Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico um: Introdução das normas e padrões das Nações Unidas sobre prevenção do crime e justiça criminal face ao direito internacional

 

Para compreender a natureza e a posição das normas e padrões das Nações Unidas sobre prevenção do crime e justiça criminal, é necessário compreender, em primeiro lugar, a importância dos documentos normativos como parte do sistema mais amplo do direito internacional.

Como defende Shelton (2009), o direito internacional é um sistema consensual, consistindo em normas pelas quais os Estados, em igualdade de soberania, aceitam livremente governar-se a si próprios. O direito internacional é, assim, criado pelos Estados. As principais fontes do direito, estabelecidas com o objetivo de resolver disputas entre Estados, são identificadas no Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ),  um anexo à Carta das Nações Unidas, adotada em 1945. O Artigo 38.º define as fontes de direito que o TIJ aplicará para a resolução de litígios:

(i) as convenções internacionais, gerais ou particulares, que estabelecem regras expressamente reconhecidas pelos Estados concorrentes;

(ii) o costume internacional, como prova de uma prática geral aceite como lei;

(iii) os princípios gerais do direito reconhecidos pelas nações civilizadas;

(iv) as decisões judiciais e os ensinamentos dos juristas mais qualificados das várias nações, como meio subsidiário para a determinação de regras de direito.

As convenções internacionais, ou tratados, são os instrumentos utilizados pelos Estados de forma mais direta, para consentir as limitações da sua soberania. Tornam-se juridicamente vinculativos após um processo de assinatura e ratificação interna. Para além destas fontes, diversas declarações normativas foram adotadas pelos Estados em instrumentos políticos não vinculativos, na sua maioria por organismos intergovernamentais, como o ECOSOC, com o apoio do secretariado de organizações internacionais relevantes. Estes incluem declarações, resoluções e programas de ação, conjuntos de orientações, cartas, etc. A autoridade destes instrumentos deriva do acordo internacional de que consagram princípios de significado duradouro a nível mundial. Por exemplo, um memorando de 1962 do Gabinete das Nações Unidas para os Assuntos Jurídicos definiu uma declaração como "um instrumento formal e solene, adequado para ocasiões raras em que estão a ser enunciados princípios de grande e duradoura importância" (ECOSOC, 1962).

 

Instrumentos jurídicos vinculativos

O direito internacional diz, geralmente, respeito aos Estados e, relativamente aos tratados, aos Estados que assinaram, ratificaram e aderiram às obrigações vinculativas dos tratados (embora seja um processo de ratificação e incorporação política e jurídica interna). Desde a criação da ONU, em 1945, mais de 500 tratados multilaterais foram consignados junto do Secretário-Geral da ONU. Estes tratados incluem os nove principais instrumentos internacionais de direitos humanos:

Para além destes, existe também uma vasta gama de instrumentos universais de direitos humanos que consagram direitos relevantes para a liberdade de associação, a prevenção da discriminação e os princípios de cooperação internacional na deteção, detenção, extradição e punição de pessoas culpadas de crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Os instrumentos internacionais nestes campos, e noutros, fazem parte do quadro internacional mais amplo dos direitos humanos, no âmbito do qual operam as normas e padrões da ONU sobre a prevenção do crime e justiça criminal.

É ainda relevante referir que, tal como as normas e padrões sobre prevenção do crime e justiça criminal assentam no direito universal dos direitos humanos, incluindo a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948) e os nove instrumentos fundamentais dos direitos humanos acima enumerados, também estes têm uma forte ligação ao direito penal internacional. Uma proporção significativa das normas e padrões da ONU foi formalizada no direito internacional vinculativo para os Estados-Membros na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC) (2004)  e na Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (UNTOC) (2004), bem como no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998). Por exemplo, os artigos 66.º, 67.º, e 68.º do Estatuto de Roma (1998) referem-se, respetivamente, à presunção de inocência, aos direitos do arguido, e à proteção das vítimas e testemunhas e à sua participação nos processos.

 

Instrumentos Normativos Não Vinculativos

As normas e padrões da ONU sobre prevenção do crime e justiça criminal são instrumentos normativos de autoridade. Embora não tenham força jurídica direta vinculativa, estes instrumentos normativos refletem importantes compromissos políticos assumidos pelos Estados. Isto significa que os Estados estão vinculados numa aspiração comum de defenderem normas mínimas e decretarem determinadas salvaguardas. A consequência da violação destas normas é uma perda de posição e reputação a nível internacional.

