Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico Oito: Vítimas de crime e o direito internacional

 

As vítimas e o direito internacional dos direitos humanos

 

Responsabilidade do Estado pelas violações de direitos humanos

A proteção e a reparação para as vítimas de crimes e a proteção e a reparação para as vítimas de violações de direitos humanos são duas questões distintas, mas intrinsecamente relacionadas:

De acordo com a lei penal nacional, a responsabilidade pelo crime recai sobre o infrator. Em princípio, os governos não são responsáveis por esse comportamento ilícito.

O Direito internacional lida tradicionalmente com a responsabilidade dos Estados uns em relação aos outros. No direito internacional dos direitos humanos, o indivíduo alega uma violação contra o Estado.

Todavia, esta distinção nem sempre é tão clara. As vítimas de crimes e de violações dos direitos humanos partilham muitas necessidades e têm interesses idênticos, como seja a necessidade de reparação pelos danos físicos e mentais, a necessidade de proteção e de assistência e a necessidade de reparação por perdas financeiras. Além disso, há casos e circunstâncias específicas nas quais os Estados podem ser responsáveis pelos atos de indivíduos privados porque os Estados têm uma obrigação positiva de assegurar que os agentes de crimes que levam a sérias violações de direitos humanos são efetivamente levados à justiça. Por exemplo, os familiares de alguém que tenha desaparecido, ou que tenha sido assassinado arbitrariamente, têm o direito de saber a verdade sobre o que aconteceu aos seus entes queridos e o Estado tem o dever de iniciar uma investigação criminal relativamente a esses atos. Ademais, o direito internacional e regional dos direitos humanos contém disposições sobre direitos cívicos e políticos, como seja o direito a um julgamento justo, que são aplicáveis não apenas às pessoas acusadas de terem cometido crimes, mas também às suas vítimas. De facto, muitos dos princípios desenvolvidos no contexto das violações de direitos humanos e para as vítimas de crime reforçam-se mutuamente. A isto acresce que a Declaração das Nações Unidas também se refere às vítimas de “abuso de poder” que, em muitos casos, podem resultar em violações dos direitos humanos.

Mecanismos de Direitos Humanos 

Há uma ampla variedade de convenções e tratados sobre direitos humanos, que lidam com os direitos em geral, como direitos civis e políticos e direitos económicos; ou os direitos de um grupo em concreto, como os direitos das crianças, das mulheres ou de pessoas com deficiência; ou o direito a não estar sujeito a uma violação específica, como o direito à libertação da tortura. Ao nível global, vários Comités das Nações Unidas foram criados para monitorizar a obediência dos Estados a esses importantes tratados internacionais de direitos humanos, incluindo, por exemplo, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) (AG Resolução 2200A (XXI)) que é monitorizado pelo Comité dos Direitos Humanos, a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (AG Resolução 39/46), a qual é monitorizada pelo Comité contra a Tortura, ou a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979), monitorizada pelo Comité sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres. Estes denominados “Órgãos de Supervisão de Tratados” permitem que as vítimas individuais de violações de direitos humanos apresentem as suas queixas contra os Estados Partes do Tratado, perante os respetivos Comités, que então emitem um parecer.

Ao nível regional, existem igualmente mecanismos fortes que salvaguardam a proteção dos direitos humanos. As Comissões e os Tribunais de direitos humanos podem receber reclamações individuais contra os Estados, incluindo o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que julga violações contra a Convenção Europeia dos Direitos do Humanos; a Comissão Interamericana dos Direitos Humanos e o Tribunal Interamericano dos Direitos Humanos, que em conjunto formam o sistema de proteção dos direitos da pessoa da Organização dos Estados Americanos; e o Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, que complementa e reforça as funções da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.

Estes são mecanismos de direito internacional, não interno, e lidam com a responsabilidade do Estado. Por conseguinte, as queixas apenas podem ser apresentadas contra o Estado ou órgãos do Estado, mas não contra indivíduos. Se, por exemplo, uma vítima tiver sido torturada por um agente policial, poderá apresentar uma queixa contra o Estado para o qual referido agente trabalhou (e poderá, por exemplo, alegar que o agente da polícia tinha recebido ordens para torturar ou que o Estado tinha uma obrigação positiva de o/a impedir de torturar o queixoso), mas o órgão de direitos humanos não receberá qualquer queixa contra o próprio polícia.

