Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico um: Conceito, valores e origem da justiça restaurativa

 

Antes de passar ao conceito de Justiça Restaurativa, o presente Módulo começa por explorar o modo através do qual o sistema de justiça penal dito tradicional procura cumprir a sua função de realização de Justiça.

Sistema de justiça penal e legislação

Os sistemas de justiça penal tradicionais centram-se sobretudo na aplicação da lei, na determinação da culpa dos agentes e na aplicação da pena ao caso concreto. Certos factos são classificados como "crimes", porque são considerados crimes contra a sociedade em geral e não apenas contra vítimas individuais. Estão em causa comportamentos considerados como infrações ou faltas de natureza pública e não, meramente, do foro privado, pelo que o sistema de justiça penal responde e aplica a lei em nome da sociedade em geral. As respostas ao crime por parte da justiça criminal dita tradicional tendem a centrar-se na punição, prevenção, denúncia, retribuição e no garantir da segurança dos cidadãos face à violação da lei, considerações que devem ser ponderadas pelo tribunal para efeitos da determinação da medida concreta da pena. Convém, todavia, notar que o objetivo de reabilitação, em particular no caso das crianças, tem ganhado relevância nas últimas décadas. O objetivo de reabilitação está presente, por exemplo, na Convenção sobre os Direitos da Criança (1990), que valoriza o recurso a medidas alternativas ao processo judicial, sempre que tal se revele apropriado (Artigo 40º(3)(b), bem como a reintegração da criança, Artigo 40º(1)). 

A punição é a principal forma de a sociedade denunciar um certo ato criminoso como sendo uma violação de normas comuns, normas de cuja observância depende a sobrevivência da sociedade. A severidade da pena deve ser proporcional à gravidade do ato cometido, corrigindo assim o desequilíbrio criado pela infração. Como a punição se refere à imposição de um mal ou à restrição de certas liberdades, que devem ser aplicadas de modo cuidadoso e equitativo, o procedimento de justiça criminal tem uma série de salvaguardas jurídicas incorporadas. Para ser considerada "justa", a punição deve ser proporcional à gravidade da ofensa.

Nas décadas recentes, os esforços para reforçar o papel das vítimas no processo penal têm conduzido à introdução de diversos mecanismos para as vítimas “informarem o tribunal do dano que lhes foi causado pela ofensa” (Erez, 1994, p.63). Embora estes mecanismos variem em função do sistema legal e da legislação aplicada em cada país, a verdade é que os sistemas de justiça penal tradicionais oferecem pouca margem de manobra para que a vítima e o ofensor possam estabelecer diálogos, com o objetivo de restabelecer o respeito e a confiança. As medidas de proteção das vítimas, introduzidas através de reformas nela centradas, foram consideradas parciais, no sentido em que as vítimas ainda poderiam experienciar situações de vitimização secundária no contexto do processo judicial e/ou em resultado de medidas que visam reforçar os direitos da vítima (cf. Dignan, 2005). Por exemplo, as expetativas da vítima não foram satisfeitas nos casos em que a indemnização foi ordenada mas não paga, ou em que a indemnização pouco contribui para satisfazer as necessidades psicológicas e emocionais das vítimas. Esta ideia de que a aplicação efetiva dos direitos da vítima é limitada, resulta também de um estudo intitulado “Victim and Witness Satisfation Survey”, levado a cabo no Reino Unido, que demonstra que apenas 35% das vítimas prestaram testemunho no tribunal (Wood et al., 2015). O mesmo estudo demostra ainda que um quinto das vítimas reportou sentir-se insatisfeita com o conteúdo da informação recebida durante o processo penal e que 19% das vítimas manifestaram insatisfação em relação ao serviço prestado pelo Ministério Público (Crown Prosecution Service) (Wood et al., 2015). Para mais informações, ver Módulo 11 sobre Acesso à Justiça Pelas Vítimas.

 

Dar resposta à necessidade de justiça

A Justiça Restaurativa é uma abordagem do crime que se centra na tentativa de reparar os danos causados pela prática do crime, envolvendo aqueles que por ele foram afetados. No âmbito da Justiça Restaurativa, o crime é percebido não só como uma infração legal que demanda condenação, mas também como uma perturbação das relações interpessoais, que exige reparação. As pessoas envolvidas podem ficar com sequelas e necessidades emocionais, psicológicas, espirituais e materiais, que podem ser apelidadas de “necessidades de justiça" (justice needs), necessidades que têm de ser obrigatoriamente abordadas para que as vítimas possam sentir que se fez justiça.

