Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico 3: Quem tem direitos nessa situação? Processando a violência doméstica e a violência sexual – uma abordagem de direitos humanos

 

Esta seção, sobre violência doméstica e violência sexual, trata da discriminação e estereótipos de gênero, o que inclui a atenção ao fato de que os estereótipos de gênero e a discriminação são causa, consequência e manifestação da violência contra as mulheres. A natureza arraigada dos estereótipos de gênero, e o fato de que muitas formas de discriminação de gênero são naturalizadas como práticas cotidianas, contribui para a persistência do problema e serve como um obstáculo para iniciativas legais e de outras naturezas que buscam atingir igualdade de gênero. Estereótipos relacionados a dois tipos de crime – violência doméstica (que cobre a violência entre parceiros íntimos e a violência familiar) e estereótipos sobre as situações nas quais o contato sexual é aceitável – tendem a colocar mulheres e meninas em situação de desvantagem no processo criminal, levando à impunidade dos atos de violência. Para mais materiais sobre esta matéria, confira o Módulo 9 sobre Gênero no Sistema de Justiça Criminal. 

Esta seção tem potencial para explorar ideias complexas sobre a natureza da lei – o que significa ter um quadro legalmente previsto, e o que significa proteger esse direito, como as instituições sociais e jurídicas funcionam para salvaguardar os direitos individuais e o estado de direito. 

Essa criação e implementação de leis também é uma função da política e da sociedade – de quem são os direitos respeitados? Quais direitos são respeitados? Existem situações em que um indivíduo abre mão de seus direitos à integridade física e mental? Quão fácil ou difícil é tomar uma atitude remediadora, se o direito de um indivíduo à integridade física e mental for violado? 

Os professores podem se valer dessa oportunidade para investigar como os crimes de violência doméstica, estupro e violência sexual são definidos em sua jurisdição; como esses crimes são investigados e processados, e se há um engajamento crítico para desafiar e transformar essas leis e práticas. Esses tipos de estudos de caso podem ser relevantes para estudantes de sociologia, direito, história e antropologia. É fascinante considerar como leis relacionadas à violência doméstica e à violência sexual foram formadas e como as instituições legais e os parâmetros conceituais têm persistido ao longo do tempo. Pensar sobre como as instituições legais e as atitudes dos profissionais do sistema de justiça criminal precisam mudar, para se tornarem humanas e receptivas às realidades das mulheres e meninas é potencialmente muito interessante, para estudantes de direito, filosofia, sociologia, ciência política, ou comunicação. 

Embora a violência doméstica e a violência sexual sejam consideradas, frequentemente, duas questões separadas, na realidade, essas formas de violência muitas vezes se sobrepõem. Atos de estupro e de violência sexual costumam fazer parte da violência infligida no contexto de relacionamentos íntimos, casamentos e na família. Em muitas jurisdições, é uma impossibilidade legal que um homem estupre sua esposa, uma vez que o contrato legal foi tido como um consentimento permanente para o contato sexual: essa injustiça persiste em várias jurisdições ao redor do mundo. Uma injustiça semelhante ocorre quando um suposto estuprador pode escapar da persecução penal se ele se casar com a sua vítima. Tem-se advogado, em diversos locais do mundo, pela transformação dessas estruturas legais que fazem da impunidade em relação à violência uma parte da construção legal do matrimônio. 

Implementando uma resposta compreensiva à violência doméstica, incluindo uma legislação criminal eficaz

Tal como acontece com o casamento infantil, a persistência e a aceitação social da violência doméstica estão enraizadas na ideia de que as prioridades e o papel na vida das mulheres e meninas devem ser nos seus relacionamentos íntimos com os homens, e que esses relacionamentos devem ser sustentados custe o que custar para a mulher, e sem importar o quão abusivo seja o homem. As mulheres são significativamente super-representadas como vítimas de homicídio cometido exclusivamente por um parceiro íntimo: 82 por cento das vítimas são mulheres, contra 18 por cento de homens (UNODC, 2018). 

A ideia exposta no Tópico anterior, sobre a responsabilidade do Estado pela conduta criminosa de atores não-estatais, é muito claramente ilustrada na situação de violência doméstica: 

As pessoas questionam, com frequência, a respeito de mulheres em situação de violência doméstica – “Por que ela não foi embora?” 

Quando confrontada com a pergunta “Por que ela não foi embora?”, talvez seja melhor responder primeiro “Por que o homem continua a infligir violência? Por que ele não foi investigado, preso e processado? Quem poderia fazer algo a respeito – e quem é legal e moralmente obrigado a agir?” Essa questão pode, então, se tornar o foco da discussão. 

Primeiramente, é importante reconhecer que, muitas vezes, a mulher ou menina terá muito medo de ir embora – a violência doméstica é comumente acompanhada de ameaças de aumento de violência, contra ela ou alguém que ela ama.  É notável que em dois casos internacionais de direitos humanos, relacionados à violência doméstica, o marido violento não foi apenas violento com a sua esposa, como as ameaças se intensificaram e, em um caso, Opuz vs Turquia (No. 33401/02), o marido abusivo acabou por matar a mãe de sua esposa e, em outro caso, Gonzales Carreno vs. Espanha (Comunicado No. 47/2012), o marido abusivo matou o filho, tendo dito à esposa que tiraria dela o que ela tinha de mais importante. Investigações demonstram que o momento em que a mulher decide sair do relacionamento, e começa a dar passos para fazê-lo, é o momento em que ela corre maior risco. Considerando que o homem iniciou um padrão de comportamento violento, as ameaças de aumento de violência provavelmente serão acreditadas. Similarmente, se a mulher reporta a violência à polícia, isso também pode provocar mais violência. 

Em segundo lugar, uma mulher ou menina pode depender do homem violento para moradia e renda – principalmente se houverem crianças fruto do relacionamento, e ela não puder trabalhar porque fica em casa para cuidar dos filhos. Este tipo de dependência econômica é ainda mais aguda quando outras leis do país – por exemplo, regras sobre herança ou propriedade de terras ou bens, ou regras que exigem a permissão do marido para que a esposa possa trabalhar – implicam que a mulher não tem acesso aos meios que garantiriam sua independência econômica e ao controle sobre sua própria vida que decorreria dela. 

Terceiro, a vergonha pode impedir uma mulher ou menina de tornar sua situação conhecida e tomar medidas necessárias no sentido de deixar seu agressor, principalmente em culturas que promovem a submissão feminina ao controle masculino – a violência pode ser parte do que as pessoas esperam como normal nos relacionamentos. Para mais informações sobre atitudes e mitos que embasam a violência doméstica, veja essa ficha informativa da Women’s Aid

As crianças envolvidas em relacionamentos violentos enfrentam uma série de consequências graves. A violência doméstica geralmente começa durante a gravidez – o que apresenta sérios problemas de saúde para a mulher ou menina grávida, e para o feto. Testemunhar a violência é assim uma forma de violência contra crianças, e possui ramificações sérias para o bem estar e desenvolvimento da criança. Um homem que é normalmente violento com sua parceira também é violento com crianças, colocando-as em aumentado risco. Homens violentos normalmente usam as crianças como uma forma de ameaçar suas parceiras, valendo-se da violência psicológica, por exemplo, ameaçando retirar a criança da mãe, ou dizendo que a criança será levada para um abrigo se a mulher denunciar a violência.  