Ademais, existem requisitos rigorosos para a admissibilidade de reclamações relativas aos direitos humanos: os indivíduos que alegam ter sofrido violações de direitos acautelados por um tratado de direitos humanos internacional e/ou regional podem submeter as suas reclamações, desde que o objeto da declaração não esteja pendente noutra jurisdição internacional e tenham esgotado todos os recursos internos disponíveis.

O requisito de esgotar todos os recursos internos disponíveis tem sido interpretado tendo em conta o objetivo dessa disposição: o de abrir um caminho que permita às pessoas a procura pela reparação por parte do Estado por um erro que constitua uma violação dos direitos humanos, quando os recursos nacionais tiverem falhado no fornecimento dessa reparação.

Em conformidade, nas situações de conflito armado interno ou internacional, ou quando a legislação interna do Estado em apreço não dispor do devido processo legal para a proteção do direito ou dos direitos que tenham alegadamente sido violados, aquele requerimento poderá ser levantado. Além disso, a jurisprudência sobre direitos humanos esclareceu que as vítimas não necessitam de demonstrar que procuraram soluções de facto inacessíveis e apenas teoricamente disponíveis, incluindo soluções que não oferecem quaisquer possibilidades razoáveis de sucesso. De acordo com a jurisprudência do Tribunal Interamericano de Direitos Humanos (OC-11/90, Parecer Consultivo solicitado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 10 de agostode 1990), presume-se igualmente que os recursos internos estão indisponíveis quando as vítimas que não disponham de recursos financeiros para processar as suas reivindicações não tenham acesso ao apoio judiciário; ou nos casos em que exista um “receio generalizado” na comunidade jurídica de representar a vítima que a impeça de exercer o seu direito.

Os tribunais regionais de direitos humanos e a sua jurisprudência sobre os direitos das vítimas de crimes

A Legislação sobre os Direitos Humanos contém disposições específicas diretamente relevantes para as vítimas de crimes, como sejam o direito a um julgamento justo ou a proibição da discriminação. A isto acresce que a jurisprudência dos tribunais de direitos humanos reforçou de várias formas, e substancialmente, os direitos das vítimas de crimes, como será demonstrado nos vários exemplos que se seguem.

A jurisprudência dos tribunais dos direitos humanos esclareceu que os Estados podem ter uma obrigação positiva de assegurar a fruição dos direitos humanos fundamentais, o que pode implicar que o Estado tome medidas proativas para proteger as vítimas contra os crimes.

O Artigo 2.º, número 1 do Pacto Internacional para os Direitos Civis e Políticos (Resolução da AG 2200A (XXI)), determina “Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os indivíduos dentro do seu território e que estejam sujeitos à sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto”.

Com vista à interpretação do Artigo 2.º, o Comité dos Direitos Humanos considera que é necessário “chamar à atenção dos Estados Partes para o facto de a obrigação constante no Pacto não se limitar ao respeito pelos direitos humanos, mas sim que os Estados tenham igualmente tomado medidas para assegurar a fruição desses direitos a todos os indivíduos que se encontrem sob a sua jurisdição. Este aspeto exige que os Estados Partes promovam atividades específicas de modo a permitir que os indivíduos usufruam dos seus direitos” (Comentário Geral n.º 3 sobre o Artigo 2.º).

Em concreto, esta constatação implica que os Estados Partes possam ter de investigar efetivamente, processar e punir as violações aos direitos e liberdades individuais (OHCHR, 2003).

De acordo com as previsões correspondentes da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1950), há um enquadramento paralelo. Os direitos humanos fundamentais previstos na Convenção, como o direito à vida, o direito à libertação da tortura ou o direito à vida familiar, implicam igualmente um dever primário do Estado no sentido de garantir a fruição desses direitos. Isso implica que os Estados Partes da Convenção Europeia tomem medidas efetivas de prevenção, investigação, supressão e de punição das violações a esses direitos.

A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos esclareceu que o dever do Estado de garantir os direitos em questão também pode implicar o dever jurídico do Estado no sentido de garantir o respeito por esses direitos e liberdades.