Vítimas

Em geral, são as vítimas que têm as necessidades mais intensas. Ser o alvo de um ato deliberado de crueldade perpetrado por outra pessoa pode ter um profundo impacto no seu bem-estar e no seu amor-próprio. Muitas vezes as vítimas sentem-se desorientadas, humilhadas, usadas, zangadas e inseguras. O seu sentido de liberdade é constrangido por medos e ansiedades, por raiva e amargura, e por vezes até por limitações físicas ou materiais que o crime ditou. O reviver do momento do crime e/ou a lembrança do rosto do agressor podem condicionar toda a vida posterior da vítima.

Historicamente, o sistema de justiça penal não tem dado grande atenção às necessidades das vítimas. Isto porque, nos sistemas criminais modernos, se considera que a vítima do crime é o Estado e não a concreta pessoa que efetivamente o sofreu, e a acusação criminal decorre primacialmente do facto de se ter infringido a lei, e não da circunstância de se ter lesado uma pessoa. O papel da pessoa que sofreu o crime fica reduzido a oferecer provas que suportem a acusação e, para além deste papel limitado, normalmente não lhes é atribuído um papel ativo no processo. Muitas vezes as vítimas nem sequer necessitam de estar presentes durante o julgamento, porque o processo judicial não é verdadeiramente sobre elas, mas sobre a aplicação da lei. Neste contexto, quando as vítimas recorrem aos tribunais em busca da realização da justiça – como em geral se faz instintivamente – ficam muitas vezes desapontadas.

Ofensores

Os ofensores também têm necessidades de justiça. Carecem de um processo e julgamento justos. Precisam de assumir as consequências dos seus atos e ser responsabilizados por eles. Mas também necessitam de ser reconhecidos enquanto pessoas e não ser identificados apenas pelos seus erros, e muitas vezes precisam de ajuda para lidar com o seu passado de traumas, desvantagens e vitimizações. Também necessitam de uma oportunidade para poder reparar o crime e ser aceites de novo na sociedade.

De um modo geral, o sistema de justiça tenta conscientemente atender às necessidades dos ofensores, em especial no que respeita à necessidade de um processo justo. Contudo, na prática, os objetivos dominantes do sistema de justiça são o apuramento da existência de culpa e a determinação da espécie e quantidade da pena, o que muitas vezes impede qualquer tentativa de considerar a individualidade do ofensor e dar resposta às suas necessidades.

Muitas vezes, também, os amigos, a família, os colegas, pessoas significativas e outros membros da comunidade, quer do lado da vítima quer do lado do ofensor, são igualmente afetados pela prática do crime (cf. UNODC Handbook on Justice for Victims, 1999, e o Módulo 11 sobre Acesso à Justiça Pelas vítimas). Na realidade, o crime praticado pode condicionar as suas vidas de formas muito variadas. Embora o sistema de justiça vise garantir os interesses da comunidade em geral, a verdade é que pouco faz para a envolver e/ou para dar resposta às causas do comportamento que levaram ao crime e às suas consequências.

Nestes termos, o crime gera uma gama complexa de necessidades de justiça para as pessoas envolvidas – necessidades que o sistema de justiça tradicional tenta, sem sucesso, satisfazer adequadamente. Mas isso não quer dizer que o sistema seja totalmente indiferente a essas necessidades. Para que possam alcançar a realização de justiça, as vítimas necessitam muitas vezes que os ofensores as ouçam sobre a sua dor, que respondam às suas perguntas, que reconheçam a sua dignidade, que confirmem que não as voltarão a atacar e que por isso estão seguras. Já os ofensores precisam que a vítima partilhe as consequências dos seus atos, que saiba que estão arrependidos e que ela aceite as suas desculpas, dando-lhes a oportunidade de reparar o mal causado. Por outras palavras, vítimas e ofensores têm um papel central no processo curativo do outro – ambos contribuem para alcançar as mútuas necessidades de justiça e para promover uma transformação no seu relacionamento, que se pode assim tornar mais favorável.