Assim sendo, várias são as razões pelas quais mulheres e meninas podem permanecer em relacionamentos violentos. Isso significa que esse é um problema delas – que elas têm que enfrentar as consequências? 

De acordo com a legislação internacional de direitos humanos, e com padrões e normas relevantes das Nações Unidas sobre prevenção da criminalidade e justiça criminal, a resposta é não. As normas internacionais de direitos humanos e os padrões estabelecidos pelas Nações Unidas – como a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres da Assembleia Geral das Nações Unidas (Resolução 48/104 da Assembleia Geral), e as Recomendações Gerais 19 e 35 do Comitê CEDAW, assim como a versão atualizada das Estratégias e Medidas Práticas Modelo para a Eliminação da Violência contra a Mulher no Campo da Prevenção da Criminalidade e da Justiça Penal das Nações Unidas (Resolução 65/228 da Assembleia Geral) – determinam uma série de normas, políticas e práticas que todos os Estados estão legalmente exigidos a implementar, como parte de seu dever de prevenir, investigar e punir todas as formas de violência contra as mulheres. Muitas dessas iniciativas partem de boas práticas, desenvolvidas por organizações feministas da sociedade civil, de suas iniciativas de base para ajudar mulheres e meninas necessitadas (para leituras adicionais sobre os padrões e normas das Nações Unidas, veja o Módulo 1 desta Série Universitária do E4J). 

Reconhecendo a violência doméstica como crime e aplicando a legislação criminal

A violência doméstica envolve atos criminosos – a polícia e o judiciário, portanto, são obrigados a intervir, como parte de seu dever de defender o estado de direito. Em todo o mundo, as leis criminais exigem a tomada de medidas (penais) contra agressões físicas. Onde a violência doméstica tem sido aceite como um componente natural de qualquer relacionamento íntimo e da vida em família, é comum que as reformas legislativas levem à adoção de novas leis, mais especificamente sobre violência doméstica, deixando claro, assim, que tais atos são criminosos. Essas legislações normalmente incluem a violência física e outras formas de violência e, às vezes, também incluem a violência psicológica e o controle coercitivo. A violência econômica (ou abuso financeiro) também faz parte da definição de violência doméstica em algumas leis nacionais, por exemplo, tomar o dinheiro de uma mulher, recusar-se a dar-lhe dinheiro para suas despesas básicas e de seus filhos, ou impedir a mulher de entrar ou permanecer em um trabalho remunerado. 

Entretanto, para que as leis sejam eficazes, a polícia, os procuradores e os juízes precisam ser treinados sobre a lei e a eficácia de seus trabalhos precisa ser monitorada. O UNODC desenvolveu uma série de manuais para treinar profissionais da justiça criminal, incluindo o Resource Guide on Strengthening Judicial Integrity and Capacity [Guia de Recursos para Reforçar a Integridade e a Capacidade Judicias] e o “Handbook on Police Accountability, Oversight and Integrity” [Manual sobre Responsabilidade, Supervisão e Integridade da Polícia]. Considerando que denunciar a ocorrência de violência é algo perigoso, é importante que existam mecanismos para que testemunhas e policiais possam reportar casos e iniciar denúncias e investigações. Os Estados também precisam de prover financiamento adequado para que a polícia possa realizar seu trabalho. Isso requer um número suficiente de policiais devidamente treinados, com tempo e recursos para realizar investigações e reunir evidências de uma forma que priorize a segurança da mulher e de seus filhos, preservando sua dignidade. 

A aplicação do direito penal deve ocorrer com a consciência da situação das vítimas de violência doméstica e dos riscos que elas correm ao fazer denúncias. Muitas vezes, as mulheres optam, conscientemente, por não denunciar a violência às autoridades porque sentem medo de um escalonamento da violência. As autoridades precisam entender e respeitar a agência e a tomada de decisões das vítimas sobre a sua própria situação, e os riscos que o agressor representa para elas. Nem a lei nem aqueles que a aplicam, devem penalizar as mulheres por adiarem a denúncia ou por se recusarem a prestar depoimento. Em ambas as situações, as mulheres podem estar fazendo o melhor, dentro de suas possibilidades, para preservar sua própria segurança e a de seus filhos. Nos casos em que uma mulher desejar apresentar queixa, a polícia e os procuradores devem ser diligentes na coleta de evidências, a partir de várias fontes, para complementar ou, quando apropriado, substituir o testemunho da vítima. As provas podem ser obtidas, por exemplo, de vizinhos ou parentes, registros médicos dos ferimentos de uma vítima quando ela é levada ao hospital, ou das gravações de câmeras usadas pela polícia quando de sua chamada para comparecer em cena. A polícia e os investigadores devem receber treinamento e recursos para reunir esse tipo de evidência, bem como sobre como para avaliar os riscos imediatos e de longo prazo para mulheres e meninas (e seus filhos). Vítimas e testemunhas também devem se beneficiar de uma variedade de medidas para garantir sua segurança e privacidade – por exemplo, através de esquemas de proteção a testemunhas, procedimentos especializados nos tribunais para evitar a interação com o acusado, e a opção da vítima fornecer provas através de links de vídeo ou de outras formas da tecnologia de comunicação. 

Finalmente, muitas vezes, as leis penais precisam ser reformadas para lidar com a impunidade dos agressores. Em muitas jurisdições, aqueles que matam ou ferem mulheres e meninas podem beneficiar de defesas discriminatórias, por exemplo, “honra”, “crime passional” ou “provocação injusta”[1]. Essas teses de defesa são construídas sobre a tradição legal de que é compreensível e desculpável que um homem utilize de violência contra uma mulher, se ele não gostar do comportamento dela, particularmente do seu real ou suspeito comportamento sexual. Assim, em alguns países, se um homem acredita que sua esposa é sexualmente infiel, ele será considerado culpado de um crime menos grave que o homicídio doloso – por exemplo, homicídio culposo – ou será punido de maneira mais leve, porque a lei permite que o tribunal escuse o comportamento de um homem que mata por ciúmes (“crime passional”), para defender seu bom nome, ou a reputação da sua família (“crime em nome de honra”) ou, simplesmente, porque o comportamento real ou imaginado da esposa o deixa irritado (“provocação injusta”). Esses termos são usados ​​em diferentes sistemas jurídicos, em todas as regiões do mundo, mas o pensamento por trás dessas tradições legais é o mesmo – que os homens têm o direito, por lei, de usar a violência física para controlar e punir o comportamento das mulheres, e que, se as mulheres não se comportarem da maneira que se espera delas, elas enfrentarão consequências violentas. Ao contrário disso, entretanto, os agressores condenados por crimes de violência contra as mulheres, independentemente de a violência ser ou não fatal, devem ser condenados a uma pena proporcional ao seu crime.