Os instrumentos normativos não vinculativos podem ser categorizados como textos primários ou secundários.

Instrumentos Normativos Primários

Os instrumentos normativos primários não vinculativos compreendem os textos (não adotados sob forma de tratado) que se dirigem à comunidade internacional no seu conjunto, ou aos membros da instituição ou organização que os adota. Tais instrumentos podem declarar novas normas, muitas vezes como precursores da adoção de um tratado posterior, ou podem reafirmar ou aprofundar normas previamente estabelecidas, em textos vinculativos ou não vinculativos. As Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, adotadas pelo Primeiro Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento dos Criminosos,  1955, e aprovadas pelo Conselho Económico e Social das Nações Unidas em 1957, é um exemplo de um texto declarativo primário. 

No domínio dos direitos humanos, os tratados regionais e globais invocam, quase sem exceção, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) como precursor normativo. A própria Declaração afirma, pelos seus próprios termos, que foi concebida como "uma norma comum de sucesso", que poderia conduzir a um acordo vinculativo. Quase todas as recentes convenções multilaterais a nível global foram precedidas pela adoção de uma declaração não vinculativa. Nesta linha, a emissão de textos não vinculativos inicia frequentemente um processo de construção de consenso, em relação às obrigações vinculativas necessárias para resolver um problema novo ou duradouro. Os instrumentos não vinculativos são particularmente úteis na abordagem de novos tópicos de regulamentação que requerem meios inovadores de elaboração de regras. Por exemplo, a Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1975) é um precursor da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984).

Instrumentos Normativos Secundários

Os textos normativos secundários incluem as recomendações e comentários gerais dos órgãos internacionais de supervisão, a jurisprudência dos tribunais e comissões, as decisões dos relatores especiais e outros organismos ad hoc, e as resoluções dos órgãos políticos das organizações internacionais que aplicam normas primárias. A maioria destes textos normativos secundários são proferidos por instituições ou comissões cuja existência e jurisdição derivam de um tratado, e que aplicam as normas contidas nesse mesmo tratado. Estes textos servem frequentemente para afirmar e desenvolver disposições juridicamente vinculativas do tratado.

Exemplo: Comentários Gerais do Comité dos Direitos da Criança

O Comentário Geral Nº 10 (2007) do Comité dos Direitos da Criança analisa os Direitos da Criança na Justiça Juvenil. As disposições deste documento são consistentes com as obrigações legalmente vinculativas enumeradas na Convenção dos Direitos da Criança (CDC), e fornecem aos Estados-Membros na CDC orientações adicionais sobre o desenvolvimento e implementação de um sistema de justiça infantil especializado e abrangente (tal como exigido pela CDC). O Comité dos Direitos da Criança desenvolve todos os aspetos da justiça infantil, desde a prevenção até à imposição de medidas, e define a base destes princípios no normativo dos direitos humanos (CRC, ICCPR). Estes princípios incluem:

  • Não-discriminação (CRC, 1989, Artigo 2.º)
  • Os Melhores Interesses da Criança (CRC, 1989, Artigo 3.º)
  • O direito à vida, sobrevivência e desenvolvimento (CRC, 1989, Artigo 6.º)
  • O direito a ser ouvido (CRC, 1989, Artigo 12.º)
  • Tratamento coerente com o sentido de dignidade e valor de uma criança (CRC, 1989, Artigo 40(1))
 (Comité dos Direitos da Criança, Comentário Geral n.º 10, 2007, § 6.º - 14.º). 