É neste ponto que a Justiça Restaurativa traz algo de especial. Ela aproxima aqueles que foram afetados pela prática do crime, permitindo que sejam partilhadas as necessidades que surgiram, que identifiquem as obrigações que agora existem e, em conjunto, encontrem a melhor forma de reparar os danos e de prevenir a reincidência. São estes os pontos mais relevantes para as pessoas envolvidas e bem assim para a sociedade.

 

O que é a Justiça Restaurativa?

Como é que o conceito de Justiça Restaurativa pode ser compreendido e quais os valores e princípios caracterizadores desta teoria de justiça?

A Justiça Restaurativa é uma forma de responder ao crime, mas também a infrações, injustiças e conflitos de outras naturezas, e está primordialmente focada na reparação dos danos ocasionados pela conduta e em restaurar, na medida do possível, o bem-estar de todos os envolvidos. A Justiça Restaurativa pode ser vista como uma teoria de justiça interativa (relational theory of justice), porque põe a tónica nos planos da reposição do respeito, igualdade e dignidade das relações afetadas pela infração, sendo denominada de “restaurativa” porque utiliza processos restaurativos, isto é, processos que reparam a responsabilidade perante o crime, o seu sentido de propriedade e o poder de decisão daqueles que são diretamente afetados pela prática da infração – vítimas, ofensores, os seus apoiantes e a comunidade em geral. Em vez de delegar no Estado ou nos profissionais do sistema de justiça toda a responsabilidade atinente ao crime, esta teoria de justiça pretende envolver os participantes do evento danoso na resolução das suas consequências.

A Justiça Restaurativa também é chamada de restaurativa porque é orientada por valores restaurativos, que podem ser entendidos como aqueles que estimulam processos colaborativos, baseados no consenso, em detrimento de formas adversariais de resolução de conflitos que caracterizam a justiça tradicional (Robins, 2009). Quando as pessoas que causaram os danos são convidadas a reconhecer os seus erros, a ouvir de forma respeitosa aqueles que magoaram e levadas a honrar o seu dever de reparar o dano, são dados passos significativos para restaurar a dignidade e satisfazer as necessidades de todos os envolvidos. Para além disso, a Justiça Restaurativa também se baseia na teoria feminista relacional, baseada nas relações humanas e "na compreensão do eu como constituído nas e através das relações com os outros" (Llewellyn, 2012). A Justiça Restaurativa encara a infração em termos relacionais, como "danos causados aos indivíduos na relação com os outros” (Llewellyn, 2012).

A definição de Justiça Restaurativa citada nas Palavras-chave deste módulo, inclui uma série de valores chave, tais como participação voluntária, falar com verdade, a criação de um espaço seguro e digno, um compromisso sério para reparar e a preocupação em clarificar a responsabilidade pelos danos causados. Esta não é uma lista exaustiva dos valores fundamentais, mas destaca a relevância crucial dos valores enunciados no âmbito do processo restaurativo.

O respeito detém particular importância (Zehr e Gobar, 2003). As ofensas criminais, e outras possíveis formas de injustiça, são experienciadas fundamentalmente como um ato de desrespeito, como uma incapacidade de valorizar a dignidade, a identidade, os direitos e os sentimentos inerentes do outro enquanto pessoa. Este desrespeito só poderá ser remediado pelo respeito, pelo claro reconhecimento por parte do ofensor de que a vítima não merecia ter sido tratada do modo como foi, e que os direitos, sentimentos e interesses desta são tão relevantes quanto os dele. “A Justiça Restaurativa oferece uma visão alternativa da justiça criminal e posiciona corretamente os interesses das vítimas no seu cerne” (Chan, 2013, p.19).

O reconhecimento, por parte do ofensor, do mal que causou é crucial para a vítima, e isso também implica a assunção de responsabilidade relativamente às consequências dos seus atos (Zehre Gobar, 2003). Quando o sistema de justiça penal atribui a responsabilidade a alguém, isso implica que lhes seja aplicada a pena que merecem, independentemente de assumirem, ou não, a responsabilidade pelo que ocorreu. Na Justiça Restaurativa, a assunção de responsabilidade tem um carácter muito mais exigente. Ela exige dos ofensores três elementos: a aceitação pessoal da responsabilidade por ter infligido um dano; a vontade de testemunhar na primeira pessoa as consequências das suas ações nas vidas daqueles que foram ofendidos; e uma assunção ativa de responsabilidade, no sentido de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para promover a reparação (Zehr e Gobar, 2003).