Desenvolvendo e utilizando “remédios” do Direito Civil

 Muitas vezes, além de usarem leis criminais, os Estados aprovam leis que trazem remédios cíveis para a violência doméstica. Esses remédios civis permitem que uma mulher ou menina em risco recorra ao tribunal para obter uma ordem que impeça o homem de cometer violência, por exemplo, exigindo que ele deixe a casa compartilhada, ou fique longe dela ou de seu local de residência, trabalho ou estudo. É preciso fazer cumprir tais remédios – principalmente porque, ao buscar uma ordem de proteção, as mulheres chamam a atenção do Estado e de outras pessoas para a violência praticada pelo parceiro abusivo, e isso pode agravar a raiva dele e aumentar o risco de nova violência. Além disso, buscar uma ordem de proteção é uma maneira de a mulher retomar o controle de sua vida, e o parceiro abusivo deseja poder e controle. Se as autoridades não agirem para fazer cumprir tais ordens, a violência aumenta. O caso de Lenahan (Gonzales) vs. Estados Unidos (2007), mostra o que acontece quando uma mulher denuncia a violação de uma ordem de proteção à polícia e essa deixa de responder de forma profissional – os riscos apresentados pelo agressor aumentam, às vezes com resultados fatais. 

As leis civis relacionadas ao direito das famílias e aos direitos da personalidade também precisam ser reformadas, para garantir justiça e proteção às sobreviventes de violência doméstica, para que elas possam ter acesso ao divórcio, divisão de bens e garantir acordos de custódia segura para os filhos, a fim de que possam recuperar a autonomia e o controle de suas próprias vidas, e tenham confiança de poder viver em segurança e dignidade. O caso Gonzalez Carreno vs. Espanha (Comunicação n. 47/2012) mostra a importância disso – o tribunal permitiu que o marido abusivo tivesse acesso não supervisionado a seu filho e, durante uma visita não supervisionada, ele matou a criança e depois cometeu suicídio, tendo dito à mãe no dia anterior que “ele tiraria o que era mais importante para ela”.

Acesso a serviços para sobreviventes de violência doméstica

A responsabilidade estatal de lidar com a violência doméstica vai para além da adoção e aplicação de leis civis e criminais. Para uma mulher que sobrevive à violência doméstica chegar a um estágio em que é capaz de usar leis, ela pode precisar de uma variedade de serviços para assisti-la: cuidados médicos para lidar com ferimentos e aconselhamento ou apoio psicossocial para se recuperar dos efeitos psicológicos da violência; habitação, para permitir que ela encontre um lugar seguro para morar longe do agressor; acesso a trabalho ou educação, com uma renda que lhe permita começar uma nova vida longe do agressor. Se ela tiver filhos, eles também podem precisar de apoio especializado, especialmente quando testemunharam violência. Ela pode precisar de aconselhamento jurídico sobre o acesso ao divórcio e à guarda dos filhos – as normas de direito de família e dos direitos de personalidade precisam ser consistentes com a legislação penal.

Mais importante ainda, as mulheres precisam se sentir compreendidas e apoiadas, e não julgadas, por seus amigos, familiares e membros de sua comunidade, a fim de que possam tomar, com confiança, suas próprias decisões sobre os próximos passos de suas vidas.

Soluções atuais para sobreviventes, e preparando-se para um futuro melhor

Voltando à pergunta que costuma ser feita, “Por que ela não vai embora?” – as melhores perguntas a serem feitas são: “Como essa mulher enxerga a sua situação, ela sente que tem autonomia sobre a sua situação? Se não, do que ela precisa para chegar a essa situação de autonomia? O que essa mulher precisa para ficar segura? Quais são as medidas práticas necessárias para levá-la a essa situação – quais serviços devem estar disponíveis? Quais são os riscos que ela enfrentar e como podem esses riscos ser mitigados? Quem a está apoiando e de que apoios adicionais ela precisa para criar um futuro independente, que seja seguro e empoderador?

Até agora, esta seção definiu o que precisa acontecer para que as mulheres construam uma nova vida, longe da violência. Mas a reparação efetiva da violência e das mulheres e meninas começa com a identificação das causas mais profundas (ou raízes) e das estruturas econômicas e socioculturais que perpetuam a violência de gênero. As atitudes da polícia e do judiciário são importantes, assim como as atitudes do público em geral. É importante que, em todos os níveis da sociedade, entenda-se que: o controle e o abuso de mulheres e meninas são errados; que mulheres e meninas têm o direito de estar seguras segundo seus próprios termos; e que as sobreviventes têm direito de acesso à justiça, a uma remediação completa e uma nova vida livre de violência. A chave para isso é o empoderamento econômico de mulheres e meninas. Para que isso seja alcançado, devem ser contestados padrões profundamente arraigados de desigualdade de gênero, e é necessária uma estrutura legal não discriminatória, para garantir que mulheres e meninas possam buscar justiça em relação ao divórcio, guarda dos filhos, herança e propriedade.

Alcançar essas mudanças estruturais (econômicas, políticas, legais e atitudinais) exige que as crianças recebam uma educação de qualidade que promova a igualdade de gênero. (Ver Mayeza e Bhana, 2017, para um exame das complexidades da educação para lidar com a violência de gênero, com foco na África do Sul). A igualdade de gênero é a base para a formação de estruturas econômicas, leis e sistemas sociais e políticos que proíbem a violência de gênero e fornecem meios eficazes de reparação caso tal violência ocorra. 

Implementando uma resposta abrangente ao estupro e à violência sexual, incluindo uma legislação penal eficaz

 

Definindo os crimes de estupro e violência sexual – de quem são os direitos protegidos?

Os crimes de estupro e violência sexual tem sido reconhecidos nas jurisdições legais domésticas há séculos. Embora a maioria das definições identifique a conduta sexual forçada ou indesejada contra uma mulher ou menina como estupro, a função da lei – a forma como a lei é administrada – geralmente não tem sido para proteger o bem-estar da mulher ou menina afetada. Em alguns lugares, o estupro tem sido visto como dano perpetrado contra a família da mulher ou contra os costumes ou a moral – não como uma violação à integridade física e mental das mulheres. De fato, em alguns lugares, uma mulher ou menina que denuncia estupro pode ser processada, ela mesma, por perjúrio ou por admitir relações sexuais extraconjugais, se não conseguir convencer o tribunal de que foi estuprada. Em muitas jurisdições, para que um processo penal por estupro seja bem-sucedido, as vítimas/sobreviventes precisam convencer um tribunal de que foram submetidos a uma força física avassaladora pelo ofensor. 