O direito internacional vinculativo dos direitos humanos, bem como o CDC (1989), e as normas não vinculativas, tal como as articuladas no Comentário Geral n.º 10 sobre os Direitos da Criança na Justiça Juvenil (2007), reforçam-se mutuamente. As disposições legais em tratados vinculativos têm, a cada reiteração e elaboração, um significado adicional, a nível internacional. O Comentário Geral n.º 10, sobre os Direitos da Criança na Justiça Juvenil, foi adotado em 2007. Em 2019, o Comité dos Direitos da Criança concluiu um processo de revisão deste Comentário Geral, mais de uma década após a sua adoção. Este enfoque renovado na justiça infantil, pelos 18 peritos independentes que compõem o Comité dos Direitos da Criança, representa um compromisso internacional contínuo para assegurar os direitos das crianças em conflito com a lei. O Comentário Geral revisto (Comentário Geral N.º 24. 2019) é parte integrante do quadro normativo internacional que orienta o desenvolvimento e implementação de sistemas especializados de justiça infantil, para defender os direitos enumerados tanto na CDC como nas normas e padrões relevantes da ONU. Entre as normas e padrões relevantes para a justiça para as crianças encontram-se:

Para além da ênfase na reiteração destas normas pelos órgãos de autoridade, a natureza interativa do trabalho normativo proporciona também a oportunidade para a elaboração de orientações de autoridade internacional sobre a aplicação destas normas aos desafios e contextos contemporâneos. É o caso, por exemplo, do Comentário Geral  (2019) que o Comité dos Direitos da Criança está atualmente a elaborar sobre os direitos da criança em relação ao ambiente digital. Adotada em 1989, a CDC não explica de que formas os direitos da criança devem ser defendidos na era digital. Embora seja importante destacar que os direitos consagrados na CDC são todos relevantes na era digital, (o direito à liberdade de uma interferência arbitrária na privacidade, por exemplo), o Comentário Geral revisto, que surge 30 anos após a adoção da CDC, dá ao Comité dos Direitos da Criança a oportunidade de elaborar orientações digitalmente relevantes, para apoiar os Estados-Membros nos seus esforços para respeitar, proteger, e cumprir os direitos das crianças, no contexto da tecnologia digital. Neste sentido, textos normativos secundários, como os Comentários Gerais, desempenham um papel crucial para garantir que os tratados juridicamente vinculativos, como a CDC, continuem a ser instrumentos vivos e relevantes nos contextos contemporâneos.

 

Órgãos de Acompanhamento do Tratado das Nações Unidas

O Gabinete do Alto Comissariado para os Direitos Humanos (OHCHR) trabalha para oferecer conhecimento especializado, bem como apoio aos diferentes mecanismos de monitorização dos direitos humanos no sistema das Nações Unidas, incluindo organismos baseados na Carta das Nações Unidas, tais como o Conselho dos Direitos Humanos, e organismos criados ao abrigo de tratados internacionais de direitos humanos e constituídos por peritos independentes, mandatados para monitorizar o cumprimento pelos Estados-Membros das suas obrigações decorrentes dos tratados.

 

O Conselho dos Direitos Humanos e Procedimentos Especiais

O Conselho dos Direitos Humanos, apesar de separado das normas e padrões da ONU sobre prevenção do crime e justiça criminal, desempenha um papel importante no que diz respeito à orientação normativa e ao controlo da prática estatal, principalmente através da Revisão Periódica Universal (UPR) e dos Procedimentos Especiais. Embora o âmbito coletivo destes mecanismos seja amplo, e certamente mais vasto do que a prevenção do crime e a justiça penal, estes mecanismos centram-se regularmente em questões relevantes para o funcionamento do sistema de justiça penal.

O Conselho dos Direitos Humanos

O Conselho dos Direitos Humanos, que substituiu a Comissão dos Direitos Humanos, realizou a sua primeira reunião a 19 de junho de 2006. Reunido em Genebra durante dez semanas por ano, o Conselho dos Direitos Humanos é um órgão intergovernamental, composto por 47 Estados-Membros eleitos da ONU, que servem por um período inicial de 3 anos, e não podem ser eleitos por mais de dois mandatos consecutivos. O Conselho dos Direitos Humanos é um órgão essencialmente político, com um mandato abrangente em matéria de direitos humanos, e um fórum com poderes para: prevenir abusos, desigualdades e discriminação; proteger os mais vulneráveis e, ao monitorizar as atividades do Estado, proporcionar mecanismos de responsabilização por violações da legislação de direitos humanos internacionalmente vinculativa. Uma das tarefas mais importantes confiadas à Comissão/Conselho é a elaboração de normas em matéria de direitos humanos. Em 1948, concluiu os trabalhos sobre o marco histórico da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Desde então, desenvolveu normas relativas, entre outras matérias, ao direito ao desenvolvimento, aos direitos civis e políticos, aos direitos económicos, sociais e culturais, à eliminação da discriminação racial, à tortura, aos direitos da criança e aos direitos dos defensores dos direitos humanos.