Por exemplo, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, no Caso de X e Y v. Holanda (1985), declarou que o Governo Holandês tinha o dever jurídico positivo de assegurar um direito efetivo de respeito pela vida privada de uma menina com deficiência mental que tinha sido violada mas que era legalmente incapaz de instaurar um processo penal contra o suposto autor do crime e que essa lacuna no direito interno constituía uma violação do direito da criança à vida familiar, como decorre do Artigo 8.º da Convenção Europeia (1950). Para além de ter identificado uma violação do direito da menina à vida familiar, ordenou à Holanda que pagasse uma indemnização à menina.

A jurisprudência dos tribunais de direitos humanos clarificou que a obrigação de os Estados processarem os crimes graves consiste igualmente num direito das vítimas de tais crimes.

Um dever de um Estado de processar crimes graves tem sido tradicionalmente entendido como uma obrigação para com o público, não como um direito privado que pode ser executado pelas vítimas concretas. Todavia, a jurisprudência do Tribunal Interamericano dos Direitos Humanos (IACHR) no caso Velasquez-Rodriguez v. Honduras, de 1988, um caso sobre o desaparecimento forçado de um estudante universitário hondurenho que tinha sido detido sem mandado de detenção, em plena luz do dia, por um grupo de homens fortemente armados, trajados à civil, alterou esse entendimento. O IACHR concluiu que:

“o Estado tem o dever jurídico de tomar as medidas razoáveis com vista a prevenir violações dos direitos humanos e de usar os meios à sua disposição para realizar uma investigação séria das violações cometidas dentro da sua jurisdição, identificar os responsáveis, impor a punição adequada e garantir a compensação adequada à vítima”.

Nos casos posteriores, como no caso Manuel Garcia Franco v. Ecuador (1997), outro caso sobre um desaparecimento forçado, o IACHR esclareceu que tais processos devem ser conduzidos dentro de “um prazo razoável” por um tribunal competente, independente e imparcial.

Neste caso, o IACHR considerou que: “o Estado do Equador não cumpriu a sua obrigação de providenciar um recurso jurídico simples, rápido e eficaz à família Garcia, para que pudessem conhecer toda a verdade sobre o que aconteceu a Manuel, incluindo as circunstâncias da sua tortura e morte” (1997, para. 73). O tribunal acrescentou que “este direito a conhecer a verdade sobre o que aconteceu baseia-se igualmente na necessidade de informação para fazer valer outro direito. No caso de um desaparecimento, os familiares têm o direito a conhecer o destino exato da vítima, não apenas com o propósito de saber exatamente como os seus direitos foram violados, mas também para fazerem valer o seu próprio direito à obtenção de uma compensação por parte do Estado” (1997, para. 74).

O direito a investigações criminais eficazes foi igualmente sustentado pela jurisprudência dos direitos humanos noutros contextos. Num caso contra a Roménia, perante o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), o irmão do queixoso foi assassinado em circunstâncias suspeitas. Apesar das provas de um ataque, as autoridades fizeram muito pouco para investigar o crime nos 12 anos seguintes. O TEDH decretou que os seus esforços tinham sido insuficientes. Este caso teve impacto para além do julgamento em si mesmo, pois influenciou reformas com vista a melhorar a eficácia das investigações na Roménia (Casoof Trufin vs. Romania, 2010). A jurisprudência dos tribunais dos direitos humanos esclareceu que as vítimas têm o direito a aceder à justiça e isso poderá exigir que aufiram de assistência jurídica gratuita.

No caso contra a Irlanda, a requerente queria separar-se judicialmente do seu marido, que era, alegadamente, um alcoólico violento. No entanto, ela não tinha condições para pagar os honorários do advogado e não existia um esquema de apoio judiciário ao qual ela se pudesse candidatar. O TEDH decidiu que a falta de apoio judiciário negou efetivamente o acesso da Sra. Airey a um tribunal, violando o seu direito de acesso à justiça. O caso conduziu igualmente a mudanças ao nível sistémico: o apoio judiciário para casos como este foi introduzido na Irlanda, no ano seguinte (Case of Airey v. Ireland, 1979).

Enquadramento jurídico internacional sobre a reparação

Paralelamente ao fortalecimento dos direitos das vítimas de crimes na jurisprudência dos órgãos e tribunais dos direitos humanos a direitos como o direito à investigação, à acusação e à participação no julgamento, houve igualmente uma evolução no direito à reparação e a soluções efetivas para as vítimas de graves violações da lei dos direitos humanos e ao direito humanitário internacional, como nos crimes de guerra.