Até recentemente, em muitas jurisdições, era considerado legalmente impossível que um marido estuprasse a sua esposa (e em algumas jurisdições isso ainda existe), porque a lei considera que o contrato conjugal constitui um consentimento constante e contínuo para o contato sexual entre marido e esposa. Por exemplo, no Reino Unido, a lei sobre essa questão não era clara até meados dos anos 1990, quando o Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu sobre um caso em que um marido alegava que as autoridades haviam alterado injustamente a lei para processá-lo por estuprar sua esposa. No caso SW vs. Reino Unido em 1995 (n. 20166/92), ao Corte Europeia de Direitos Humanos afirmou que “o caráter essencialmente degradante do estupro é tão manifesto” que “o abandono da ideia inaceitável de um marido ser imune contra a acusação de estupro de sua esposa estava em conformidade, não apenas com um conceito civilizado de casamento, mas também, e acima de tudo, com os objetivos fundamentais da Convenção, cuja essência é o respeito pela dignidade humana e pela liberdade humana”.  

Esses desafios que as mulheres e meninas enfrentam, para afirmar o direito à autonomia sobre seus próprios corpos, levantam questões jurídicas, sociológicas e filosóficas impressionantes, mormente quando outros formatos de lei são considerados – e como a lei protege os direitos dos indivíduos em outras áreas. 

Este trecho do livro do professor Stephen Schulhofer, “Unwanted Sex: the culture of intimidation and the failure of law” [Sexo Indesejado: a cultura da intimidação e o fracasso da lei], ilustra como os direitos à propriedade e à integridade sexual foram tratados diferentemente ao longo dos séculos pela legislação criminal britânica e, depois, nos Estados Unidos. 

No século XVI, a common law, ao dispor sobre roubo, dispunha sobre a proteção à propriedade do dono unicamente quando o malfeitor removia fisicamente o bem da posse daquele, contra sua vontade e mediante uso de força. Embarcadores e servos que fugiam com os bens que lhes haviam sido confiados e os golpistas que se apossavam dos bens mediante engano não podiam ser processados; e a lei do roubo não protegia de forma alguma os interesses intangíveis ou bens imóveis. À medida que o comércio e a natureza dos bens se tornaram mais complexos, a lei evoluiu, ainda que lentamente a princípio, a fim de preencher as lacunas intoleráveis, embora muitas delas tenham subsistido até o começo do século XX. Hoje, a lei do roubo protege os proprietários de forma mais abrangente. Ela abarca desde a apropriação indevida por funcionários até a expropriação em decorrência de fraude, protegendo itens de valor intangível, como dívidas, direitos de propriedade, segredos comerciais, e, mais recentemente, software de computador. Pune-se praticamente toda espécie de interferência nos direitos de propriedade, sem o genuíno consentimento do proprietário. Todavia, no que se refere à lei sobre agressão sexual, não houve evolução ou modernização comparáveis. Em praticamente todos os Estados, as leis sobre estupro continuam exigindo prova do uso de força física. E a concepção da lei daquilo que conta como força física segue extremamente restritiva (Shulhofer, 1998, p. 3-4). 

O argumento de Schulhofer é que homens com poder, particularmente recursos econômicos, são vigorosos aquando da apresentação de queixas às autoridades, sobre como os seus direitos sofreram interferência, seja por meio da jurisprudência dos tribunais ou mediante a advocacia por reformas legais. Com o tempo, portanto, a legislação se desenvolveu para proteger esses direitos e fornecer acesso à justiça. Porque, econômica, histórica e culturalmente, as mulheres têm menos poder, seu bem-estar e interesses não são tão bem protegidos por lei (Smart 2002; Fitzgibbon e Walklate, 2018). 

Ao ensinar este Módulo, pode ser útil considerar como o crime de estupro é definido na legislação nacional do Estado em que o mesmo está sendo ensinado em termos de – quem está sendo protegido aqui? De quem são os direitos que estão sendo protegidos? É o direito de não ser submetida à violência? É o direito de escolher o que acontece com seu próprio corpo? 

Legislação processual relativa à forma como o estupro e violência sexual são investigados e processados

Assim como as definições de estupro e violência sexual constantes do direito penal nacional, também é importante considerar as leis e práticas processuais relacionadas à maneira como as autoridades investigam e processam esses crimes. Essas leis e práticas também podem discriminar mulheres e meninas, o que é conhecido como “vitimização secundária”. Para mais material sobre justiça para vítimas, consulte o Módulo 11 sobre Acesso à Justiça pelas Vítimas, na Série de Módulos Universitários do E4J sobre Prevenção da Criminalidade e Justiça Criminal. 

Ao abrigo do direito penal interno, agressores podem se beneficiar de regras que lhes permitam enfraquecer a credibilidade da vítima aos olhos do tribunal, seja a decisão, sobre a responsabilidade, tomada por um júri ou um juiz. Essa ação, por si só, pode ser muito humilhante – uma forma de violência psicológica em si. 

Por exemplo, homens acusados ​​de estupro podem apresentar provas relativas à vida sexual anterior da vítima, para sugerir que esta consente regularmente em ter contato sexual e, portanto, que é provável que tenha consentido na situação que está sendo examinada pelo tribunal. devido aos estereótipos de gênero sobre mulheres e sexualidade, tais provas acerca da vida sexual pregressa da vítima tendem a minar o seu bom caráter – particularmente, o estereótipo de que uma mulher ou menina que é promíscua é, em geral, menos escrupulosa moralmente e pode muito bem ser uma mentirosa. Outra regra comum nas jurisdições domésticas é que as evidências apresentadas pela vítima só podem ser aceitas se corroboradas por outras provas, porque é fácil para as mulheres mentirem sobre o estupro e, portanto, os acusados ​​não devem ser condenados exclusivamente com base no testemunho da vítima. Esse é um estereótipo particularmente irracional, pois mulheres e meninas tendem a achar o processo de reportar uma violência e de ser testemunha em julgamento extremamente estressante e potencialmente perigoso: cometem-se, com frequência, contra mulheres e meninas que formalizam as suas queixas de estupro, crimes em nome da chamada “honra”, tais como o homicídio e a lesão corporal. 

O impacto dessas regras – o risco para uma mulher ou menina de tornar conhecido o fato de que ela foi estuprada e o risco de ser retratada como uma mentirosa ou alguém que concorda regularmente com o contato sexual – são muitas vezes significativas para impedir a busca por justiça. Elas também atuam como, de farto, um incentivo aos homens para estuprarem – os agressores sabem que as vítimas correm muito risco em buscar justiça e, assim, o estupro e a violência sexual tendem a não serem relatados. Os ofensores, portanto, podem cometer crimes sabendo que, provavelmente, se beneficiarão da impunidade. 

Compreendendo como o estupro e a violência sexual afetam os indivíduos em toda a sua diversidade

Essas questões de direito material e processual são importantes, não apenas em nome dos direitos de mulheres e meninas, mas também pelos direitos de homens e meninos: porque homens e meninos, assim como mulheres e meninas, estão sujeitos a estupro e à violência sexual. Às vezes, o estupro e a violência sexual são descritos na lei como a penetração de uma vagina por um pênis – pelo que os crimes contra homens, como a penetração oral ou anal pelo pênis do agressor, não são reconhecidos como formas de estupro. De fato, atitudes homofóbicas podem presumir que um homem ou um garoto estuprado tenha concordado com a relação sexual porque é gay (independentemente de o ser ou não) e, em alguns lugares, um homem que relata estupro será ele próprio processado por ter cometido ato sexual com indivíduo do mesmo sexo, mesmo quando o ato ocorreu sem o seu consentimento. Discriminações homofóbicas desse tipo significam que homens e meninos relutam em denunciar o estupro porque temem ser percebidos como gays, ou como “não masculinos o suficiente" devido a ideais culturais de que um “homem de verdade” seria capaz de lutar contra o estupro. 