 

Origem e desenvolvimento da Justiça Restaurativa

O carácter dialogante e reparador da Justiça Restaurativa não é único. Valores e processos similares estão presentes em várias culturas indígenas. Um dos pioneiros da Justiça Restaurativa, Howard Zehr, sustentou que antes do surgimento do Estado-Nação, as infrações eram primeiramente vistas como uma violação das relações pessoais e não como uma violação da lei. Esse período da justiça comunitária era muito menos punitivo e tinha ínsito um ideal de reparação. As características pessoais, costumeiras e de negociação dessa justiça comunitária foram tendencialmente substituídas por um sistema de justiça mais institucionalizado e centralizado. Em vez de comunidades, o Estado tinha agora a responsabilidade de aplicar o sistema legal e de punir (Zehr, 1990).

Diferentemente, a maioria das tradições indígenas encarava as infrações em termos eminentemente comunitários e não tanto jurídicos. Isto criou uma responsabilidade coletiva para responder aos danos causados pela infração, envolvendo uma rede muito mais ampla de relações em torno do ofensor e da vítima. Essas tradições influenciaram o moderno desenvolvimento da Justiça Restaurativa, como destaca o preâmbulo dos Princípios Básicos (2002): a Justiça Restaurativa "baseia-se muitas vezes em formas tradicionais e indígenas de justiça, que veem o crime como algo fundamentalmente prejudicial às pessoas". Há mesmo quem considere que um dos maiores danos provocados pelo colonialismo europeu foi substituir os mecanismos indígenas de regulação dos conflitos e a pretensão social por um sistema legal abstrato, baseado na lei de controlo e coerção estatal.

O conceito moderno de Justiça Restaurativa foi desenvolvimento em 1970, na América do Norte, quando surgiu o primeiro programa de Justiça Restaurativa. Em 1974, dois técnicos responsáveis pela liberdade condicional / livramento condicional (no Brasil) (probation) em Kitchener, Canadá, juntaram vítimas e ofensores de um caso de vandalismo, para lidar diretamente com o crime e discutir formas de reparar o dano. Esta experiência bem-sucedida levou ao estabelecimento do “Victim-Offender Reconciliation Program” (VORP), sob os auspícios do Comité Menonita Cristão (Christian Mennonite Committee), e esteve na base do surgimento de programas similares na América do Norte. À medida que o programa cresceu e se desenvolveu nas décadas seguintes, gerou um novo paradigma para pensar sobre o crime, que acabou por ficar conhecido como "Justiça Restaurativa".

Na mesma altura em que a Justiça Restaurativa se desenvolvia na América do Norte, decorriam fenómenos semelhantes na Europa. O criminólogo norueguês Nils Christie, um dos representantes do movimento abolicionista no Norte da Europa, deu voz à sua crítica ao sistema de justiça penal no seu artigo "Conflicts as Property" (1977). Ele sustentou que o conceito de crime era uma abstração e que deveria ser entendida como conflitos entre pessoas reais. Além disso, sustentou que as pessoas têm um direito de propriedade sobre os seus conflitos, são proprietárias dos seus conflitos. Todavia, o que resulta do processo de justiça criminal é que os profissionais do sistema de justiça subtraíram este direito sobre os conflitos aos seus verdadeiros proprietários, negando assim às vítimas e aos ofensores o direito de participar na resolução do seu caso.

Christie argumentou que os processos de justiça tradicional não dão resposta às necessidades das vítimas, dos ofensores e da comunidade em geral e que aqueles que têm um interesse pessoal no caso devem ter a possibilidade de se apropriar dos seus conflitos pessoais, para melhor satisfazerem as suas necessidades. O pensamento abolicionista de Christie e de outros autores (por exemplo, Louk Hulsman e Herman Bianchi), contribuiu para a teoria da Justiça Restaurativa e influenciou o seu desenvolvimento, particularmente nos países do Norte da Europa e da Europa Central (por exemplo, Noruega, Finlândia, Áustria).

