Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico Um: Compreensão do conceito de vítimas e uma breve história da vitimologia

 

As vítimas de crime foram negligenciadas por muito tempo no âmbito do contexto processual penal, o qual dá prioridade ao julgamento dos arguidos. Esta situação começou a alterar-se, até certo ponto, na década de 60 do século passado, quando o movimento de direitos cívicos acarretou importantes alterações políticas, jurídicas e sociais em diversas áreas. Entre outros desenvolvimentos, isso levou a uma atenção crescente sobre o papel das vítimas no contexto tanto da política social como criminal. Ademais, e paralelamente, o estudo da vitimologia emergiu como uma área científica, complementando o estudo do crime e da criminologia. Conhecer o desenvolvimento histórico da vitimologia como uma disciplina é útil para compreender a complexidade em alcançar justiça para as vítimas em contextos contemporâneos.

A vitimologia surgiu nos anos 1940-1950 quando os criminologistas, incluindo Hans vonHenting, Benjamin Mendelsohn e Henri Ellenberger, examinaram as relações existentes entre as vítimas e os ofensores e enfatizaram que ambos estariam reciprocamente relacionados. Contudo, este trabalho académico inicial não se focou nas necessidades e direitos das vítimas, mas sim na questão de saber como teriam as vítimas contribuído para a sua própria vitimização. Cedo, os criminologistas exploraram, por exemplo, a questão de saber como o comportamento imprudente ou descuidado poderia atrair a atenção de bandidos ou ladrões, tornando o crime mais fácil para estes. No seu livro O Criminoso e a sua Vítima: Estudos sobre a Sociobiologia do Crime, Hans Von Henting (1948) procurou identificar as características da “vítima” típica, isto é, as características que poderiam ser vistas como aumentando efetivamente o risco de vitimização dessa pessoa. Apesar desta abordagem parecer estar já desatualizada, sendo um exemplo de “culpabilização da vítima” (isto é, considerar a vítima de um crime ou ato ilícito total ou parcialmente responsável pelo dano sofrido), vonHenting trouxe efetivamente uma importante contribuição para a criminologia ao enfatizar e demonstrar a importância da vítima naquilo a que, mais tarde, Mendelsohn (1956) viria a apelidar de “casal penal” composto pela vítima e o criminoso. Cedo, os vitimologistas entenderam que é necessário dar atenção às vítimas de modo a poder estudar devidamente, e de modo abrangente, o ofensor.

A partir dos anos 70 do século passado em diante, o foco alterou-se no sentido de explorar abordagens que previniam a vitimização, com um interesse crescente nas variadas formas de prejuízos e adversidades vividos pelas vítimas, bem como pelo respetivo reconhecimento. De facto, a vitimologia contemporânea reconhece que as vítimas requerem respostas efetivas no que diz respeito à reparação, à restituição, a ter uma voz no processo, de serviços de apoio específicos e, ainda, de apoio jurídico (Kirchhoff, 2010; Wemmers, 2012, 2017). Esta noção foi posteriormente acentuada pelo incremento atual de áreas profissionais relacionadas, como sejam a psicologia e o trabalho social, que contribuíram para uma tomada de consciência crescente de que as vítimas necessitam de serviços atempados de apoio, solidários e não-estigmatizantes. Para além do mais, como já foi mencionado, o surgimento de movimentos em prol dos direitos das vítimas foi influenciado pelo movimento de defesa dos direitos cívicos dos anos 1960-1970, dando ênfase na chamada de atenção pública às populações marginalizadas e pondo em causa políticas governamentais injustas. O desenvolvimento do movimento em prol dos direitos das vítimas de crimes foi diretamente influenciado pelos seguintes fatores: crescimento dos índices de criminalidade nos anos 60 do século passado; movimento feminista que chamou a atenção para a problemática da violência contra as mulheres; programas de compensação da vítima; e ativismo político em prol das vítimas.