O estupro e a violência sexual são frequentemente cometidos contra pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros ou intersexo (pessoas LGBTI), e as barreiras à justiça para pessoas LGBTI são ainda mais altas, principalmente em locais onde atos sexuais com indivíduos do mesmo sexo são criminalizados ou altamente estigmatizados. Em muitos lugares, as lésbicas são alvo de estupro como um método que pretende torná-las heterossexuais, mas, na verdade, esse é um crime de ódio puro, como ilustrado neste artigo: “South Africa’s ‘corrective rape’ of lesbians” [“O ‘estupro corretivo’ de lésbicas na África do Sul"], da Associação de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Interssexo (ILGA), 06 de agosto de 2012 (ver site da ILGA para um conjunto abrangente de relatórios sobre crimes de ódio à homofobia, transfobia e orientação sexual em todo o mundo). 

As pessoas trans são frequentemente alvo de estupro e violência sexual, particularmente em situações de custódia ou prisão. Para mais materiais sobre os riscos enfrentados pelas pessoas trans nas prisões, consulte o Módulo 9 sobre Gênero no Sistema de Justiça Criminal na Série de Módulos Universitários do E4J sobre Prevenção da Criminalidade e Justiça Criminal. 

Veja o site da Just Detention International para um trabalho muito atento e cuidadoso sobre estupro na prisão, que oferece importantes oportunidades de solidariedade com os sobreviventes, além de investigações sobre a situação em prisões de todo o mundo. 

As pessoas que se envolvem em trabalho sexual/prostituição também são alvo de estupro e violência sexual, e enfrentam preconceitos extremos na busca por justiça. As autoridades policiais presumem que, como essas vítimas são profissionais do sexo, elas “não podem ser estupradas” – que estão sempre concordando com o contato sexual, independentemente do quão violento ou coercitivo esse contato sexual seja. A realidade é que o status marginalizado das profissionais do sexo significa que as pessoas violentas as atacam, sabendo que é provável que escapem impunemente, porque crimes contra as profissionais do sexo não são levados a sério. Dentre os trabalhadores sexuais, estão homens e mulheres, incluindo homens e mulheres transgênero e indivíduos intersexo. Crianças menores de 18 anos que podem ser incorretamente descritas como envolvidas em prostituição/trabalho sexual são, de fato, vítimas de abuso sexual infantil. 

Para relatórios detalhados sobre a violência e o estigma infligidos às profissionais do sexo, e a necessidade de leis efetivas para proteger aqueles que são forçados ao trabalho sexual, incluindo crianças menores de 18 anos e pessoas traficadas, consulte a política de proteção dos direitos humanos dos profissionais do sexo da Anistia Internacional (2016). 

A legislação sobre direitos humanos desenvolveu formas mais precisas de entender o estupro: uma forma de tortura, envolvendo penetrações de diversos tipos, em situações nas quais a vítima não consentiu livremente em participar de um ato sexual

O estupro é reconhecido como uma forma de tortura, pois causa graves dores e sofrimentos, físicos e mentais (A/HRC/7/3, parags. 34-35). O estupro deve ser entendido como uma invasão física que envolve penetração. A penetração deve ser entendida não apenas como a penetração da vagina de uma mulher ou menina pelo pênis do agressor, por qualquer objeto ou por qualquer outra parte do corpo, por exemplo, dedos ou mãos. A jurisprudência também reconhece que, se um criminoso usa seu pênis para penetrar na boca ou no ânus da vítima, isso também constitui estupro, independentemente de a vítima ser uma mulher ou menina, menino ou homem, pessoa transgênero ou intersexo. A penetração do ânus da vítima com um objeto também deve ser processada como estupro. O toque sexual ou a nudez forçada podem ser processados como violência sexual – atos de penetração são o que distinguem o estupro de outras formas de violência sexual.

Nos contextos nacionais e locais, a definição de estupro varia de acordo com a lei penal e a lei processual penal de cada jurisdição. Em geral, atos de estupro são atos de penetração para os quais o consentimento não é dado livremente e/ou que foi obtido pelo uso da força, violência ou coerção. Uma legislação abrangente, para criminalizar o estupro e todas as outras formas de violência sexual e de gênero, é um pilar importante de acesso à justiça para as vítimas. Por esse motivo, as  Estratégias e Medidas Práticas Modelo para a Eliminação da Violência contra a Mulher no Campo da Prevenção da Criminalidade e da Justiça Penal invocam os Estados-Membros a “revisar, avaliar e atualizar suas leis, políticas, códigos, procedimentos, programas e práticas, em especial sua legislação penal, de forma contínua, para assegurar e garantir sua utilidade, abrangência e eficácia na eliminação de todas as formas de violência contra a mulher e remover as disposições que permitam ou tolerem a violência contra a mulher ou que aumentem a vulnerabilidade ou possibilidade de revitimização das mulheres que foram vítimas de violência” (Assembleia Geral das Nações Unidas, 2011, parag. 14(a)). 

As regras internacionais de direitos humanos e vários padrões e normas de justiça criminal das Nações Unidas também abordaram a questão da “vitimização secundária” de sobreviventes no processo penal. De particular importância aqui é a definição fornecida no Estratégias e Medidas Práticas Modelo para a Eliminação da Violência contra a Mulher no Campo da Prevenção da Criminalidade e da Justiça Penal das Nações Unidas, no qual a vitimização secundária é definida como “a vitimização que não é consequência direta de um ato criminoso, mas do tratamento inadequado que a vítima recebe das pessoas ou instituições” (Assembleia Geral das Nações Unidas, 2011, Resolução 65/228 da Assembleia Geral, parágrafo 15 (c), nota de rodapé 22). Para garantir uma administração justa da lei relacionada ao estupro e à agressão sexual, as regras que regem a forma como os crimes são investigados e processados ​​devem respeitar os direitos e o bem-estar da vítima, bem como o direito a um julgamento justo do suposto autor. Isso inclui, por exemplo, garantir que a vítima não seja inquirida diretamente pelo agressor; que a vítima possa apresentar provas em privado ou, quando possível, por meio de vídeo, em vez de ser forçada a encarar o agressor pessoalmente; que a identidade e a privacidade da vítima sejam protegidas e que a proteção efetiva daquelas que testemunhem esteja disponível quando houver ameaças à vida, segurança ou bem-estar da vítima.