Em 2007, o Conselho adotou a Resolução 5/1 intitulada "Reforço Institucional do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas", através da qual foi estabelecido um novo procedimento de queixa para abordar padrões consistentes de violações graves e comprovadas de todos os direitos humanos e de todas as liberdades fundamentais que ocorrem em qualquer parte do mundo e em quaisquer circunstâncias. O procedimento de queixa aborda comunicações apresentadas por indivíduos, grupos, ou organizações não governamentais, que afirmam ser vítimas de violações dos direitos humanos ou que têm conhecimento direto e fiável de tais violações. 

O processo de Revisão Periódica Universal (UPR), que envolve uma revisão dos registos dos direitos humanos de todos os Estados-Membros da ONU, é também uma função do Conselho. O UPR é um processo conduzido pelo Estado, que proporciona a cada Estado a oportunidade de informar que ações tomaram para melhorar a situação dos direitos humanos nos seus países, e para cumprir as suas obrigações em matéria de direitos humanos (um "relatório de país"). O Conselho também considera um "relatório sombra" da sociedade civil e, adicionalmente, os Estados-Membros iniciam um processo de revisão pelos pares, para encorajar o Estado relator a tomar medidas práticas para melhorar o cumprimento dos direitos humanos.

Através deste processo, os Estados-Membros identificam regularmente medidas que os Estados poderiam implementar para melhor defender os direitos humanos, incluindo os direitos dos indivíduos envolvidos no sistema de justiça criminal. Por exemplo, no segundo ciclo do UPR para Mianmar, os Estados-Membros da ONU colocaram previamente questões, para verificar que medidas Mianmar poderia pôr em prática para assegurar a proteção dos grupos minoritários, e "para abordar a prática da prisão e detenção arbitrária de defensores dos direitos humanos e ativistas da sociedade civil" (Questões Antecipadas para o Mianmar, 2015, UPR). Além disso, no terceiro ciclo UPR para a Noruega, os Estados-Membros da ONU colocaram questões pertinentes acerca do tratamento dos presos, com interesse específico nas medidas que a Noruega tomaria para pôr fim ao uso do confinamento solitário nas prisões, e nas medidas específicas que seriam postas em prática para responder às necessidades de saúde mental dos presos (Questões Antecipadas para a Noruega, 2019, UPR). O terceiro ciclo UPR para o Irão focou-se em questões, dos Estados-Membros da ONU, sobre os planos que o Irão poderia ter para reduzir ou abolir a pena de morte, particularmente para as crianças (Questões Antecipadas para o Irão, 2019, UPR).

Procedimentos Especiais

Para além do acima referido, a Comissão dos Direitos Humanos/Conselho dos Direitos Humanos/Human Rights Council estabeleceu os chamados procedimentos especiais, um nome genérico dado aos mecanismos concebidos para abordar situações específicas de cada país ou questões temáticas em todas as partes do mundo.

Os procedimentos especiais referem-se aos peritos independentes, ou a grupos de peritos, que trabalham numa base voluntária, nomeados pelo Conselho dos Direitos Humanos, para aconselhar sobre questões de direitos humanos. O termo engloba as funções de "relator especial" ou "perito independente", e de "grupo de trabalho". Os mandatos de Procedimentos Especiais convidam os peritos nomeados a examinar, acompanhar, aconselhar e informar publicamente sobre situações de direitos humanos em países ou territórios específicos (mandatos de países), ou sobre questões de direitos humanos de particular interesse a nível mundial (mandatos temáticos). Desde fevereiro de 2020, existem 44 mandatos temáticos e 12 mandatos por país. Os peritos realizam visitas aos países; atuam em casos e preocupações individuais de natureza mais ampla e estrutural, enviando comunicações aos Estados e outros que levem ao seu conhecimento alegadas violações ou abusos; realizam estudos temáticos e convocam consultas de peritos, contribuem para o desenvolvimento de normas internacionais em matéria de direitos humanos, comprometem-se com a defesa dos direitos, sensibilizam o público e prestam aconselhamento para a cooperação técnica.

