disparada por um gendarme para dispersar os manifestantes. Embora o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos tenha aceite que a manifestação estava "longe de ser pacífica" e que isso poderia resultar em tumulto, o Tribunal considerou que deveriam ter sido disponibilizadas às autoridades alternativas à utilização de armas de fogo, como forma de dispersar os protestantes. Note-se que o governo não reuniu qualquer prova para comprovar a sua afirmação de que existiam terroristas entre os manifestantes e, portanto, não podia justificar que havia uma ameaça iminente à vida. 

Na realidade, existem várias opções menos letais para dispersar os participantes em distúrbios, tais como a força policial (montadas a cavalo ou a pé), o uso de gás lacrimogéneo ou o uso de canhões de água. Cada uma dessas formas detém perigos potenciais, tanto para o aplicador da lei como para os seus alvos. Se a dispersão for realmente necessária, o Princípio Básico número 14.º sugere que tal possa ser realizado com recurso a armas de fogo, mas esta não é a solução jurídica atual. Como os dois relatores especiais das Nações Unidas observaram no seu relatório de 2016 sobre protestos pacíficos dirigido ao Conselho de Direitos Humanos, as armas de fogo nunca podem ser usadas simplesmente para dispersar um protesto e, é claro, disparar indiscriminadamente contra uma multidão é sempre considerada uma prática ilícita (Relatório Especial da ONU sobre reuniões pacíficas e Execuções Sumárias, 2016, parágrafo 60). Disparar na direção da cabeça dos manifestantes também é inaceitável, pois corre-se o risco de se matar ou de se ferir gravemente as pessoas que estejam na mesma direção, pois a bala de uma espingarda pode matar ou ferir seriamente alguém a uma milha ou ainda mais de distância. 

Uma alternativa controversa à dispersão usada atualmente por certas entidades policiais consiste na contenção, às vezes denominada de "chaleira" (kettling). Trata-se de uma situação em que os manifestantes (muitas vezes inocentes) estão contidos num cordão policial circundante. 

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos considerou esta técnica lícita. No caso Austin v. Reino Unido (No. 39692/09), a Grande Câmara do Tribunal constatou que o cordão, que durou cerca de sete horas, não constituía uma privação arbitrária da liberdade, de acordo com o Artigo 5.º da Convenção Europeia de 1950 dos Direitos Humanos. O caso em questão dizia respeito à decisão do Serviço Metropolitano de Polícia de fazer um cordão policial em torno de um grupo de vários milhares de pessoas em Oxford Circus, em Londres, durante os protestos do primeiro de Maio de 2001. A polícia, ao aperceber-se do potencial risco de violência e desordem (que acabou por ocorrer), impôs um cordão sob o poder da common law para "manter a paz". 

No seu relatório de 2013 relativo à sua missão no Reino Unido, o Relator Especial das Nações Unidas para os direitos à liberdade de reunião e associação pacíficas, criticou especificamente o uso desta técnica. Estava "particularmente preocupado por ouvir histórias alarmantes de manifestantes pacíficos, a par de espectadores inocentes, incluindo turistas, que foram mantidos dentro do cordão durante um longo período de tempo, sem acesso a água ou a instalações sanitárias". Reportando-se ao julgamento do Tribunal Europeu no caso Austin, aquele Relator afirmou que esta e outras decisões relevantes nos tribunais nacionais "de forma alguma constituem um aval geral" à “chaleira” e afirmou ainda que esta tática "é intrinsecamente prejudicial ao exercício do direito à liberdade de protesto pacífico, devido à sua natureza indiscriminada e desproporcional " (Relatório Especial da ONU sobre Reunião Pacífica, 2013, parágrafos 36-38).

 
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