Embora muitos dos casos que ajudaram a desenvolver essa área do direito tenham surgido em situações de conflito armado, o princípio básico – que a integridade física e mental e a autonomia sexual devem ser protegidas – foi aplicado tanto em situações de paz quanto em situações conflituosas, como ilustra o vídeo da xícara de chá



[1] [NT]: Em português, as expressões “legítima defesa da honra”, crime cometido por “violenta emoção” logo após a “injusta provocação da vítima”, dentre outras, são comumente utilizadas como teses de defesa. Na falta de uma expressão única, em português, que mescle as expressões acima, ou de uma expressão-padrão adotada pelas legislações de todos os países de língua portuguesa, optou-se por traduzir “provocation” (expressão típica, compartilhada por países de common law) por “injusta provocação”. Tradução semelhante foi feita no Módulo 9, embora naquele Módulo as discussões a respeito dessa tese de defesa sejam mais detalhadas. 

 

Estupro e escravidão sexual em situações de conflito armado

Embora o estupro e a violência sexual tenham sido entendidos como uma violação das leis da guerra por décadas, esses crimes foram aceitos como uma faceta infeliz, mas inevitável, da guerra.

 Nos anos 1990, durante a guerra na ex-Jugoslávia e no genocídio em Ruanda, as advogadas feministas chamaram a atenção para o estupro e a escravidão sexual infligida a mulheres e meninas, e buscaram justiça. Muitas vezes, esses crimes terminavam com o assassinato de mulheres e meninas. A convincente necessidade de garantir justiça às vítimas desses crimes foi uma inspiração para garantir que o Tribunal Penal Internacional – suas definições de crimes e forma de trabalhar – permitisse às vítimas de violência sexual buscar justiça.

 Além disso, durante a década de 1990, um movimento começou a abordar a situação de mulheres e meninas que haviam sido escravizadas pelo exército japonês durante a Segunda Guerra Mundial e submetidas a vários estupros – forçadas a se tornarem “mulheres de conforto” – um eufemismo que mascara a extensão da tortura à qual essas mulheres e meninas foram submetidas por anos. Após a guerra, essas mulheres ficaram altamente estigmatizadas e traumatizadas. A maioria não conseguiu recuperar sua saúde e bem-estar e seguiu adiante constituindo suas próprias famílias. Essas mulheres buscaram um pedido de desculpas do governo japonês por seu sofrimento de uma vida e, em 2000, sem que nenhum pedido de desculpas estivesse à vista, elas estabeleceram um tribunal para apresentar evidências de suas experiências e estabelecer responsabilidades. 

Também em 2000, o Conselho de Segurança das Nações Unidas adotou sua primeira Resolução sobre mulheres, paz e segurança, que instou os Estados e agências das Nações Unidas a priorizar a prevenção da violência sexual e promover a participação de mulheres e meninas na consolidação e construção da paz. 

Desde o início, advogadas e ativistas feministas têm trabalhado com sobreviventes de muitos conflitos diferentes para buscar justiça e reparação, incluindo a assistência médica e compensação. 

Nos últimos anos, reconheceu-se que as abordagens da justiça criminal não são suficientes para, por si só, impedir a violência sexual em situações de conflito. O governo do Reino Unido, juntamente com a atriz Angelina Jolie, sediou uma cúpula global em 2014, da qual participaram chefes de Estado, ministros, sobreviventes de violência sexual e organizações da sociedade civil. Esta cúpula foi o início de um processo para aumentar a conscientização sobre o assunto e estimular uma ação internacional para treinar militares para aprimorar o respeito pelas leis existentes contra a violência sexual e assegurar justiça e reparação às vítimas. Garantir reais mudança na prática é uma questão complexa – é necessário mais trabalho para garantir a prevenção da violência sexual em situações de conflito armado. 

Para mais informações sobre a realidade da violência sexual relacionada a situações de conflito, consulte o site da Fundação do Dr. Denis Mukwege. Mukwege é um médico eminente que administra o hospital Panzi na República Democrática do Congo (RDC), desde 1999. Nas últimas décadas de guerra na RDC, o Dr. Mukwege tratou dos ferimentos de milhares de sobreviventes de violência sexual – incluindo muitas crianças, além de adultas – e defendeu uma reparação abrangente para as sobreviventes. Em 5 de outubro de 2018, o Dr. Mukwege recebeu o Prêmio Nobel da Paz por esta vida de trabalho dedicada a sobreviventes de violência sexual.

As crianças nascidas de estupro perpetrado durante a guerra e suas mães tendem a ser altamente estigmatizadas e têm necessidades complexas de justiça e reparação.

 

Uma abordagem de direitos humanos para vários tipos de violência contra mulheres e meninas

Esta seção permite um exame mais minucioso de cinco aspectos da violência contra as mulheres e meninas que foram escolhidos devido à prevalência particularmente alta (violência doméstica, violência online e assédio nas ruas) e/ou também porque os estudantes provavelmente têm a mesma idade daquelas que vivenciaram essas formas de violência (violência contra mulheres estudantes na universidade, violência online ou casamento infantil) ou são apenas alguns anos mais velhos e, portanto, provavelmente conseguem considerar a situação dessas mulheres com discernimento e empatia.

Esses cinco assuntos ilustram a abordagem de direitos humanos em relação à violência contra mulheres e meninas, refletindo a exigência da Declaração Sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres “de atuar com a devida diligência a fim de prevenir, investigar e, em conformidade com a legislação nacional, punir os atos de violência contra as mulheres perpetrados quer pelo Estado, quer por particulares” (Resolução 48/104 da Assembleia Geral, Artigo 4º (c)). A investigação e o processo penal geralmente exigem leis penais e medidas práticas para garantir o acesso à justiça. A prevenção pode ser feita de várias maneiras. Nos casos em que se sabe que uma mulher ou menina está em risco, os “remédios” do direito civil podem ser apropriados – liminares exigindo que empresas de Internet retirem conteúdo violento relacionado a mulheres e meninas, por exemplo, em casos de ameaças online de estupro ou de abuso de imagens; injunções para impedir que uma criança seja levada ao exterior para um casamento forçado; ordens de proteção para mulheres e meninas sabidamente em risco de violência doméstica. A prevenção da violência pode incluir uma variedade de serviços que deem apoio psicológico a mulheres e meninas, para que elas sejam empoderadas a tomar decisões sobre a melhor maneira de deixar uma situação de violência. A educação é um outro método de prevenção da violência, corrigindo as atitudes que apoiam a violência. O UNODC desenvolveu uma série de ferramentas E4J para aprimorar o ensino primário, secundário e superior sobre a igualdade de gênero. Além deste Módulo, os professores podem desejar consultar o Módulo 9 sobre Gênero no Sistema de Justiça Criminal. Um recurso desenvolvido para uso de estudantes e professores do ensino primário, o videogame Chuka, é projetado para quebrar o silêncio sobre a violência de gênero. 