Um marco importante neste contexto consistiu na adoção, em 2005, pela Assembleia Geral das Nações Unidas dos Princípios e Diretrizes Básicos Sobre o Direito ao Recurso e Reparação para as Vítimas de Violações Flagrantes das Normas Internacionais de Direitos Humanos e de Violações Graves do Direito Internacional Humanitário.

Os Princípios Básicos e Diretrizes exortam os Estados a providenciar soluções e reparações às vítimas de graves violações ao direito internacional dos direitos humanos e de sérias violações ao direito internacional humanitário.

No desenvolvimento dos princípios básicos e diretrizes, foi igualmente levantada nas discussões e negociações a questão da responsabilidade dos atores não estaduais, inclusive no que diz respeito a movimentos ou grupos que exercem um controlo efetivo sobre um determinado território e as pessoas desse território, bem como no que diz respeito às empresas que exercem poder económico. De acordo com um dos principais redatores, houve um consenso geral no sentido de que “os atores não estaduais devem ser responsabilizados pelas suas políticas e práticas, permitindo que as vítimas sejam ressarcidas e obtenham a reparação com base na responsabilidade jurídica e na solidariedade humana, e não apenas com base na responsabilidade do Estado” (van Boven, 2010). Para além disso, os Princípios e Diretrizes das Nações Unidas visam um acesso à justiça igual e efetivo, “independentemente de quem possa ser, em última linha, o responsável pela violação” (2005, Princípio 3c). Neste sentido, é igualmente feita uma referência à seguinte disposição: “Nos casos em que uma pessoa, uma pessoa coletiva ou outra entidade seja considerada responsável pela reparação da vítima, essa parte deverá reparar a vítima ou compensar o Estado se este último já tiver reparado a vítima” (2005, Princípio 15).

Uma componente central dos Princípios e Diretrizes das Nações Unidas é apresentado nos princípios que descrevem as várias formas de reparação. Poderão ser resumidos da seguinte forma (van Boven, 2010):

Restituição

Refere-se às medidas que visam “restaurar a situação original em que a vítima se encontrava antes da ocorrência das violações flagrantes das normas internacionais de direitos humanos ou das violações graves de direito internacional humanitário” (2005, Princípio 19). (Os exemplos de restituição incluem: restabelecimento da liberdade, gozo dos direitos humanos, identidade, vida familiar e cidadania, regresso ao respetivo local de residência, reintegração no emprego e devolução de bens).

Compensação

“a indemnização deve ser garantida, de forma apropriada e proporcional à gravidade da violação e às circunstâncias de cada caso, para qualquer dano economicamente avaliável” (2005, Princípio 20). O dano que origina a compensação pode resultar de danos físicos ou mentais; oportunidades perdidas, incluindo nos domínios do emprego, da educação e dos benefícios sociais; danos morais; despesas necessárias para efeitos de assistência jurídica ou especializada, medicamentos e serviços médicos, e serviços psicológicos e sociais.

Reabilitação

compreende a assistência médica e psicológica, bem como os serviços jurídicos e sociais (2005, Princípio 21).

Satisfação

inclui um amplo leque de medidas, desde as que visam a cessação das violações à procura da verdade, a procura dos desaparecidos, a recuperação e o enterro dos restos mortais, pedidos de desculpas públicas, sanções judiciais e administrativas, comemorações e treino em direitos humanos (2005, Princípio 22).

Garantias de não repetição

Compreendem amplas medidas estruturais de natureza política, como sejam as reformas institucionais com vista ao controlo civil sobre as forças militares e de segurança, reforço da independência judicial, proteção aos defensores dos direitos humanos, promoção dos padrões de direitos humanos no serviço público, funcionários responsáveis pela aplicação da lei, meios de comunicação social, indústria e serviços psicológicos e sociais (2005, Princípio 23).

Desde a sua adoção, os Princípios Básicos e Diretrizes das Nações Unidas influenciaram e informaram a jurisprudência interna e internacional sobre o direito à reparação e retificação. Tendo evoluído paralelamente ao Estatuto de Roma, influenciaram, a título exemplificativo, o entendimento de direitos à reparação perante o Tribunal Penal Internacional.