A emergência da Justiça Restaurativa deu-se em uma altura em que eram promovidas reformas e introduzidas inovações na justiça penal, nomeadamente: a influência do movimento dos direitos das vítimas; e as tentativas de reforçar o papel destas no processo penal (a justiça para as vítimas é examinada com mais pormenor no Módulo 11). As abordagens diversificadas e reabilitativas na condenação também tiveram impacto no desenvolvimento da Justiça Restaurativa e, em alguns casos, culminaram na introdução de disposições legislativas para a prestação de serviços de Justiça Restaurativa, particularmente nos casos de crianças em conflito com a lei.

A reforma do sistema de justiça da infância e juventude em Aotearoa, Nova Zelândia – após a aprovação da Lei de 1989 sobre Crianças, Jovens e suas Famílias (Children, Young People and their Families Act) é por vezes interpretada como uma tentativa de recuperar os costumes da cultura Māori para lidar com conflitos familiares ou tribais. Não obstante, foi a tomada de consciência do impacto devastador dos modelos de justiça e de estado social europeus nas crianças Māori que potenciou o ímpeto de mudança na procura de respostas no contexto da justiça juvenil, concretamente respostas mais participativas, baseadas na família e mais compatíveis com os valores indígenas. Isso levou ao surgimento das Conferências de Grupo Familiares (Family Group Conferencing), uma inovação que tem desempenhado um papel significativo na promoção da Justiça Restaurativa no sistema de justiça penal da Nova Zelândia e em outras partes do mundo (para uma análise da influência das Conferências de Grupo Familiares por exemplo na Tailândia, cf. Roujanavong, 2005).

Para além da sua aplicação no domínio da justiça penal, a Justiça Restaurativa tem contribuído para outras áreas em termos práticos, como a proteção da criança, o contexto educativo (cf. por exemplo, Karp e Schachter, 2018; Sellmanet al., 2013; Thorsborne, 2008; Hopkins, 2004), conflitos no local de trabalho (por exemplo, Dekker e Breakey, 2016), conflitos familiares (e.g., Daicoff, 2015), questões ambientais (e.g., Stark, 2016), abuso de idosos (e.g., Groh, 2003), e em contextos pós-conflito (e.g., Aertsen et al., 2012; e Valiñas e Vanspauwen, 2009. Cf. também Braithwaite e Tamim, 2014, para uma análise sobre a utilização da Justiça Restaurativa na Líbia pós-conflito).

Uma limitação significativa no âmbito da Justiça Restaurativa resulta do facto de grande parte da comunidade académica, que reflete sobre práticas restaurativas, ser oriunda ou estar de alguma forma relacionada com os contextos Europeus, da América do Norte e de países como a Austrália e a Nova Zelândia. Consequentemente, são sobretudo os programas restaurativos desses países que são internacionalmente conhecidos. No entanto, os autores também têm notado a importância de se aprofundar a pesquisa sobre práticas restaurativas que se baseiam em processos restaurativos tradicionais ou costumeiros em regiões como a Ásia (Chan, 2013); e a África (cf., por exemplo, Park, 2010, sobre Serra Leoa; Robins, 2009, sobre Uganda; e Kilekamajenga, 2018, sobre a Tanzânia), e países como o Paquistão (cf. Dzur, 2017, por exemplo, para uma entrevista com Ali Gohar). Um dos principais defensores da Justiça Restaurativa, Ali Gohar, trabalhou exaustivamente para destacar a complementaridade entre a Justiça Restaurativa e o sistema indígena de Jirga (uma abordagem comunitária de transformação de conflitos na faixa de Pukhtoon, no Paquistão) (cf., por exemplo, Dzur, 2017; Zehr e Gohar, 2003; e a página eletrónica das Just Peace Initiatives). Ilustrando ainda que os comités de reconciliação baseados na comunidade em Abbotobad, no Paquistão, são mais eficazes quando moldados de acordo com as especificidades locais, por viabilizarem respostas da justiça efetivas e por diminuírem as difíceis tensões dentro da comunidade (cf. o filme, Niazi, 2009).