Em 2018, a Relatora Especial das Nações Unidas sobre violência contra a mulher, suas causas e consequências, redigiu um relatório sobre a violência online contra mulheres e meninas segundo uma perspectiva de direitos humanos. Nele a Relatora Especial identifica as questões jurídicas e práticas centrais:

“As formas de violência contra as mulheres online e facilitadas pelas tecnologias de informação e comunicação (TIC) se tornaram cada vez mais comuns, principalmente com o uso, diário e em qualquer lugar, de plataformas de mídia social e de outras aplicações técnicas (A/HRC/32/42 e Corr.1). Na era digital de hoje, a Internet e as TIC estão criando, rapidamente, novos espaços sociais digitais e transformando a maneira como as pessoas se encontram, se comunicam e interagem e, com isso, de forma mais geral, remodelam a sociedade como um todo. Esse desenvolvimento é especialmente crítico para as novas gerações de meninas e meninos, que estão começando suas vidas usando extensivamente novas tecnologias para mediar os seus relacionamentos, afetando todos os aspectos de suas vidas. Na seção abaixo, a Relatora Especial considera o fenômeno da violência contra as mulheres facilitado pelas novas tecnologias e espaços digitais a partir de uma perspectiva de direitos humanos. 

Embora os principais instrumentos internacionais de direitos humanos, incluindo aqueles sobre os direitos das mulheres, tenham sido elaborados antes do advento das TIC, eles fornecem um conjunto global e dinâmico de direitos e obrigações com potencial transformador e têm um papel fundamental a desempenhar na promoção e proteção dos direitos humanos fundamentais, incluindo o direito da mulher de viver uma vida livre de violência, com liberdade de expressão, privacidade, acesso a informações compartilhadas por meio das TIC e outros direitos. 

Quando mulheres e meninas têm acesso e usam a Internet, elas enfrentam formas e manifestações de violência online que fazem parte de um continuum de formas múltiplas, recorrentes e inter-relacionadas de violência de gênero contra as mulheres. Apesar dos benefícios e do potencial empoderador da Internet e das TIC, mulheres e meninas, em todo o mundo, têm expressado cada vez mais sua preocupação com conteúdo e comportamentos online nocivos, sexistas, misóginos e violentos. Portanto, é importante reconhecer que a Internet tem sido utilizada em um ambiente mais amplo de discriminação estrutural generalizada e sistêmica, e de violência de gênero contra mulheres e meninas, o que acaba por formatar seu acesso a, e uso da, Internet e outras TIC. Formas emergentes de TIC têm facilitado novos tipos de violência de gênero e desigualdade de gênero no acesso às tecnologias, que impedem mulheres e meninas de gozarem plenamente de seus direitos humanos e sua capacidade de alcançar a igualdade de gênero” (parag. 12-14). 

Essa questão é tratada extensivamente no Módulo 12 sobre Crimes Cibernéticos Interpessoais da Série de Módulos Universitários do E4J sobre Crime Cibernético.

Casamento Infantil

O Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) descreve o “casamento infantil, precoce e forçado” (CIPF) como “uma violação dos direitos humanos e uma prática nociva que afeta desproporcionalmente mulheres e meninas em todo o mundo, impedindo-as de viver suas vidas livres de todas as formas de violência. O CIPF ameaça a vida e o futuro de meninas e mulheres em todo o mundo, privando-as de sua autonomia para tomar decisões sobre suas vidas, interrompendo sua educação, tornando-as mais vulneráveis ​​à violência, discriminação e abuso, e impedindo sua participação total nas esferas econômica, política e social. O casamento infantil também é frequentemente acompanhado por gravidez e parto precoces, resultando em taxas de morbidade e mortalidade maternas acima da média. O CIPF frequentemente resulta em mulheres e meninas tentando fugir de suas comunidades ou cometer suicídio para evitar ou escapar do casamento. A organização Girls not Brides identifica o casamento infantil como “qualquer casamento formal ou união informal em que uma ou ambas as partes tenham menos de 18 anos de idade”.

A prática é prevalente em todas as regiões do mundo, em países desenvolvidos e em desenvolvimento, e em todas as tradições religiosas. O casamento infantil de meninas enfatiza e mantém a desigualdade das meninas, uma vez que se baseia, amplamente, na ideia de que o único ou principal papel apropriado na vida de meninas e mulheres é enquanto esposas e mães, independentemente dessa a ser ou não a sua preferência para as suas próprias vidas. Algumas tradições exigem que uma garota se case assim que a menstruação começa – na puberdade, as meninas são consideradas adultas, mesmo sendo muito jovens para experiências e obrigações adultas. Frequentemente, leis religiosas ou tradicionais permitem que uma garota com menos de 18 anos se case se ela estiver grávida ou se tiver tido relações sexuais com um parceiro – ou mesmo se ela foi estuprada. Essas tradições se baseiam no estereótipo sexista de que “castidade” ou “virgindade” são valores importantes para as meninas, e que a preservação das regras sociais e morais é mais importante do que proteger as crianças de agressões e permitir que elas tenham seus direitos humanos, particularmente seus direitos à integridade física e mental. As meninas são mais propensas a serem forçadas a se casar precocemente em situações de pobreza e insegurança, pois as famílias tendem a querer levar a garota para outra família, a fim de "protegê-la" de assédio ou agressão sexual (por exemplo, em campos de refugiados) ou onde eles não têm recursos suficientes para alimentar, vestir e educar todos os seus filhos.

O casamento é um contrato legal que pode ter ramificações importantes em termos do direito da criança de continuar seus estudos, trabalhar ou escolher seu próprio caminho na vida. O Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (Comitê CEDAW) recomenda como idade mínima de casamento de 18 anos para meninos e meninas (CEDAW, 1994, Recomendação Geral N. 21, parag. 36; ver também A / HRC / 26/22).

Ao mesmo tempo, as normas internacionais de direitos humanos reconhecem a autonomia da criança e a evolução da capacidade de tomar decisões sobre suas próprias vidas, e os Comitês sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres e sobre os Direitos da Criança preveem que “em circunstâncias excepcionais, pode ser permitido o casamento de uma criança madura e capaz menor de 18 anos, sempre e quando a criança tenha, no mínimo 16 anos de idade, e tais decisões sejam tomadas por um juiz com base em motivos excepcionais legítimos definidos por lei e na prova de maturidade, sem deferência à cultura ou à tradição” (Comitê CEDAW e Comitê dos Direitos da Criança (2014). Observação Geral Conjunta n. 31, parag. 20).

Assédio de mulheres e meninas em locais públicos

O assédio de mulheres e meninas em locais públicos inclui o abuso verbal – insultos, comentários sexualmente explícitos, sorrisos maliciosos, assobios e abuso físico. Mulheres e meninas são frequentemente seguidas, seu caminho é bloqueado e são sujeitas a toques e agressões sexuais, ou a homens e meninos expondo seus órgãos genitais ou se masturbando. 

Em alguns contextos, esses comportamentos tendem a ser minimizados e considerados como como “algo normal”, mas é importante que esses atos sejam reconhecidos e tratados como formas de violência contra mulheres e meninas. 

O site Hollaback, que faz campanha contra o assédio nas ruas, expõe as razões pelas quais o assédio de mulheres e meninas em locais públicos é um grande problema:

Imagine uma sociedade em que todos nós possamos desfrutar de um concerto, uma saída à noite, uma corrida pelo campus ou uma carona para casa livre do assédio de estranhos. Imagine uma comunidade global onde qualquer pessoa possa acessar seu site favorito e expressar suas opiniões de maneira aberta, livre e respeitosa, sem ser ridicularizada ou ameaçada.

