Este módulo é um recurso para professores 

 

Tópico quatro: Dificuldades de aplicação da Justiça Restaurativa

 

Justiça Restaurativa e equívocos

Há uma perceção popular de que a Justiça Restaurativa é "mais suave com o crime" (soft on crime) e que é necessária uma resposta mais dura para conter a prática de crimes. Alguns preferem ver o papel da Justiça Restaurativa reduzido à pequena criminalidade e aos casos que envolvem crianças e jovens, e outros entendem que a Justiça Restaurativa não deve ser aplicada, de forma alguma, como resposta ao crime. Há também quem argumente que as vítimas poderiam sentir-se pressionadas a participar num diálogo restaurativo e que, por essa via, lhes seria negado o acesso à justiça.

No que diz respeito à perceção de que a Justiça Restaurativa pode ser uma "saída fácil" (easyway) para os ofensores, os estudos sugerem que os ofensores consideram ser mais difícil confrontar a vítima face a face e perceber o impacto da sua infração do que ir a tribunal. Eis alguns testemunhos dos ofensores sobre as suas experiências:

"Eu acho que o principal medo era olhar nos olhos das pessoas que eu tinha roubado. Eu até tive pesadelos com isso, estava mesmo preocupado".

"Essa [Justiça Restaurativa] foi o meu ponto de viragem. Quando me apercebi do efeito que os meus crimes tiveram nas outras pessoas, senti-me envergonhado e constrangido" (Conselho de Justiça Restaurativa, 2014).

A investigação mostra que a Justiça Restaurativa afeta positivamente os níveis de satisfação tanto das vítimas como dos ofensores, com taxas notavelmente mais elevadas em comparação com os processos judiciais tradicionais. De acordo com o Conselho de Justiça Restaurativa, 85% das vítimas que passaram pela Justiça Restaurativa ficaram satisfeitas com o processo. Em contrapartida, apenas 33% das vítimas sentiram que a justiça penal satisfez as suas necessidades (Conselho de Justiça Restaurativa, 2014).

As evidências também indicam que a Justiça Restaurativa, que é baseada em uma abordagem relacional, encoraja os ofensores a assumir a responsabilidade pelos seus atos e a reparar o dano e oferece o potencial para mudanças de comportamento. Contribui para reforçar o poder das vítimas, dando-lhes a oportunidade de terem voz e de serem ouvidas e de se envolverem ativamente no processo de tomada de decisão. Mesmo no que diz respeito a crimes mais graves e complexos, incluindo a violência de género, a Justiça Restaurativa tem demonstrado resultados positivos.

Pesquisas mostram que a Justiça Restaurativa contribui tanto para menores taxas de reincidência como para a redução de custos, em comparação com os processos de justiça criminal convencional (por exemplo, Shapland et al., 2007; Shapland et al., 2008; Sherman e Strang, 2007). Estes resultados sugerem que a Justiça Restaurativa, se bem administrada, é consistente com o interesse público. 

 

Legislação

É importante notar que a legislação que prevê abordagens de Justiça Restaurativa não é, por si só, suficiente para garantir a sua plena implementação. Fatores relacionados com as disposições legislativas específicas, financiamento, políticas públicas e divulgação, cooperação entre instituições e confiança no processo podem ter impacto na qualidade e acessibilidade dos serviços de Justiça Restaurativa (cf., por exemplo, Laxminarayan, 2014). Mais fundamentais, no entanto, são as diferenças filosóficas que existem entre uma abordagem restaurativa para alcançar a justiça e a orientação prevalecente da retribuição. Não obstante, existem várias formas de promover o uso mais amplo da Justiça Restaurativa na vida pública e social.

As disposições legislativas e financeiras são vitais onde a Justiça Restaurativa se cruza com as instituições de justiça criminal, para garantir a sua acessibilidade e disponibilidade. O reconhecimento legislativo não só aumenta a credibilidade e a confiança na Justiça Restaurativa, como também pode contribuir para uma implementação mais sistemática. A qualidade das práticas restaurativas não pode, no entanto, ser legislada, pois a qualidade do trabalho a empreender deve emergir da própria comunidade de profissionais, informada pela experiência e sensível ao contexto cultural. Além disso, é importante que a legislação existente e a gravidade da infração em causa não restrinjam o tipo de casos que são elegíveis para a Justiça Restaurativa. O que vai dito também se aplica a casos sensíveis, tais como a violência sexual e de género (VSDG), que não devem ser excluídas apenas com base no facto de ser VSDG, desde que os padrões das práticas restaurativas possam garantir o envolvimento seguro das vítimas sobreviventes. Dado que a Justiça Restaurativa ainda é predominantemente utilizada como uma medida de diversão processual em muitos países, o foco deve ser a expansão da utilização de processos restaurativos para outras fases do processo de justiça criminal, abarcando o julgamento e a reabilitação e a reintegração. 