 

Vítimas no contexto da justiça penal internacional

 

As vítimas e mecanismos internacionais de justiça criminal

Tal como nos tribunais nacionais, o papel das vítimas no contexto dos mecanismos de justiça penal internacional foi evoluindo com o passar do tempo. Tanto o Tribunal de Nuremberga como o Tribunal de Tóquio, que funcionaram em 1940, focaram-se nos arguidos. No início dos anos 90, o Conselho de Segurança estabeleceu dois tribunais ad hoc: depois do início da guerra na Bósnia-Herzegovina, o Conselho de Segurança das Nações Unidas estabeleceu o Tribunal Penal Internacional para a Antiga Jugoslávia (ICTY), em 1993, e após o genocídio no Ruanda, o Tribunal Penal Internacional para o Ruanda (ICTR), em 1994.

Nos processos perante ambos os tribunais, a atenção prestada aos arguidos tornou a ser o seu principal foco de atenção: as vítimas tinham um papel limitado e apenas poderiam surgir como testemunhas. Profissionais, académicos e advogados das vítimas criticaram o ICTY e o ICTR devido a esta abordagem. Alegaram que os tribunais tinham falhado aqueles a quem era previsto servir: as vítimas das atrocidades (Movimento Global dos Direitos Humanos, 2002).

As vítimas e o Tribunal Penal Internacional

Com a adoção do Estatuto de Roma a 17 de Julho de 1998, o enquadramento jurídico que guia o Tribunal Penal Internacional, o primeiro tribunal penal internacional permanente, levou em consideração uma atenção crescente prestada às vítimas no contexto do processo penal nos sistemas de justiça penal nacionais, o que atingiu igualmente o regime da justiça penal internacional. O preâmbulo do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (TPI) recorda-nos que “no decurso deste século, milhões de crianças, homens e mulheres têm sido vítimas de atrocidades inimagináveis que chocam profundamente a consciência da Humanidade”. Esta ênfase nas vítimas e no sofrimento humano no preâmbulo é intencional, bem como um reflexo da intenção de criar um “tribunal de vítimas”, um tribunal que daria aos sobreviventes de atrocidades em massa uma voz significativa na administração da justiça (Stoveret al., 2010).

De facto, e em parte como uma resposta às críticas tecidas contra o ICTY e o ICTR, o TPI foi pioneiro num conjunto de novos recursos orientados para as vítimas no seu quadro normativo e processual (Trumbull, 2008). Em concreto, o TPI concede às vítimas o direito de participar no julgamento e o direito a reparação. Os representantes jurídicos das vítimas asseguram que as suas opiniões e preocupações sejam ouvidas em todas as etapas do processo, nas matérias em que os seus interesses pessoais sejam afetados. As vítimas podem participar nas audiências e, dependendo das decisões do tribunal, podem fazer observações orais e por escrito ou interrogar as testemunhas. Durante a participação no julgamento, as identidades das vítimas são protegidas por um pseudónimo que lhes é atribuído (por exemplo: a/0001/18). Uma secção especial do TPI, a Secção de Participação e de Reparação de Vítimas, facilita as interações com o tribunal e registou milhares de vítimas como participantes nas duas décadas de existência do TPI. O Escritório do Conselho Público para as Vitimas (“Office of the Public Counsel for Victims”- OPCV) providência representação jurídica às vítimas durante todo o processo e apoia advogados externos nomeados pelas vítimas. Há ainda outra secção do Tribunal que trata de facilitar proteção às vítimas e testemunhas, conforme necessário.

Além disso, o Estatuto de Roma criou o Fundo Fiduciário para as vítimas com um duplo mandato: (i) implementar a reparação ordenada pelo Tribunal (mandato de reparação) e (ii) providenciar a reabilitação física e psicossocial ou apoio material às vítimas de crimes que se enquadrem na jurisdição do TPI (mandato de assistência). Por exemplo, o Fundo Fiduciário realiza, em colaboração com parceiros locais, programas de reabilitação médica para as vítimas feridas na decorrência de crimes de guerra, ou esquemas de microcrédito que beneficiam os sobreviventes de crimes de violência sexual e de género relacionados com os conflitos nos países em que o TPI tenha jurisdição.