Em 1973, Israel Drapkin organizou o primeiro Simpósio Internacional de Vitimologia, dando aos profissionais, académicos, investigadores e estudantes a possibilidade de discutir e focar-se nos assuntos relativos às vítimas num fórum internacional, bem como potenciar o desenvolvimento da vitimologia como disciplina autónoma. Como resultado do Simpósio, a Sociedade Mundial de Vitimologia (World Society of Victimology) foi criada em 1979 como uma organização não-governamental, com o propósito de promover a investigação e prática vitimológica, encorajar um trabalho interdisciplinar e comparativo bem como desenvolver a cooperação entre agências e grupos envolvidos com os direitos das vítimas ao nível internacional, nacional e regional.Várias entidades internacionais foram criadas desde então, de modo a abordar os assuntos centrais relativos às vítimas de crime, incluindo redes de fornecimento de serviços como seja o Apoio à Vítima na Europa (Victim Support Europe). Em 2018, iniciaram-se os planos para a criação do Apoio à Vítima na Asia (Victim Support Asia). Apesar destes importantes desenvolvimentos na vitimologia, assim como o nosso crescente entendimento sobre as vítimas e as suas necessidades, ainda existe uma disparidade considerável nos diversos ordenamentos jurídicos no que concerne ao reconhecimento e respeito dos direitos das vítimas. Ademais, a existência de serviços de apoio efetivos ao dispor das vítimas varia consideravelmente. Esta discrepância em termos de respostas disponíveis é o produto de um amplo leque de resistências sociais, culturais, históricas, económicas e jurídicas.

Reconhecendo a importância de estabelecer padrões mínimos em matéria de justiça para as vítimas, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou, em 1985, a Declaração dos Princípios Básicos de Justiça para as Vítimas de Crime e Abuso de Poder (daqui em diante referida como Declaração das Nações Unidas de 1985), dando um passo importante em direção a uma abordagem unificada no que respeita à justiça para as vítimas de crime e abuso de poder.

Como parte das normas e princípios das Nações Unidas, a Declaração das Nações Unidas de 1985 prevê uma plataforma importante para o reconhecimento de que as vítimas têm direitos e necessidades que requerem respostas legais, o estabelecimento de apoio, serviços e esforços para assegurar a sua proteção relativamente à continuação da prática do crime e, tanto quanto possível, o direito à reparação. Além disso, a Declaração das Nações Unidas de 1985 oferece uma definição de “vítima”, tal como mencionado nas Palavras-Chave.

O facto de a Declaração das Nações Unidas de 1985 conter uma definição é importante em si mesmo, pois uma definição contida num documento adotado pela Assembleia Geral pode ajudar a unificar diversas práticas nos Estados Membros das Nações Unidas. Além do mais, a definição é igualmente um marco devido ao modo abrangente e amplo como define “vítima” de crime. A definição combina a violação da lei penal com uma ampla série de danos que a pessoa pode ter sofrido como resultado desse crime. Ademais, a Declaração das Nações Unidas de 1985 esclarece que os direitos das vítimas têm de ser reconhecidos e acessíveis às vítimas, independentemente de o agente ter sido identificado, detido, julgado ou condenado. A definição de vítimas de crime segundo a Declaração das Nações Unidas de 1985 inclui igualmente as pessoas que sofreram danos indiretos, tais como a família imediata ou os dependentes da vítima direta, ou ainda qualquer outra pessoa que tenha sofrido um prejuízo como decorrência de ter intervindo na assistência das vítimas diretas.

Desde a adoção da Declaração das Nações Unidas (1985), diversos esforços internacionais e regionais foram tomados com vista a assegurar que os direitos das vítimas são respeitados e reconhecidos. No plano Europeu, várias normas vinculativas foram adotadas tanto ao nível do Conselho da Europa como da União Europeia. A nível nacional, refira-se, a título exemplificativo, que a África do Sul publicou uma carta de serviços para as vítimas de crimes, o que traduz a consolidação do enquadramento jurídico atual relativo aos direitos e serviços providenciados às vítimas no contexto Sul-africano.

 
Seguinte: Tópico Dois: O impacto do crime, incluindo o trauma
Regressar ao início