 

Legislação Internacional sobre Justiça Restaurativa

Os Princípios Básicos das Nações Unidas para Utilização de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria Criminal (2002), são de importância central para a promoção da Justiça Restaurativa a nível mundial, fornecendo normas e salvaguardas sobre o uso da Justiça Restaurativa. Tal como enfatizado nos Princípios Básicos, a Justiça Restaurativa é "uma resposta ao crime que está em evolução e respeita a dignidade e igualdade das pessoas, constrói entendimentos e promove a harmonia social através da superação do crime pelas vítimas, ofensores e comunidades" (Resolução do Conselho Económico e Social 2002/12, preâmbulo).

Além disso, a Declaração das Nações Unidas sobre os Princípios Básicos de Justiça para Vítimas de Crime e Abuso de Poder (1989) sublinha o valor dos processos informais de resolução de conflitos para melhorar a conciliação e gerar reparação para as vítimas (para mais informações, ver o Módulo 11 sobre Acesso à Justiça Pelas Vítimas).

Os valores da Justiça Restaurativa também estão refletidos noutros documentos das Nações Unidas (juridicamente vinculativos), tais como a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça Juvenil - as "Regras de Pequim" (1985), as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil - "Diretrizes de Riade" (1990), as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas Não Privativas de Liberdade "Regras de Tóquio" (1990), e as Regras das Nações Unidas para o Tratamento das Mulheres Presas e Medidas não Privativas da Liberdade para Mulheres Delinquentes - as "Regras de Banguecoque" (2010). Estes documentos encorajam os Estados-Membros a promover um maior envolvimento da comunidade na resposta aos crimes e a reforçarem as formas de diversão processual e as alternativas à prisão.

A Declaração de Doha de 2015 (Resolução GA 70/174) enfatiza a importância da Justiça Restaurativa na resolução de conflitos sociais através do diálogo, de mecanismos de participação comunitária, e ainda o plano da reintegração social de reclusos (Artigos 5º(j) e 10º(d)).

Na Europa, os documentos orientadores adotados pelo Conselho da Europa (CE) e pela União Europeia (UE) promovem o uso da Justiça Restaurativa. A Recomendação do Conselho da Europa (2018) 8 relativa à Justiça Restaurativa em matéria penal, que substituiu a Recomendação (99) 19 relativa à mediação penal, assume particular importância. Esta Recomendação de 2018 visa promover o desenvolvimento e a utilização da Justiça Restaurativa no contexto da justiça penal e desenvolve normas para a sua utilização, incentivando práticas seguras, eficazes e baseadas em evidências científicas. Além disso, o documento visa integrar uma compreensão mais ampla da Justiça Restaurativa e dos seus princípios do que aquela que se encontra estabelecida na Recomendação de 1999. Outro objetivo é a promoção da utilização da Justiça Restaurativa no contexto prisional e pelos serviços de reinserção social (cf. Comentário à Recomendação CM/Rec (2018)). A recomendação enfatiza uma mudança mais ampla na justiça penal em toda a Europa, no sentido de se promover uma abordagem mais restaurativa.

Para além disso, a Diretiva dos Direitos das Vítimas da União Europeia (2012) estabelece normas mínimas sobre os direitos, o apoio e a proteção das vítimas de crime e sublinha o potencial dos programas de Justiça Restaurativa. Este instrumento juridicamente vinculativo e executório pode ser considerado como um marco no que respeita à proteção e assistência a todas as vítimas de crimes nos Estados-Membros da União Europeia. Substituiu a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, relativa ao estatuto da vítima em processo penal, que exigia que os Estados-Membros adotassem disposições legislativas em matéria de mediação vítima-ofensor. Esta decisão-quadro foi relevante em vários países europeus, para introduzir a mediação em matéria penal e conhecer o impacto dos resultados reparadores nos processos penais.

A Recomendação do Conselho da Europa (Rec (2006)2) relativa às regras prisionais europeias sublinha a importância da reparação e da mediação, para resolver litígios com e entre reclusos (2006, Regra 56.2), bem como no tratamento de queixas e requerimentos por parte de reclusos (2006, Regra 70.2).