Esse mundo é possível e, com sua ajuda, podemos ajudar a fazer isso acontecer.

Devemos todos ser capazes de nos mover livremente e participar plenamente do mundo à nossa volta, confortáveis ​​em nossa própria pele, independentemente de nossa aparência ou de como nos identificamos. O assédio – seja online, nas ruas, na escola ou no supermercado – corrói a nossa capacidade de nos movermos em espaços públicos. Isso sufoca nosso senso de liberdade e cria medo e desconfiança naqueles que nos rodeiam.

As pessoas costumam pensar que o assédio é apenas uma interação entre o assediador e o alvo. Sabemos que isso não é verdade. Muitos incidentes de assédio, bem como a cultura geral da violência que ela alimenta, podem ser silenciosamente perpetuados por pessoas que testemunham ou sabem do abuso e não fazem nada.

Junte-se a nós nesse movimento para construir um mundo mais seguro, onde todos tenham o direito de ser quem são. O que quer que isso signifique naquele dia, naquela hora, naquele minuto.

Eu prometo fazer algo quando vir alguém sendo assediado em qualquer espaço público.

Eu pretendo me educar sobre como é o assédio, como ele afeta as pessoas de maneiras diferentes, com base em suas identidades, e o que posso fazer para ajudar – a longo e a curto prazo.

Prometo compartilhar minha experiência de assédio em espaços públicos e incentivar meus entes queridos a fazer o mesmo, para que outras pessoas possam saber que não estão sozinhas.

Fonte: Hollaback n.d.

Apenas nos últimos anos se examinou em detalhe e tratou como um problema de direitos humanos o assédio de mulheres e meninas em público nos. A Comissão Internacional de Juristas produziu um Guia aos Práticos sobre o Acesso das Mulheres à Justiça em caso de Violência de Gênero (2016). Este guia explica a abordagem de direitos humanos para esse problema:

Assédio sexual em locais públicos: “assédio de rua” ou “assédio na rua”

O assédio sexual em locais públicos tem recebido relativamente pouca atenção nos padrões e na jurisprudência de direitos humanos, mas várias iniciativas destacaram os efeitos adversos do assédio de rua. Diversas iniciativas importantes que usam aplicativos da Internet para registrar atos de assédio de rua [como o Hollaback] chamaram a atenção para a maneira como o assédio sexual nas ruas ameaça as mulheres e as leva a limitar suas atividades.

No caso da Iniciativa Egípcia de Direitos e Interesses Pessoais vs. Egito (Comunicado n. 323/06), a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos examinou o assédio sexual de vários tipos enquanto violência de gênero, que violam o Artigo 2.º e o Artigo 18º (3) da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (1986) (Iniciativa Egípcia de Direitos e Interesses Pessoais vs. Egito, parag. 166-7).

Nas “Conclusões Negociadas” da Comissão sobre o Status da Mulher, sobre a Eliminação e Prevenção de todas as Formas de Violência contra Mulheres e Meninas, a Comissão das Nações Unidas sobre o Status da Mulher expressou “profunda preocupação com a violência contra mulheres e meninas nos espaços públicos, incluindo assédio sexual, especialmente quando usado para intimidar mulheres e meninas que estão exercendo qualquer de seus direitos humanos e liberdades fundamentais ” (2013, parag. 23).

A Comissão recomendou que os Estados ajam para:

  • Melhorar a segurança das meninas na escola, bem como no trajeto de ida e volta para/da a escola;
  • Estabelecer um ambiente seguro e livre de violência, melhorando a infraestrutura, como o transporte;
  • Fornecer instalações sanitárias separadas e adequadas e melhor iluminação, parques infantis (playgrounds) e ambientes seguros;
  • Adotar políticas nacionais para proibir, prevenir e combater a violência contra crianças, especialmente meninas, incluindo assédio sexual, bullying e outras formas de violência; 
  • Realizar atividades de prevenção de violência nas escolas e comunidades, estabelecendo e aplicando penalidades em caso de violência contra meninas; 
  • Aumentar as medidas para proteger mulheres e meninas da violência e do assédio, incluindo assédio sexual e bullying, em espaços públicos e privados; e
  • Abordar as temáticas de segurança e proteção através de: 
    • Meios de comunicação social e interativa;
    • Sensibilização e envolvimento das comunidades locais;
    • Adoção de leis e políticas de prevenção à criminalidade;
    • Adoção de programas como a iniciativa Cidades Seguras das Nações Unidas; e
    • Melhor planejamento urbano, infraestrutura, transporte público e iluminação pública (Comissão sobre o Status da Mulher, 2013). 

Violência Doméstica

O Tópico 3 oferece uma visão geral da estrutura internacional de direitos humanos no que se refere à violência doméstica – observando a obrigação dos Estados de criminalizar, investigar e processar atos de violência doméstica. As respostas da justiça criminal não atendem a toda a gama de necessidades e direitos para mulheres e meninas sujeitas à VSBG (violência sexual baseada no género), e o Estudo de Caso 3ilustra a importância dos serviços sociais e de saúde para mulheres e meninas aquando da eclosão da violência de gênero. 

Embora essa ilustração seja esclarecedora – especialmente em situações em que a austeridade econômica nas políticas macroeconômicas levou a cortes nos serviços às vítimas – é importante lembrar que a ação do Estado para combater a violência doméstica faz parte dos deveres legais do Estado de garantir os direitos humanos, e esse seria o caso ainda que a abordagem baseada em direitos não oferecesse resultados. 

Violência contra mulheres estudantes universitárias

Nos últimos anos, tem havido uma atenção crescente à importância das estratégias de prevenção nas universidades, para evitar que mulheres e meninas sejam alvos da VSBG (violência sexual baseada no género), no campus ou por meio de fóruns online associados a grupos de colegas da universidade. O artigo a seguir, de Helen Mott (2016), explora essas temáticas em detalhes, questionando se as universidades estão fazendo o suficiente para impedir a violência contra as mulheres (Mott, 2016).  

Como Mott (2016) aponta, as universidades são um microcosmo da sociedade mais ampla e instituições vivas em si mesmas – como os Estados, as universidades precisam tomar medidas para avaliar a situação, por meio de relatórios éticos e seguros, e responder por meio do estabelecimento de políticas e procedimentos. Além disso, as universidades precisam fazer esforços positivos para criar uma cultura onde a violência, o bullying e a coerção de todos os tipos não sejam toleráveis. Dado que os autores da violência contra as estudantes são frequentemente colegas, mas também funcionários que estão em posições de poder em relação a suas vítimas, as universidades precisam ter políticas efetivas para lidar com as irregularidades. É importante enfatizar que a violência contra as mulheres nas universidades precisa ser tratada pela polícia e pelo Ministério Público, bem como pelas autoridades universitárias.

 
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