Este módulo é um recurso para professores 

 

Armas de fogo ilegais nos contextos social, cultural e político

 

A natureza legal ou ilícita das armas de fogo e seus movimentos nem sempre é simples e direta, mas está intimamente ligada ao enquadramento legal existente que se aplica nos níveis nacional, regional e internacional, e que pode variar significativamente de país para país. O Módulo 5 (Estruturas Jurídicas Internacionais) e o Módulo 6 (Regulamentos Nacionais sobre Armas de Fogo) demonstram como os regimes de controle de armas de fogo estão provavelmente entre os mais influenciados por circunstâncias e contextos sociais, culturais e políticos, particularmente relacionados a aspectos como propriedade civil, posse e fabricação, bem como transferências e descarte desses itens. Os instrumentos internacionais não cobrem totalmente esses casos. 

Squires (2014: 23-39) tentou descrever e categorizar uma série de regimes de controle de armas de fogo e estabelecer uma possível correlação entre sua natureza restritiva ou liberal e os diferentes tipos de sociedades em que operam. Essa correlação pode variar de culturas "socialdemocratas " afluentes a culturas em transição, frágeis ou com muitos conflitos. As primeiras (como as sociedades escandinavas) ainda mantêm tradições populares de caça e níveis relativamente altos de posse de armas de fogo bem reguladas ou são sociedades pós-coloniais e antigas sociedades 'fronteiriças' com regimes tipicamente mais liberais de posse de armas de fogo (como EUA, Canadá, Austrália, África do Sul e Índia). Já as  últimas são em geral altamente desiguais e assoladas por conflitos étnicos, regionais ou políticos. Aqui, a posse de armas de fogo é mal regulada ou não regulamentada, e esses lugares frequentemente se tornam o destino do tráfico de armas de fogo em larga escala.

Esta classificação não é exaustiva ou absoluta; algumas tipologias de sociedades e suas estruturas organizacionais e políticas podem não se encaixar em nenhum desses grupos amplos. A classificação deve ser vista como uma abordagem heurística, com o objetivo de explorar até que ponto as diferenças nos contextos sociais, sistemas e instituições políticas podem influenciar os regimes nacionais de controle de armas de fogo, fabricação, oferta e demanda de armas e culturas e tradições de uso e mal-uso de armas de fogo.

O objetivo da diferenciação entre esses regimes de controle de armas de fogo é enfatizar as diferentes maneiras pelas quais os mercados ilícitos de armas de fogo operam entre eles. Em regimes de alto controle com medidas rigorosamente regulamentadas e efetivamente aplicadas, a escala do tráfico ilegal de armas de fogo pode ser limitada. É nos pontos vulneráveis que as armas de fogo passarão de legais para ilegais. Isso pode incluir contrabando em pequenos números – o chamado 'comércio de formigas', onde muitas entregas de um pequeno número de armas de fogo, com o tempo, resultam no acúmulo de um grande número de armas de fogo ilícitas por usuários finais não autorizados (SAS, 2013; Freeman 2015). Elas podem ser roubadas de portadores legais de armas de fogo; desviadas para mãos criminosas por traficantes corruptos; armas de tiro-seco convertidas; armas antigas reprojetadas; fabricação em pequena escala de munição sob medida para armas de calibre obsoletas (Holtom et al ., 2018); ou a reativação de armas tipo 'souvenirs' desativadas por uma variedade de pequenos empresários ilegais da indústria caseira (Williamson, 2015). Estes são alguns exemplos de armas de fogo que entram no campo ilícito devido a brechas legais e mecanismos de controle fracos.

Geralmente há mais oportunidades de armas passarem de legais para ilegais, por exemplo, por roubo e transferência 'informal', em regimes liberais de posse de armas, onde a regulamentação de armas de fogo é mais permissiva e as taxas de posse de armas relativamente mais altas. Um exemplo notório é a 'brecha das exibições de  armas' (gun show loophole) nos Estados Unidos, onde os entusiastas de armas de fogo podem trocar, vender ou negociar armas e acessórios, muitas vezes sem qualquer supervisão reguladora (Burbick, 2008). Consequentemente, muitas dessas armas de fogo vendidas nessas exibições de armas com pouco ou nenhum registro em papel também correm o risco de desvio e tráfico ilícito para o norte, no Canadá, e para o sul, no México. Segundo dados oficiais, mais da metade das armas ilegais recuperadas no Canadá e cerca de 80% das armas de fogo ilegais recuperadas no México, todas enviadas com sucesso para rastreamento, foram projetadas principalmente para o mercado interno dos EUA e originárias dos Estados Unidos (Goodman e Marizco, 2010; Schroeder, 2013). Entre estas havia 68.000 armas, muitas das quais eram rifles de assalto militares de alta especificação. Além disso, a maioria das armas de fogo de estilo militar apreendidas pela polícia no Brasil, especialmente 'pistolas automáticas e rifles de assalto ', originou-se nos Estados Unidos (Rivero, 2004).

As áreas deterioradas, prejudicadas e devastadas por conflitos, guerra, terrorismo, conflitos civis, insurgências, criminalidade organizada, cartéis de drogas e culturas de gangues geram suas próprias demandas por armas de fogo. O tipo de tráfico nesses países pode assumir diferentes tamanhos e formas, e pode variar de tráfico de armas em larga escala, às vezes facilitado por governos envolvidos em guerras proximais ou interessados em explorar a influência sobre os países clientes (Schroeder et al ., 2006; Arsovska e Zabyelina, 2014), a quantidades menores de armas de fogo traficadas em fluxos relativamente constantes ('comércio de formigas'). O tráfico também pode disseminar armas militares nas mãos de civis após as guerras ou mudanças de regime e, em outros casos, o tráfico pode assumir a forma de um comércio ilegal mais prosaico, motivado por ganhos criminais (Naylor, 1998).

A dicotomia entre regimes liberais e restritivos, no entanto, também depende de outros fatores, como os níveis de criminalidade e violência em um país, a capacidade do Estado de impor e aplicar sua própria legislação sobre o controle de armas de fogo e tradições passadas de civis armados, por exemplo. Fatores culturais e históricos podem desempenhar um papel importante não apenas na determinação da abordagem permissiva ou restritiva da propriedade civil de armas de fogo para uso cultural e recreativo, mas também em relação a essa posse para fins de autodefesa. Países com alta criminalidade, por exemplo, podem ter respostas opostas a esses desafios. Uma delas é a regulamentação muito restritiva da propriedade, posse e uso por civis, como em países tais como o México, ou, alternativamente, uma abordagem ainda mais liberal para a posse civil com o objetivo de autodefesa, como nas chamadas "sociedades de fronteira ", tais como os Estados Unidos,  ou em países que saem de conflitos civis ou enfrentam ameaças externas iminentes. Nestes últimos casos, a resposta do Estado pode ser realmente armar a população civil e permitir a autodefesa quando o próprio Estado não pode fornecer essa proteção. 

Além disso, qualquer regime de controle de armas é válido na medida de sua aplicação na prática. A baixa capacidade de fiscalização é o mesmo que um controle estatal insuficiente, criando oportunidades para tráfico e proliferação ilícita de armas de fogo. Países com legislação muito restritiva em relação às armas de fogo, mas com um baixo nível de controle e aplicação no campo, ou com legislação muito desatualizada e incompleta, podem ser mais propensos a se tornarem alvos da proliferação e tráfico ilícitos de armas.

 
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