Relativamente às crianças em conflito com a lei, destaca-se a Recomendação n.º R (2003) 20 do Conselho da Europa, focada em novas formas de lidar com as crianças e adolescentes em conflito com a lei e no papel da justiça juvenil, assumindo também relevo a Recomendação (2008)11 sobre Regras Europeias para Jovens em conflito com a lei sujeitos a sanções ou medidas (ERJOSSM), consagrando ambas a utilização da Justiça Restaurativa e a reparação. A Recomendação No. R (2003) 20 enfatiza o uso de respostas mais inovadoras e eficazes ao lidar com crimes graves e violentos, e incentiva o uso de mediação, restauração e reparação à vítima (Artigo 8.º). As "Regras Europeias para Jovens em conflito com a lei Sujeitos a Sanções ou Medidas" recomendam que a mediação e outras medidas de reparação estejam disponíveis em todas as fases do processo penal, incluindo naquela que se reporta à sentença (2002, Princípio Básico 12). A promoção de meios alternativos aos processos judiciais, nomeadamente a mediação, a diversão e a resolução alternativa de litígios, é ainda sublinhada pelas Orientações do Conselho da Europa sobre Justiça Amiga das Crianças (2010, n.º 24). A nível regional, a Declaração de Lima sobre Justiça Restaurativa Juvenil (2009) visa reforçar a implementação de abordagens restaurativas na América Latina.

Para além desta orientação, elaborada na sua maior parte a nível internacional e regional, é igualmente relevante notar que as práticas tradicionais e comunitárias têm muitas vezes por base processos restaurativos. Com efeito, os autores têm evidenciado que práticas restaurativas eficazes requerem uma combinação de princípios básicos importantes sobre justiça comunitária e mecanismos mais amplos de justiça tradicional ou restaurativa (cf., por exemplo, Robins, 2006, sobre o Uganda; e Kilekamajenga, 2018 no que se refere à Tanzânia).

 

Princípios Basilares do Processo Restaurativo

Os Princípios Básicos estabelecem as garantias fundamentais para vítimas e ofensores, tais como o direito de serem plenamente informados sobre os seus direitos, sobre o modo de tramitação do processo restaurativo e bem assim sobre as possíveis consequências da sua decisão, o direito das crianças à assistência de um progenitor ou tutor e o direito de não participar ou desistir do processo restaurativo (2002, Princípio Básico 13).

Conforme estipulado nos Princípios Básicos, os processos restaurativos devem sempre ser baseados no consentimento livre e voluntário, tanto da vítima como do ofensor, devendo ainda ser reconhecido o direito de desistir da participação em qualquer momento do processo restaurativo (2002, Princípio Básico 7). A participação de um ofensor não deve ser usada como prova de culpa em processos judiciais (2002, Princípio Básico 8).

Como se enfatiza no Princípio Básico 15 (2002), os resultados dos processos restaurativos devem ser supervisionados judicialmente ou incorporados em decisões ou sentenças judiciais e, nesses casos, devem ter o mesmo valor que qualquer outra decisão ou sentença judicial. Nos casos em que o acordo entre a vítima e o ofensor, num diálogo restaurativo, não seja alcançado, esta impossibilidade nunca pode prejudicar o ofensor (2002, Princípio Básico 16), e o fracasso na execução de um acordo nunca deve resultar numa sentença mais severa em processo penal subsequente (2002, Princípio Básico 17).

Outros princípios fundamentais referem-se à imparcialidade dos facilitadores/mediadores, ao respeito pela dignidade dos participantes e consciência das questões culturais locais (2002, Princípios Básicos 18 e 19). As soluções devem ser proporcionais e razoáveis e acordadas por todos os participantes no processo restaurativo.

Para além do que vai dito, os Princípios Básicos recomendam que se desenvolvam diretrizes e orientações sobre o uso da Justiça Restaurativa, as quais devem incluir disposições sobre as condições de encaminhamento e o tratamento dos casos, a formação e a aptidão dos facilitadores/mediadores, a administração da Justiça Restaurativa e regras de conduta relacionadas ao funcionamento dos programas de Justiça Restaurativa (2002, Princípio Básico 12). Tais padrões são importantes para garantir a qualidade da prática e promover a igualdade de acesso aos serviço.

 

Dados empíricos relativos à satisfação dos participantes

Em termos das experiências de participação nos processos restaurativos e respetivos resultados, numerosos estudos de pesquisa revelaram elevados níveis de satisfação entre vítimas e ofensores (Shapland et al., 2007; Umbreit et al., 2008; Stran get al., 2013; Bolivar et al., 2015; Doak e O'Mahony, 2018; Hansen e Umbreit, 2018). 