Um reforço dos direitos das vítimas na sequência da adoção do Estatuto de Roma

Os tribunais ad hoc internacionalizados que foram criados posteriormente à criação do TPI incluem diferentes formas de participação das vítimas e regimes de reparação. Em concreto, estão em causa as Câmaras Extraordinárias nos Tribunais do Camboja (ECCC), o Tribunal Especial para o Líbano, as Câmaras Especializadas do Kosovo, as Câmaras africanas extraordinárias patrocinadas pela União Africana (criadas para levar à justiça o ex-ditador chadiano Hissène Habré) e o Tribunal penal especial Centro-africano na República Centro-Africana, todos contêm disposições específicas que permitem às vítimas participar nos processos e, em grau variável, procurar reparações em caso de condenação.

Consequentemente, parece que um regime de participação da vítima mais ou menos compreensivo acabou por tornar-se numa componente integrante dos mecanismos modernos de justiça penal internacional. Essa mudança no sentido de integrar as vítimas como partes interessadas fundamentais do processo de justiça penal internacional reflete o entendimento moderno de que, para alcançar um impacto positivo a longo prazo nas comunidades afetadas e na sociedade como um todo, o modelo tradicional de justiça retributiva tem de ser complementado com elementos de justiça restaurativa e reparadora.

Desafios

Os regimes de participação e de reparação que se encontram nos mecanismos de justiça penal internacional podem ser restringidos por limitações processuais, orçamentais, bem como por limitações fundamentais inerentes à difícil tarefa de tornar os processos penais significativos para o número potencialmente amplo de vítimas e comunidades afetadas que sofreram “atrocidades inimagináveis”. Por exemplo, um estudo realizado pela Universidade da Califórnia na Escola de Direito de Berkeley, que entrevistou mais de 600 vítimas participantes no TPI, concluiu que muitas delas estavam frustradas devido ao progresso lento dos procedimentos e que, na realidade, frequentemente tinham apenas um entendimento rudimentar do TPI e do seu mandato (The Human Rights Center, 2015).

Alguns desafios fundamentais incluem:

a. Representação judiciária durante o processo

No que concerne ao TPI, a Regra 90 (1) das Regras de Procedimento e Prova (2005) determina, como princípio geral, que “[uma] vítima deve ser livre de escolher um representante judiciário”. Contudo, na realidade, na maioria dos casos que decorrem perante o TPI as vítimas estão organizadas em grupos e são-lhes designados representantes judiciários comuns, pagos pelos fundos de assistência jurídica. Os tribunais internacionais e internacionalizados posteriores copiaram este sistema, e o uso de um representante judiciário comum para as vítimas é cada vez mais prática corrente. Todavia, uma tal representação comum apenas pode ter significado se os representantes judiciais das vítimas levarem as preocupações das vítimas em consideração e se estabelecerem uma relação de confiança com todos os seus clientes ao nível individual. Por seu turno, tal pode ser um desafio se um representante judiciário representar centenas, senão mesmo milhares, de vítimas.

b. Modalidades de Participação no Processo

As modalidades de participação da vítima no julgamento em casos de crimes internacionais podem ser bastante complexas e dar origem a litígios, atrasar o julgamento, originar custos adicionais e, acima de tudo, sobrecarregar a defesa e o acusado.

c. Reparações Significativas

Os crimes julgados por mecanismos penais internacionais afetam gravemente, por definição, em quase todos os casos, um número muito elevado de vítimas. Portanto, não surpreende que a experiência perante tribunais penais internacionais tenha mostrado que as pessoas condenadas por crimes internacionais geralmente não têm os recursos necessários para pagar as reparações adequadas a essas vítimas – e, mesmo que tivessem, é frequentemente muito difícil para os tribunais internacionais(lizados) rastreá-las e ter acesso a elas. No entanto, quando o número de vítimas exceder os recursos disponíveis para o pagamento da compensação adequada a todas, uma estratégia sólida de gestão de expetativas com vista a minimizar a frustração e a deceção será importante. Concretamente, as vítimas devem ser informadas desde o início do processo sobre o que podem esperar do regime reparatório aplicável e, mais importante ainda, com o que não podem contar. Por exemplo, o enquadramento jurídico dos ECCC prevê apenas reparações coletivas e morais mas não admite reparações individuais.

 
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