A nível nacional, vários países introduziram normas práticas relacionadas com o uso da Justiça Restaurativa. Por exemplo, o Conselho de Justiça Restaurativa do Reino Unido publicou o "Guia de Melhores Práticas para Práticas Restaurativas" (2011) e, com a publicação do "Quadro de Melhores Práticas de Justiça Restaurativa" (2017), o Ministério da Justiça da Nova Zelândia atualizou as suas normas práticas, estabelecendo valores, princípios e normas orientadoras para o uso da Justiça Restaurativa, em qualquer momento do processo de justiça penal. Como mencionado anteriormente, também é importante notar o surgimento de padrões específicos de Justiça Restaurativa para casos de violência familiar e casos de violência sexual, tanto na Nova Zelândia (Ministério da Justiça 2013; 2018) como a nível europeu (Mercer et al., 2015; Drost et al., 2016).

 

 Divulgação

A promoção da Justiça Restaurativa exige estratégias de sensibilização entre os profissionais do sistema de justiça, tais como a polícia, os membros do Ministério Públicos e os juízes, bem como uma maior compreensão da Justiça Restaurativa na sociedade em geral. Os profissionais do sistema de justiça penal devem estar a par da existência de programas de Justiça Restaurativa e dos seus princípios, de modo a poderem promover o encaminhamento de casos para os serviços de Justiça Restaurativa. Os cidadãos devem estar mais informados sobre as opções disponíveis para a resolução das suas disputas ou conflitos. Isto não exclui as opções tradicionais que envolvem tribunal e punição, mas a comunidade deve ser informada sobre a existência de processos e de vias de acesso a serviços de justiça que mais provavelmente vão ao encontro das suas necessidades de reparação emocional e psicológica, e que potenciam oportunidades de reparação.

Há evidências consideráveis para mostrar uma forte associação entre conhecimento e atitudes: as pessoas que sabem menos sobre os processos de resolução alternativa de litígios tendem a ter as opiniões mais punitivas, enquanto aquelas que recebem informações adicionais sobre várias alternativas tendem a favorecê-las em detrimento das formas tradicionais de punição (Pali e Pelikan, 2010). O maior conhecimento sobre processos de Justiça Restaurativa como alternativas de qualidade, ou complementos, aos procedimentos tradicionais de justiça criminal, são fundamentais para promover o maior acesso aos processos de Justiça Restaurativa.

 

Relação com comunidades indígenas e aspetos “interculturais”

A questão do acesso à justiça, incluindo a igualdade de acesso à Justiça Restaurativa, é particularmente relevante em países que lidam com o legado da colonização e a sobre representação das populações indígenas no sistema de justiça penal.

Embora os primeiros defensores da Justiça Restaurativa possam ter sido inspirados pelas tradições de justiça indígenas, e possam continuar a compartilhar palavras-chave como participação, justiça indígena e Justiça Restaurativa, a verdade é que não se trata exatamente da mesma realidade. Por exemplo, muitos programas de Justiça Restaurativa não consideram as diferenças importantes existentes entre os povos indígenas (Cunneen, 2011) e ignoram características significativas de muitas tradições jurídicas indígenas, como a grande importância dada à espiritualidade e ao uso de redes de parentesco (Chartrand e Horn, 2016). Nas últimas décadas, o aumento do uso da Justiça Restaurativa no sistema de justiça penal tradicional tem levantado questões sobre até que ponto os povos indígenas têm acesso a processos de Justiça Restaurativa que atendam às suas necessidades. Isso é ainda agravado pelos problemas generalizados e profundamente enraizados de racismo estrutural ou sistémico, presente nos sistemas de justiça criminal ocidentais que têm sido amplamente relatados. Alguns autores identificaram o facto de os povos indígenas terem menos acesso a formas de diversão processual e a práticas restaurativas, devido a problemas sistemáticos nos processos de justiça criminal (cf., em particular para o contexto australiano, Blagg, 1997; Cunneen, 1997; Cunneen, 2006). Da mesma forma, as pessoas, imigrantes ou refugiadas, também estão identificadas como tendo mais dificuldade de acesso aos serviços de Justiça Restaurativa (Pali, 2017). Evidências deste tipo apontam para a necessidade fundamental de eliminar qualquer forma de discriminação que comprometa a igualdade de acesso à justiça, incluindo o acesso a processos de Justiça Restaurativa.

 
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