Uma avaliação de três sistemas de Justiça Restaurativa no Reino Unido apurou elevados índices de satisfação tanto para as vítimas como para os ofensores – 85% das vítimas e 80% dos ofensores estavam muito ou bastante satisfeitos com os processos restaurativos (Shapland et al., 2007). Os participantes também expressaram elevados níveis de satisfação com os acordos alcançados no processo restaurativo. 90% das vítimas relataram que os seus ofensores pediram desculpa. 

Eis alguns exemplos do que as vítimas que participaram em conferências restaurativas partilharam:

"Fiquei muito satisfeito com o que o ofensor disse. Ele foi sincero. Havia alguns problemas que foram identificados. Ele mostrou abertura para isso.”

"Eu senti que a conferência foi bastante produtiva, ele assinou um acordo sobre consciencialização sobre drogas, ele vai-me escrevendo sobre o seu progresso e concordou em devolver o dinheiro que me subtraiu até abril. Estou feliz por não lhe ter batido, e tive pena dele quando entrei no quarto e vi a sua mãe e a namorada a chorar. Estou satisfeito com o resultado, desde que ele não reincida".

Os ofensores também ficaram satisfeitos com o impacto que a conferência teve neles:

"Foi surpreendentemente bom, para ser honesto – não pensei que fosse assim. Na verdade, considerando o que eu fiz, ele (a vítima) foi até muito bom para mim.”

"Nervoso por participar, em pânico, mas depois que comecei a relaxar e senti-me muito bem por estar lá e por ver a pessoa que eu afetei. Senti que tínhamos conseguido alguma coisa – eu e a vítima".

De acordo com as conclusões internacionais, a Pesquisa de Satisfação das Vítimas da Nova Zelândia (2016) mostrou que 84% das vítimas estavam satisfeitas com a conferência de Justiça Restaurativa em que participaram, e 81% relataram que provavelmente recomendariam a Justiça Restaurativa a outras pessoas numa situação semelhante. A pesquisa revelou níveis ainda mais elevados de satisfação das vítimas em casos de violência em contexto familiar (87%), em comparação com casos de violência não adstritos ao contexto familiar (82%). O estudo também indicou que 81% dos inquiridos consideravam que a conferência era uma boa forma de lidar com a infração cometida contra eles, e três quartos das vítimas podiam apontar pelo menos uma forma de benefício que a Justiça Restaurativa lhes tinha proporcionado. A maioria das vítimas (91%) afirmou sentir-se segura na conferência de Justiça Restaurativa.

A investigação revelou ainda que a Justiça Restaurativa contribuiu para reduzir os níveis de medo e os sintomas de stress pós-traumático entre as vítimas, e que estas vítimas têm um menor desejo de vingança depois de passarem por um processo restaurativo (Sherman et al., 2015).

 

Impacto da Justiça Restaurativa na Reincidência

Para além das investigações acima referidas, numerosos estudos indicaram que a Justiça Restaurativa contribui para reduzir a reincidência entre os ofensores (por exemplo, Sherman e Strang, 2007; Bonta et al., 2008; Shapland et al., 2008; Sherman et al., 2013; Sherman et al., 2015).

Na sua avaliação dos três sistemas de Justiça Restaurativa na Inglaterra e no País de Gales, Shapland et al. (2008), constataram que os ofensores que participaram em processos de Justiça Restaurativa cometeram significativamente menos crimes nos dois anos seguintes do que os ofensores do grupo de controlo. As experiências dos ofensores com a conferência, tais como perceber os danos que causaram, participar ativamente no processo e comunicar com as vítimas, tiveram um impacto significativo na diminuição de infrações subsequentes.

A equipa de Análise de Reincidência dos casos de Justiça Restaurativa do Ministério da Justiça da Nova Zelândia (2008-2013), trouxe à evidência que a taxa de reincidência dos ofensores adultos que participaram em processos restaurativos foi 15% menor nos 12 meses subsequentes, e 7,5% menor nos três anos seguintes, quando comparado com o grupo de controlo (Ministério da Justiça da Nova Zelândia, 2016). O estudo constatou uma redução da reincidência em vários tipos de crimes, incluindo ofensas quanto à integridade física e património.

 
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