Existem vários procedimentos especiais com a prevenção do crime e a justiça penal em foco. Estes incluem:

 

Exemplo - Relatórios por País e Temáticos do Relator Especial sobre tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes

A Convenção contra a Tortura (CAT) (1984) exige que os Estados-Membros decretem proibições legais contra todas as formas de tortura, e responsabilizem os perpetradores de tortura. Estes são componentes fundamentais do Estado de direito, assegurando que todos, dentro da jurisdição do Estado-parte, sejam responsáveis perante a lei. A CAT também afirma a igualdade da dignidade humana, e a importância fundamental do direito à liberdade de tratamentos desumanos ou degradantes. O mesmo se aplica a uma tentativa de praticar tortura e a um ato de qualquer pessoa que constitua cumplicidade ou participação na tortura. Cada Estado-parte deve tornar estas infrações puníveis com penas adequadas, que tenham em conta a sua gravidade (CAT, 1984, Artigo 4(1)).

Parte do mandato do Relator Especial sobre a Tortura consiste em realizar visitas de averiguação de factos a países, incluindo inspeções a centros em que as pessoas são privadas de liberdade. Além disso, o Relator Especial realiza relatórios temáticos, tais como o recente relatório sobre a ligação entre corrupção e tortura ou maus-tratos. Nesse relatório, o Relator Especial identifica a necessidade de uma reforma sistémica para prevenir a tortura e os maus-tratos:

“Ao examinar a correlação entre corrupção e tortura ou maus-tratos, é da maior importância compreender a natureza predominantemente estrutural e sistémica de ambas as formas de abuso. Ao contrário das perceções comuns incorretas, tanto a corrupção como a tortura ou maus-tratos raramente são isoladas em algumas “maçãs podres”, mas, figurativamente falando, tendem a estender-se a “ramos podres” ou mesmo a “pomares podres”. Por exemplo, no contexto do policiamento, a prática da corrupção e da tortura ou maus-tratos ultrapassa tipicamente os agentes individuais e estende-se às suas unidades ou mesmo a departamentos policiais inteiros, muitas vezes exacerbada pela conivência, na pior das hipóteses, ou pela aquiescência, na melhor das hipóteses, por parte do poder judiciário, e pela complacência aberta ou implícita por parte dos decisores políticos. Globalmente, o recurso de funcionários individuais à corrupção ou à tortura e maus-tratos é mais frequentemente o resultado do seu ambiente profissional do que do seu carácter pessoal” (Conselho dos Direitos Humanos, 2019, para. 21).

Neste mesmo relatório, o Relator Especial sobre Tortura observa que “os ambientes onde o risco de tortura e maus-tratos é mais elevado [incluem] locais de detenção e outras institucionalizações, em práticas policiais com privação de liberdade e em várias fases das viagens de migrantes irregulares” (Conselho dos Direitos Humanos, 2019, para. 15). Estas observações, baseadas numa série de visitas a países, e em 136 comunicações em nome de indivíduos expostos a tortura ou maus-tratos, clarificam a importância de normas mínimas claras de tratamento, para indivíduos em locais de detenção. Mais informações sobre o papel das normas internacionais de conduta no policiamento e na prática judicial estão disponíveis nos Módulos 514 da série de módulos da Universidade E4J sobre Prevenção do Crime e Justiça Criminal. Mais informações sobre a importância dos direitos humanos na reparação da corrupção podem ser encontradas no Módulo 7 da Série de Módulos da Universidade E4J sobre Anticorrupção.

É neste ponto que as normas e padrões da ONU desempenham um papel fundamental no complemento e na elaboração das disposições legais internacionais. Relevantes para este mandato específico, sobre tortura, as normas e padrões explicam claramente as regras e princípios internacionalmente acordados que se aplicam à conduta dos atores da justiça criminal, em ambientes onde os indivíduos são privados da sua liberdade (por exemplo, a polícia e os funcionários prisionais). Entre as normas e padrões da ONU que proíbem a tortura e os maus-tratos, incluindo nos locais de detenção, encontram-se: as Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos (Regras Nelson Mandela) (2015); as Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Reclusas e Medidas não privativas de liberdade para Mulheres Criminosas (Regras de Banguecoque) (2010); e as Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados da sua Liberdade (1990). Em reconhecimento do risco de tortura ou maus tratos na custódia policial, as normas de conduta policial (incluindo o uso da força) são elaboradas nos seguintes textos internacionais: os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e das Armas de Fogo pelos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei (1990); e o Código de Conduta dos Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei (1979). Os Princípios Básicos sobre o Uso da Força e de Armas de Fogo por Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei (1990), por exemplo, especificam as seguintes restrições ao uso da força no que diz respeito a pessoas privadas de liberdade:

15. Os agentes da autoridade, nas suas relações com pessoas sob custódia ou detenção, não devem utilizar a força, exceto quando estritamente necessário para a manutenção da segurança e ordem dentro da instituição, ou quando a segurança pessoal for ameaçada.

16. Os agentes da autoridade, nas suas relações com pessoas sob custódia ou detenção, não utilizarão armas de fogo, exceto em legítima defesa ou em defesa de terceiros contra a ameaça imediata de morte ou ferimentos graves, ou quando estritamente necessário para impedir a fuga de uma pessoa sob custódia ou detenção que apresente o perigo referido no Princípio 9.º. (Princípios 15.º, 16.º)

Existe uma dupla eficácia na proibição legal codificada internacionalmente contra a tortura e os maus tratos, e na elaboração de princípios como estes sobre o uso da força. A primeira é que a autoridade da proibição contra a tortura fornece uma referência clara, contra a qual as violações podem ser registadas, inclusive através de mecanismos de controlo, tais como o mandato de Procedimento Especial do Relator Especial sobre Tortura. Uma segunda, e mais preventiva aplicação destas proibições legais e normativas contra a tortura, maus tratos e uso excessivo da força, é que esta fornece uma referência para a elaboração de uma série de instrumentos de assistência técnica e formação, que podem ser utilizados pelos Estados para desenvolver a capacidade dos agentes da lei e das prisões, para corrigir culturas de impunidade ou corrupção, que possam resultar em violência contra indivíduos privados de liberdade. Por exemplo, o Livro de Recursos sobre o Uso da Força e Armas de Fogo na Aplicação da Lei oferece “orientação técnica para a elaboração de leis nacionais, políticas sobre o uso da força e armas de fogo na aplicação da lei” (UNODC, 2017, p 3).

Instrumentos práticos deste tipo cumprem uma função importante, fornecendo aos Estados estratégias acionáveis para ajudar nos seus esforços para cumprir tanto as suas obrigações nos termos da legislação internacional vinculativa sobre direitos humanos, como as salvaguardas e normas mínimas elaboradas nas normas e padrões das Nações Unidas sobre prevenção do crime e justiça penal. Mais detalhes sobre o uso da força estão disponíveis no Módulo 4 sobre o Uso da Força e das Armas de Fogo, da Série de Módulos da Universidade E4J sobre Prevenção do Crime e Justiça Criminal.

 

Órgãos de Acompanhamento do Tratado

Para além dos instrumentos e órgãos baseados na Carta das Nações Unidas, existem nove tratados internacionais fundamentais sobre direitos humanos, e respetivos órgãos de controlo. Desde a adoção da Declaração Universal dos Direitos do Homem em 1948, todos os Estados-Membros da ONU ratificaram pelo menos um tratado internacional fundamental de direitos humanos, e 80% ratificaram quatro ou mais (a partir de fevereiro de 2020) (Nações Unidas).

Em termos gerais, os órgãos de controlo dos tratados incluem peritos independentes de todo o mundo, que controlam a implementação, pelos Estados-Membros, do tratado específico ao abrigo do qual o respetivo comité é prescrito. Embora os mecanismos de informação e revisão difiram ligeiramente para cada um dos órgãos de monitorização dos tratados, os Estados-Membros são geralmente obrigados a fornecer ao órgão de monitorização dos tratados relatórios periódicos que descrevem as medidas que o Estado tomou para cumprir as suas obrigações, nos termos do tratado relevante. O facto de muitos órgãos de monitorização de tratados também receberem um relatório da sociedade civil (um relatório sombra), no qual as organizações da sociedade civil com um mandato relevante para o tratado específico também fornecem informações sobre a implementação pelo Estado das suas obrigações decorrentes do tratado (e quaisquer áreas em que seja necessário melhorar ou reformar), funciona como um importante mecanismo para assegurar que a voz da sociedade civil seja ouvida. Tendo analisado ambos os relatórios, o órgão de controlo do tratado relevante realiza uma audição com uma delegação dos Estados-Membros, após a qual formula as chamadas observações conclusivas, com recomendações sobre medidas para melhorar a implementação por parte do Estado das suas obrigações, nos termos do tratado relevante. Os Estados-Membros são obrigados a responder ao órgão de monitorização do tratado, dentro de um prazo especificado, para indicar as medidas que irão implementar para melhorar o cumprimento do tratado relevante. Uma descrição das funções dos respetivos comités é fornecida na secção de Referências. Nesta secção, são discutidos os mecanismos de controlo de apenas dois comités: o Comité de Direitos Humanos, que controla um mecanismo de queixas individual; e o Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW).

O Comité dos Direitos Humanos é um órgão composto por 18 peritos independentes, que controla a implementação do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966)  pelos seus Estados-Membros, sendo todos eles obrigados a apresentar relatórios regulares ao Comité, sobre a forma como os direitos estão a ser implementados. Os Estados devem apresentar relatórios, inicialmente, um ano após a adesão ao Pacto, e, depois, sempre que o Comité o solicite (normalmente de quatro em quatro anos). O Comité examina cada relatório e dirige as suas preocupações e recomendações ao Estado-Membro, sob a forma de Observações finais. O Comité também publica a sua interpretação do conteúdo das disposições sobre direitos humanos, conhecidas como Observações gerais sobre questões temáticas ou sobre os seus métodos de trabalho. Entre os relevantes para este Módulo, encontram-se: Comentário Geral N.º 20 de 1992 sobre o artigo 7.º (Proibição de tortura, ou outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes), e o Comentário Geral N.º 9 de 1982 sobre o artigo 10.º  (Tratamento humano das pessoas privadas da sua liberdade).

Além disso, o Primeiro Protocolo Facultativo ao Pacto (1966) confere ao Comité competência para examinar queixas individuais relativas a alegadas violações do Pacto pelos Estados-Membros no Protocolo, desde que o requerente tenha esgotado as vias de recurso internas. Há casos em que estes mecanismos são a única (e última) via de recurso legal para indivíduos que sofreram violações dos direitos humanos (incluindo no contexto da prevenção do crime ou da justiça penal). O caso australiano de Corinna Horvath é ilustrativo. Este caso envolveu o abuso físico por parte dum agente da polícia  sobre um suspeito não cooperante, que apresentou o nariz partido, um dente lascado, e cinco dias de hospitalização, comoresultado desse comportamento. Após esgotar os recursos domésticos, Horvath apresentou uma queixa individual ao Comité dos Direitos Humanos. (Para uma descrição completa deste caso, consulte a secção, intitulada Casos Práticos).

O Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), é composto por 23 peritos em direitos das mulheres de todo o mundo, que monitorizam a implementação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1979). Os Estados-Membros são obrigados a apresentar relatórios regulares ao Comité sobre a forma como os direitos da Convenção são implementados. O Comité considera cada Estado-parte no relatório, e dirige as suas preocupações e recomendações ao Estado parte sob a forma de Observações finais. Em conformidade com o  Protocolo Facultativo à Convenção, o Comité está mandatado para receber comunicações de indivíduos ou grupos de indivíduos que apresentem queixas de violação de direitos protegidos pela Convenção ao Comité, e para iniciar inquéritos sobre situações de violação grave ou sistemática dos direitos das mulheres. Estes procedimentos são opcionais e só estão disponíveis quando o Estado em causa os tenha aceite. O Comité formula também recomendações e sugestões gerais. As recomendações gerais são dirigidas aos Estados, e dizem respeito a artigos ou temas da Convenção. No contexto deste módulo, considerar por exemplo a Recomendação Geral n.º 33 sobre o acesso das mulheres à justiça (2015); a Recomendação Geral n.º 35 sobre a violência baseada no género contra as mulheres (2017), atualizando a Recomendação Geral n.º 19 (2017); ou a Recomendação Geral Conjunta n.º 31 do Comité para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres e n.º 18 do Comité dos Direitos da Criança sobre práticas prejudiciais (2014).

Exemplo - Recomendação Geral Nº 33 sobre o Acesso das Mulheres à Justiça (2015): Comité para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres

Na Recomendação Geral N.º 33, o Comité para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres afirma as obrigações dos Estados-Membros de assegurar que todas as mulheres e raparigas tenham acesso à justiça - um conceito que engloba a igualdade de sexo e/ou de género perante a lei, bem como a igualdade de proteção da lei. O Comité reconhece que o acesso à justiça é fundamental para o Estado de Direito, e essencial para o cumprimento dos direitos das mulheres, tal como consagrado na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres. A Recomendação Geral N.º 33 analisa a discriminação estrutural e a desigualdade que criam barreiras à justiça para as mulheres e raparigas:

“Estes obstáculos ocorrem num contexto estrutural de discriminação e desigualdade, devido a fatores tais como estereótipos de género, leis discriminatórias, discriminação cruzada ou composta, requisitos e práticas processuais e probatórias, e uma falha em assegurar que os mecanismos judiciais sejam física, económica, social e culturalmente acessíveis a todas as mulheres. Todos estes obstáculos constituem violações persistentes dos direitos humanos das mulheres” (§ 3.º).

Ao elaborar as orientações normativas para os Estados-Membros, o Comité identifica as seis dimensões inter-relacionadas do acesso à justiça, como se segue:

“O direito de acesso à justiça é multidimensional. Abrange a justiciabilidade, a disponibilidade, a acessibilidade, a boa qualidade, a provisão de recursos para as vítimas e a responsabilização dos sistemas de justiça” (§ 1.º).

A partir destes princípios gerais, o Comité elabora orientações mais específicas para os Estados-Membros, incluindo recomendações para “Assegurar que os direitos e as proteções jurídicas correlativas sejam reconhecidos e incorporados na lei, melhorando a capacidade de resposta do sistema de justiça em termos de género”; “Melhorar o livre acesso das mulheres aos sistemas de justiça e, assim, capacitá-las para alcançar a igualdade de jure e de facto”; “Assegurar que os profissionais do sistema judicial tratem os casos de uma forma sensível ao género”; e “Confrontar e remover barreiras à participação das mulheres como profissionais em todos os organismos e níveis dos sistemas judiciais e quase-judiciais e prestadores de serviços relacionados com a justiça” (§ 15.º).

Estas recomendações facultam apenas um vislumbre da orientação plasmada na Recomendação Geral n.º 33 (2015). Servem, sobretudo, para ilustrar o papel do órgão de controlo dos tratados, ao apresentar conselhos práticos sobre as mudanças concretas necessárias para assegurar que os Estados-Membros cumpram as suas obrigações, nos termos da CEDAW. Outras orientações práticas sobre estas questões são elaboradas a vários níveis, incluindo as Regras de Banguecoque (2010), assim como as ferramentas e publicações abrangentes que o UNODC elaborou para fornecer aos Estados-Membros conselhos práticos para orientar a implementação de leis, políticas e práticas sensíveis ao género no que diz respeito ao policiamento, ao sistema judicial, à prisão e ao(s) domínio(s) médico-legal(ais). Entre estes estão: Estratégias Modelo Atualizadas e Medidas Práticas sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres no Campo da Prevenção do Crime e Justiça Criminal (2011), em conjunto com os manuais do UNODC sobre Respostas Policiais Eficazes à Violência contra as Mulheres (2010), e Respostas Processuais Eficazes à Violência contra Mulheres e Raparigas (2014). Também relevante é o guia Ferramentas para a definição de programas de acesso à justiça para mulheres (2018) (UNODC, UN Women, UNDP e OHCHR).

Mais informação sobre estes tópicos está disponível em vários módulos da série de módulos da Universidade E4J sobre Prevenção do Crime e Justiça Criminal. Ver, em particular, o Módulo 9 sobre Género no Sistema de Justiça Penal, e o Módulo 10 sobre Violência contra Mulheres e Raparigas.

 

Seguinte: Tópico Dois: O alcance das normas e padrões das Nações Unidas sobre prevenção do crime e justiça penal
Regressar ao início